Os Supridores: teoria e prática de um plano de revolta
Romance de José Falero narra sonhos e transgressões na vida de dois jovens da periferia de Porto Alegre
Quando jovens, KL Jay e Mano Brown faziam da sala de café da firma o núcleo do encontro Zona Norte/Zona Sul de São Paulo que deu origem aos Racionais MCs. Na escassez de grana, espaço e tempo, diz Brown, a dupla “ficava no quartinho quando não tinha nada pra fazer, tomando cházinho e castelando rap, pensando mil fita, trocando ideia”. A cabeça do rapper, porém, já não estava muito naquilo de crescer dentro da empresa, subir de cargo, virar gerente, sei lá: desde que fora caguetado por um colega no emprego anterior, num depósito de supermercado, por conta de um Danone roubado, Brown sentia-se empurrado de vez para a música. “Esse cara fundou os Racionais, esse arrombado.”
Em Os Supridores (Todavia, 2020), primeiro romance do gaúcho José Falero, a história é centrada num encontro não muito diferente daquele. No livro, dois jovens da periferia de Porto Alegre, Pedro e Marques, trabalham numa grande rede de supermercados repondo estoque, precificando e organizando as prateleiras. Na prática, dois faz-tudo do chefe seu Geraldo — e os melhores da seção, como ele odeia admitir. O que não os impede de, nos intervalos, castelarem sonhos de vida melhor enquanto suprem o grande estoque de raiva acumulada comendo uns docinhos surrupiados da empresa. “É tudo nosso também. Pode comer sem culpa”, garante Pedro.
Leitor voraz, o contato com o pensamento de esquerda é explosivo na cabeça do morador do extremo leste da capital gaúcha. No amigo Marques, ele encontra a primeira pessoa disposta a ouvir, ainda que com afobação e relutância, suas longas digressões sobre a exploração capitalista.
Isso é o que nego chama de “empreendedorismo”. Só que eu, sabe como é que eu prefiro chamar isso? Eu prefiro chamar de “roubo legal”. É, “roubo legal”. Eu acho isso assim porque a lei permite isso, mas, quando tu age assim, tu ta pegando pra ti um dinheiro que, por direito lógico de produção, simplesmente não te pertence, ou seja, tu tá roubando sob a proteção da lei.
Para Pedro, é de roubo legalizado que as relações de trabalho instituídas são feitas e, sendo assim, eventuais contravenções da classe explorada estão plenamente justificadas. A contravenção escolhida de modo natural pela dupla é vender maconha, produto em falta no mercado e desinteressante, em função do lucro baixo, para o tráfico local.
Só que eu tô cagando e andando pro ponto de vista deles, Marques. Eu tenho acesso ao castelo, pra limpar o chão e pra podar os arbusto, como eles quer que eu faça e como eu sempre fiz a vida todinha, mas, além disso, eu vou aproveitar pra vender erva mágica pros filhinho dele!
A intenção inicial dos dois é operar abaixo do radar da polícia e dos grandes traficantes de pó e crack, repartindo igualitariamente os lucros com os colaboradores e evitando, sempre que possível, métodos mais truculentos. O insólito grupo que se forma em torno dos dois, e começa a avançar na ousadia, é movido mais pelas frustrações e demandas pessoais do que pela vocação para a criminalidade.
Marxista sem fé
Na verborragia de Pedro está o grande lance inicial do romance de Falero: o supridor usa metáforas e parábolas do dia a dia do supermercado não para fazer uma releitura simplória, palatável ao “discípulo”, de um marxismo tardio. Ao contrário, cria em voz alta suas próprias sínteses, largadas a quem queira ouvir — e que seja de confiança, é claro, que ele não é otário.
O próprio autor teve suas primeiras leituras de Marx quando ingressava no mesmo emprego de seus personagens. Falero reluta em definir Pedro como marxista apenas com base na porção de existência relatada do protagonista (“Velho, o que define a vida de uma pessoa é toda a vida dela”), mas admite nele essa orientação básica, presente no modo de conduta dentro do tráfico. Ela, porém, é oscilante. “Embora ele pense e implemente onde pode o que entende por pensamento marxista, dá pra notar em alguns momentos que ele tem um certo cansaço intelectual em relação a Marx”, observa o escritor (confira aqui a entrevista completa).
José Falero lembra que, logo no capítulo quatro do livro (do total de 22), o jovem já perde momentaneamente o idealismo. “Ali ele diz: ‘Foda-se, eu quero é o dinheiro’. Ele tem muito respeito e empolgação, quando pode pôr em prática essas idéias ele põe, não perde a oportunidade, mas tem uma desesperança nele também. É um marxista sem fé.”
Uma usina a todo vapor
Pedro difere-se dos seus pares porque a brutal insatisfação que sente não costuma obstruir sua inteligência por completo, e a vontade de vingar-se de quem está no topo não implica, a princípio, em derrubar quem está ao lado. Tem a energia de um jovem em busca de autoestima, sentido e ilusão de controle. Pensa e corre para não ser “uma puta duma usina trabalhando a todo vapor só pra acender uma bosta duma lâmpada”, como define.
O projeto bolado por ele não vai dar lá muito certo, o leitor verá, mas a ágil cadência da trama contada a partir dali — meio machadiana, como já disseram, mas meio quadrinho de ação também — é a de um jovem suburbano que bate cabeça a todo momento na tentativa de conciliar teoria e prática de um plano de revolta.
O livro tem a limpidez de uma narrativa tradicional, mas os diálogos ágeis das histórias em quadrinhos e a organicidade da fala de um samba ou um rap. Antes da literatura, José Falero passou pelos dois campos de criação e tentou, antes de Os Supridores, se aventurar em um romance de ficção especulativa, de traços fantásticos. Escrevendo e desenhando mangás por anos, desenvolveu a capacidade de criar personagens. “Foi toda a minha base nesse sentido de saber construir não só a subjetividade dos personagens, mas também o curso de ocorrências, um arco dramático que faça sentido e que seja interessante. Tudo isso foi no mangá que exercitei”, conta.
Quanto à música, que estudou de modo autodidata e exercitou na criação para montagens teatrais, a influência é mais “indireta e inconsciente”, segundo ele. “Claro que tem coisas evidentes: tem muito Racionais nos meus textos, muito mesmo. Mas essa influência, que é consciente, não é só pela questão musical, mas filosófica também, pelo modo de pensar dos Racionais e mais especificamente do Brown.”
Em algumas ocasiões, um leitor/ouvinte atento pode catar paráfrases, quase citações literais, do grupo paulista. Não é pra menos. Pedro, Marques, KL Jay, Brown, todos dão com a cara na porta em algum momento, mas sabem que seu chamado não é a salinha de depósito: a “contravenção” final é castelar um rap, um pensamento vivo e constante, e não aos intervalos.