Expurgo e vingança de um quadrinista em construção

Depois do Som começa uma série de entrevistas em que artistas fãs de Lourenço Mutarelli comentam suas HQs preferidas contidas em Capa Preta, reunião histórica dos primeiros trabalhos do quadrinista. Na parte 1, o brasiliense Doug Firmino fala de Transubstanciação

Jairo Macedo
depoisdosom
6 min readApr 15, 2021

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O ano 1 da peste do Covid-19 começou, para os quadrinhos nacionais, com uma lacuna histórica finalmente preenchida. A editora Comix Zone, nas figuras do editor Thiago Ferreira e do escritor e editor Ferréz, lançaram, no apagar das luzes de 2019, o livro Capa Preta, compilação dos quatro primeiros álbuns do quadrinista paulistano Lourenço Mutarelli. Reunidos num volume de mais de 300 páginas, capa dura, dois prefácios e tudo mais, Transubstanciação (lançado originalmente em 1991), Desgraçados (1993), Eu te amo Lucimar (1994) e Confluência da Forquilha (1997) chegaram finalmente às mãos do leitor mais jovem, que não tinha acesso especialmente aos três últimos, fora de catálogo desde os anos 90 — muito em função das instabilidades do mercado editorial, e um pouco também pelos receios do artista.

Lourenço revira material de décadas atrás (Reprodução YouTube)

Lourenço declarou repetidas vezes que não tinha vergonha do material nem o achava indigno de ser reeditado, mas tinha com ele, e talvez tenha ainda, o estranhamento de tocar em obras sombrias demais, criadas nos intervalos das longas crises depressivas pelas quais passou naquela década. Ficou assim, então, por anos e anos. Somente quando Ferréz, velho amigo de ira e de literatura marginal, propôs o lançamento, a coisa toda fez sentido. Um ciclo se fechou e as quatro HQs puderam vir à tona.

Capa Preta é terceiro lançado da Comix Zone como editora

Depois de minucioso trabalho de pesquisa, organização e digitalização das pranchas originais, os anos de formação de Lourenço Mutarelli estão disponíveis para evidenciar a influência de sua obra na produção, quadrinística ou não, de tantos artistas que vieram depois.

Pensando esse impacto geracional, trazemos à roda uma série, em quatro partes, de depoimentos de artistas declaradamente influenciados por ele. O primeiro deles é Doug Firmino, quadrinista e ilustrador da Ceilândia (DF), cujo traço grotesco diz abertamente sobre a influência de Lourenço, a quem Doug chama carinhosamente de O Véio. Para Firmino, a espontaneidade do desenho do mestre (“Lourenço não apenas observa, ele descobre e cataloga tudo”, diz) é tão importante quanto o contato que teve pessoalmente com ele. Para além do niilismo e nanquim pesado sobre papel, o brasiliense enxerga vingança e ensinamento no fim -começo?- do túnel de Mutarelli. Conversamos com Doug sobre Transubstanciação. Vejamos.

A vingança é dar certo
Transubstanciação, por Doug Firmino

Foi a insistência de uma amiga mineira que me fez ter o primeiro contato com o trabalho do Mutarelli. O primeiro que conheci foi o romance Cheiro do Ralo. O Lourenço dos quadrinhos eu vim a conhecer um tempo depois, com o Diomedes, já que muitas das suas obras publicadas anteriormente estavam esgotadas e eram muito difíceis de encontrar pra ler. E Transubstanciação é uma delas: foi lançada em 1991, ano em que eu devia estar aprendendo a falar ou andar.

Li ela pela primeira vez por meio de um scan em PDF, feito por algum fã que postou na internet. Lendo, passei a entender o porquê que as pessoas me recomendavam as obras do Lourenço sempre que viam o meu trabalho. Lembro que a primeira sensação que veio à mente foi um tipo de esperança: eu enxerguei alguém que trilhou por esse caminho tortuoso e chegou em novos horizontes. É como o próprio Lourenço sempre fala: “A vingança é dar certo!”. É um ensinamento dos mais valiosos que aprendi na vida.

