Por uma outra narrativa de rock

Jairo Macedo
depoisdosom
Published in
6 min readOct 15, 2020

Cadão Volpato revisita a história do Fellini e do pós-punk paulista de modo poético e bem-humorado

Depois de romances, contos e literatura infantil, o jornalista, escritor e músico Cadão Volpato arriscou-se no campo da não-ficção. Lançado no fim de 2018, À sombra das viadutos em flor (SESI-SP Editora, 137 páginas), seu 10º livro, apela à memória para contar uma história de jovens em busca de uma identidade pessoal, artística e coletiva no mundo. A história dele e seus amigos músicos dos anos 1980 em São Paulo.

A narrativa curta remonta a um tempo muito específico da vida do autor e da música brasileira, de modo afetivo na intenção e impressionista no método. Nela, o autor busca, e encontra, uma outra narrativa de rock. Volpato foi vocalista e letrista do Fellini, banda criada no meio pós-punk paulista dos anos 80.

O grupo passou despercebido pela grande mídia na maior parte de sua curta existência, ocorrida de 1984 a 1990, e depois com Amanhã é tarde, de 2001. Contrariando a lógica, porém, o Fellini formou um fiel grupo de admiradores a dos anos 90, influenciou grandes bandas a partir dali e, além das ocasionais apresentações, segue vasculhando e lançando materiais, como Você nem imagina (2010), despojada gravação ao vivo em estúdio de canções antigas, e A melhor coisa que eu fiz, série de registros de época até então inéditos, reunidos e lançados neste ano, em LP, pela Nada Nada Discos. Houve ainda o show/documentário O dia do adeus de Fellini, registrado por Zefel Coff em 1998, em Brasília, e lançado apenas em 2019, e Posta restante, outro registro do fundo do baú.

Quando em atividade, o grupo dividiu palcos — e integrantes, em alguns casos — com Smack, Voluntários da Pátria, Akira S e As garotas que erraram, Mercenárias, entre outros. Era uma geração intermediária do rock brasileiro, não próxima o suficiente da barulheira punk da periferia, nem confortável o bastante para fazer playback em programas de auditório.

Jovens universitários, cinéfilos, politizados, existencialistas ou surrealistas, com alguma predileção pela poesia, videoarte e outro tanto pela música minimalista. Frequentavam casas como o Madame Satã e o Napalm em regime de estranhamento perante a cidade e o país.

E no caminho do Madame Satã ia a nossa caravana de vampiros, a pé pelas ruas do Bixiga. (…) Naquele tempo, atraía uns tipos perdidos, atores desgarrados, gente da alta sociedade, punks de butique, gays, roqueiros recém-saídos do berço, meio new wave, meio pós-punk, todos misturados. Numa gaiola suspensa no teto, uma garota de cabelo platinado mastigava as folhas de um repolho. Era uma performance caipira, que não fazia mal a ninguém.

Fãs de bandas inglesas como Joy Division, Durutti Column e Stranglers, essa geração encenava no centro de São Paulo o mesmo cenário obscuro e sufocante de qualquer metrópole daquele tempo, que os empurrava para a melancolia e a sisudez. Neste último quesito, o Fellini sempre falhou miseravelmente e de propósito. O livro de Cadão Volpato é essencialmente sobre isso.

Riso pós-punk
À sombra dos viadutos em flor narra, como nas canções do Fellini, um período de descoberta e uma profusão de referências sem fim, intercalados por um tipo de humor que tergiversa e se autoironiza. O tempo “em que mais ri na vida”, escreve ele.

O livro começa na mudança de Cadão, aos 26 anos, para a república que dividiria com Minho K e Alex Antunes, ambos jornalistas e músicos, na avenida Nove de Julho. Na geografia da cidade, “o lugar mítico para o qual a gente raramente vinha”. Na geografia do apartamento, “dois universos organizados e um asteróide caótico, que era o meu”, define Volpato.

Foi o tempo em que, depois da infância, eu mais ri na vida. Essa tensão entre os motivos sombrios de Manchester e o tédio de São Paulo na agonia da ditadura explica muito do que aconteceu em nosso reduto. A diferença entre os tons de cinza das duas paisagens é que nós conseguíamos encontrar na nossa motivos para rir. E ríamos o tempo todo.

