O gesto da improvisação diante da câmera

Jairo Macedo
depoisdosom
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5 min readOct 16, 2020

Diretor André Lavaquial fala do desafio que as performances de Arto Lindsay impuseram ao documentário Arto Lindsay 4D

O cineasta carioca André Lavaquial, 42 anos, registrou uma performance do músico Arto Lindsay pela primeira vez em 2013, no projeto experimental Quintavant, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o norte-americano tocava pela primeira vez, sem ensaio, com Paal Nilssen-Love, baterista norueguês de free jazz. A noite de improviso rendeu, para o duo, outras apresentações pelo mundo e o disco Scarcity (PNL Records, 2014). Para André, ainda que não soubesse à época, rendeu o primeiro material para o que viria a ser o documentário Arto Lindsay 4D.

No ano seguinte, quando entrevistou o músico para a revista Polivox, Lavaquial perguntou sobre erro e limite no exercício da improvisação, ao passo que Arto respondeu: “Apesar de ser improviso, você tá ali naquele gesto, é uma coisa mecânica, física, você já fez muitas vezes, você sabe e você se perde, faz parte do improviso livre”. É tentando entender esse gesto que o filme de André caminha e, conta ele em entrevista para o Depois do Som, improvisa junto.

As filmagens começaram em 2015, foi isso? Até quando elas foram feitas? E daí até a finalização do filme, foi um caminho longo?

O projeto começou formalmente em 2015, porém, eu utilizei imagens que eu havia filmado antes, em 2013, de uma apresentação do Arto com o baterista norueguês Paal Nilssen-Love na Audio Rebel no Rio de Janeiro. O filme foi filmado até 2018 e finalizado em 2019. Foram mais de cinco anos de processo. Posso dizer que foi um dos projetos mais complexos que já realizei. Fico feliz de ter conseguido colocá-lo no mundo.

O filme não tem imagens de arquivo, depoimentos de outras pessoas, retrospectiva de carreira, etc. Desde o início, foi uma escolha mostrar o presente do artista ou foi algo decidido ao longo do processo?

Quando idealizei o documentário, eu imaginava que poderia ter mais controle sobre as cenas e seguir um roteiro mais fechado. Depois da minha primeira viagem com o Arto para Veneza, vi que teria que ser muito mais flexível e jogar com as situações sem muita intervenção. No final das contas tive que improvisar muito. Acho coerente, uma vez que o personagem central do filme é um mestre da improvisação. Eu nunca quis fazer um filme biográfico, meu interesse sempre foi o processo artístico do Arto acontecendo diante da câmera. Por esse motivo acabei utilizando o “cinema direto” como método de trabalho e me coloquei na posição de apreensão da realidade com a mínima intervenção.

Em uma entrevista, você disse que queria “fazer um filme para apreender o ‘gesto’ artístico do Arto Lindsay”. Depois de tudo, mudou algo na sua visão sobre o trabalho dele? Como é, afinal, esse gesto?

Em 2014 fui convidado para fazer uma entrevista com o Arto para a Revista Polivox. Eu tive que fazer uma profunda pesquisa sobre a sua carreira e obra. Eu não conseguia entender como um artista americano tinha tanto domínio sobre a cultura brasileira. Não entendia como ele conseguia dominar os ritmos brasileiros com tanta desenvoltura. Este foi o momento em que me deparei com as informações que mais me surpreenderam sobre ele. Naquela ocasião, descobri que ele passou parte da infância e adolescência em Garanhuns, no interior de Pernambuco. Entendi a consciência e o interesse que ele tem sobre o transe no Candomblé. Pude entender como ele aplicou isso nas performances de sua lendária banda experimental, DNA. Acho que esse foi o momento em que me aprofundei nos detalhes que me permitiram construir o filme. Durante o processo de produção acho que as informações que mais apreendi foram musicais. O “gesto” artístico do Arto está no filme; ele está em mim também. Porém não saberia delimitá-lo objetivamente. Acho que fiz o filme por faltarem palavras para isso.

Qual performance registrada te pareceu mais desafiadora? Ainda hoje, depois de décadas de carreira dele, você sente estranhamentos por parte do público?

Eu gosto muito da performance do Arto com o Jim O’Rourke (ex-membro do Sonic Youth) no Japão. Depois daquele show passei a pesquisar profundamente a carreira dele. A outra apresentação no Japão eu considero bem especial também; ele com a cantora japonesa Ichiko Aoba. Achei um encontro inusitado. Mas acho que a performance mais importante foi a que registrei em 2013, ele com o Paal Nilssen-Love. Tive um insight com a câmera na mão que me levou a fazer o filme. As performances do Arto sempre têm um lado suave e um lado agressivo. Nem sempre as pessoas conseguem digerir bem os momentos mais barulhentos. Eu acho que essa dualidade é um dos seus maiores trunfos como artista.

As apresentações são muito fortes pelos diferentes trabalhos de palco e de som, sempre diferentes a cada lugar. O próprio Arto vem falando muito sobre como está interessado na espacialização do som e coisas do tipo. Foi um desafio capturar, em termos de imagem e som, esses experimentos?

Sim, foi desafiador para mim. Filmamos no Brasil, Estados Unidos, Itália e Japão. Os desafios técnicos no Brasil e nos Estados Unidos foram mais amenos pois tenho parceiros de trabalho de longa datas nos dois países. No Japão e na Itália tive que trabalhar com pessoas que eu não conhecia; o que torna tudo um pouco mais estressante. Em relação à imagem fico mais tranquilo pois sou diretor de fotografia também. Em relação ao som, eu tive que confiar nos técnicos com quem tive a oportunidade de trabalhar. Aproveitando para agradecer aos amigos engenheiros de som, Renato Godoy e Zak que foram fundamentais no filme. Eu sei como é difícil gravar bem os momentos “noise” das performances do Arto.

O documentário mostra muito fortemente a ligação do artista com outras artes, como a performance na galeria, a Maria Martins, o Duchamp tantas vezes, etc. Qual é a importância dessas linguagens para a obra do Arto?

O Arto tem uma ligação direta com o universo das artes visuais. Ele colabora com muitos artistas e se inspira muito neles também. Ele já desenvolveu projetos com o Matthew Barney, Dominique Gonzalez Foerster, Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno e muitos outros. No filme registramos a performance dele com a artista visual coreana/americana, Anicka Yi, ganhadora do Hugo Boss Prize, no museu Punta della Dogana em Veneza. Um dos momentos mais emocionantes do filme pra mim foi ter filmado com o Arto dentro da sala onde está o “Large Glass” do Duchamp no Museu de Arte da Filadélfia. Foi muito inspirador vê-lo refletindo diante da obra. Ele tem uma profunda ligação com o Duchamp, mas eu acho que a obra da Maria Martins tem uma influência ainda maior sobre ele.

Arto Lindsay 4D está em cartaz virtual e pode ser assistido gratuitamente na plataforma Looke.

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