Minha identificação estava nas verdades que a obra carrega, algumas duras, cruas e sem rodeios, outras sensíveis e poéticas. Depois de algum tempo, tive a sorte do Lourenço se deparar e se identificar com os meus desenhos. A partir daí, pude conhecer ele e a sua esposa Lucimar, pessoas incríveis, que eu tenho um carinho e uma admiração muito grande. Poder viver essa relação me ensinou ainda mais o quanto é importante seguir seu próprio caminho, mesmo que ele seja dolorido como o apresentado em Transubstanciação.

Expurgo

Quer dizer, para mim o que o Mutarelli fez em Transubstanciação foi um expurgo construtivo. Usar da fúria que está aprisionada em si para gravar na superfície branca do papel, com golpes certeiros de bico de pena. Ele transporta, assim, as manchas pretas do seu íntimo para gravar o enredo narrado no suporte. Isso é algo muito bonito de perceber. Mesmo nos seus momentos mais difíceis, a sua mente criou algo para que ele pudesse seguir em frente na sua trajetória.

É uma história que coloca questões sobre nós, apresentando nuances aos seus modos, tanto nas camadas técnicas quanto nas poéticas. Faz a gente perceber como o mundo à nossa volta é cru e como a gente se engana para tentar deixar o que nos rodeia mais palatável. Precisamos desse contato abrupto proposto pela HQ, para sermos mais conscientes e também para nos incomodar.

Revolta

O Véio me influenciou mais na minha vida como pessoa. Mas, se é para falar de meu trabalho, acredito que o que temos em comum é a revolta pelo mundo que nos rodeia. O fato de perceber a realidade como ela se mostra sem querer maquiar ou colocar um pingente de ouro na grande quantidade de merda que está aí na nossa face todos os dias.

Olhar pra isso gera uma agressividade como reação, um tipo de mecanismo de defesa que poderia ser expurgado de forma destrutiva por meio da violência sobre si ou sobre o outro, porém, a expressão pelo desenho, quadrinhos e escrita nos ensinou um modo construtivo de colocar toda essa carga negativa que absorvemos para fora. O Lourenço me mostra o quanto fazer meu trabalho é fundamental para minha existência e que preciso continuar por mim mesmo. Sobre as semelhanças técnicas e poéticas, já não sei dizer, deixo para quem tem contato com o meu trabalho responder.

O primeiro álbum dele é inovador tanto em aspectos visuais quanto narrativos. Pois é algo que em suas páginas desvela uma veracidade voraz. E considero uma obra bastante atual, mesmo que lançada exatamente há trinta anos atrás. Todas as obras do Lourenço influenciaram minha geração, até mesmo as pessoas que ainda não conheceram o seu de fato. Falo isso devido à força e à coragem de colocar Transubstanciação na rua, pois isso proporcionou uma liberdade enorme para nós que viemos anos depois. Poder ler hoje, na edição do Capa Preta, essa obra na qualidade que ela sempre mereceu é muito importante.

Ter Lourenço Mutarelli como contemporâneo é de extremo valor: ver como ele compartilha do seus conhecimentos em suas oficinas de forma tão generosa, mostrando quão poderoso é o processo do fazer, da dedicação e do hábito de olhar pro lado de dentro, se desligando do mundo para rabiscar uma página de caderno, fazer uma colagem ou digitar um texto sem pretensão de ser publicado.

Pensar em tudo isso me leva a agradecer a editora Comix Zone (do Ferréz e do Thiago Ferreira), que fez um resgate grandioso com a edição do Capa Preta e hoje poemos ler essa obra na qualidade que ela sempre mereceu.

Doug Firmino é artista e pesquisador da Ceilândia (DF). Publicou artes e HQs em diversas revistas independentes e é o ilustrador de Floresta das Árvores Retorcidas, de Alexandre Callari, e Datilógrafo do Gueto, de Ferréz. Recentemente, publicou em seu instagram a série Boca de Bueiro, sobre os dias, e especialmente as noites, na periferia do Distrito Federal.

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