A partir daí, o autor começa uma narrativa deliciosa, protagonizada por alguém que vaga pela cidade como num filme de Truffaut ou do realismo italiano. Em dado momento, a leitura parece quase uma ficção, como às vezes se dá com a memória e com os livros que dela se valem.

O jovem Cadão Volpato engata, distraído, em diversas possibilidades da vida. A mais imediata é a carreira de revisor, a princípio em uma enciclopédia (“não passamos da letra ‘D’”) e, depois, na revista Veja (“em geral, nós éramos invisíveis”).

O trabalho atravessava as madrugadas na redação. Nos momentos de folga, ele ocupava-se de, quem sabe, ser escritor. Terminou músico, por força do convite de Thomas Pappon, que tocava bateria em duas bandas, mas queria ser baixista no novo projeto.

Assim nasce o Fellini, em shows na penumbra da casa gótica Madame Satã, mas também em ensaios aos sábados na casa de Thomas, sempre ensolarados. “Era um mistério metereológico.”

Assim permaneceu o Fellini, nos títulos autoirônicos dos discos, como O Adeus de Fellini (1985) e Fellini só vive 2 vezes (1986), que punham a banda sempre a um passo do fim, e nas ocasionais reuniões para apresentações ao vivo ao longo das décadas. Sempre que uma destas ocorre, os integrantes garantem: é a última. Mas o Fellini acaba retornando mais uma vez, e outra, e outra.

Memória e criação
O grupo adotaria a estética de seu tempo, mas levaria ao limite a predileção por registros gradativamente mais caseiros e minimalistas, além de mais abertos à música popular brasileira do que seus pares. Vestiam-se de preto e colocava os compassos duros do baixo à frente das guitarras, como era comum no pós-punk, mas terminariam gravando discos de fundo quase bossanovístico, especialmente o hoje cultuado Amor louco (1990).

As letras de Cadão combinavam momentos prosaicos do dia a dia com colagens de filmes, poesia, política, televisão. O que viesse. Daquele tipo de fala em canção da qual o ouvinte cata algumas deixas e outras ele deixa escapar.

São escritos que vão do niilismo comum do gênero (“Muitas semanas eu vivi no escuro/com meus olhos atrofiados/meus sonhos terminaram/andando do quarto pra sala/da sala pro quarto”) ao cotidiano de uma família ainda por vir (“Pretendo ter dois lindos filhos/Uma menina e um robusto menino/Botar eles na escola desde o princípio/Mandar às favas os vizinhos/(…)E terminar todas as fábulas/Quando eu sair da chaminé”).

As metáforas desta última, a canção Pai, residem na memória infantil de Cadão e são, como tantas outras músicas da banda, revisitadas no livro. Sempre meio de passagem, um esboço na caminhada.

Qual trabalho?
Aí reside, provavelmente, os maiores méritos de À sombra dos viadutos em flor. O livro serve tanto ao fã da banda, cuja época é carente de registros, quanto àquele que busque os bastidores da criação de um artista. Da fagulha de uma ideia mal rascunhada à execução em grupo, das possibilidades de sucesso e fama às ironias de um mercado fonográfico capenga e conservador.

Mas, no carrossel do eterno retorno, Fellini reaparece de chicote na mão no set de 8 1/2, em preto e branco, confundido na minha memória com certa banda de rock de São Paulo dos anos 1980 do século vinte. Ao som de uma valsa dos Stranglers. À sombra dos viadutos em flor.

Debaixo dos viadutos, Cadão lembra com carinho das visitas à casa da mãe aos domingos, das madrugadas pelas casas noturnas, das drogas, do sexo, das bandas amigas que deram certo (Renato Russo viveu algum tempo naquele apartamento) e daquelas que caíram no esquecimento. De um encontro com o Caio Fernando Abreu, recorda-se do elogio enfático do escritor ao seu trabalho. “Qual trabalho, o de revisor?”, perguntou Cadão.

--

--