O mito da estabilidade na carreira em TI

Ou em qualquer outra indústria, YMMV

Fabio Mont’Alegre
DER UMWELT

--

Nesses tempos de crise e passaralhos, aquela decisão de pedir demissão e procurar um novo emprego ganha uma forte razão para ser adiada. Mesmo com alguma coisa em vista, é sempre melhor não trocar o certo pelo duvidoso. Ainda mais sob o regime CLT, que “premia” o trabalhador por tempo de casa, dado à multa de 40% que incide sobre o resgate do FGTS.

Você pensa: vou ficar por aqui mesmo até essa onda passar, sair agora é muito arriscado. Só que talvez você esteja acumulando um risco bem maior ao seu futuro.

Ao longo da sua carreira você acumula valor, aumentando seu conhecimento por enfrentar desafios em projetos interessantes, e esse valor faz que você seja um profissional interessante ao mercado. Mas você também acumula risco, pois com o passar dos anos vai se acostumando às idiossincrasias do seu atual empregador.

Todas as empresas têm seus processos viciados — aqueles que aparecem na hora de um prazo apertado e, por falta de uma reorganização, acabam se tornando parte da cultura delas.

Você sabe, aqueles relatórios sem dono que você de vez em quando tira para o financeiro, aquele domínio que você registrou na sua conta do Registro.br e precisa lembrar a chefia que tem que passar a responsabilidade para quem deveria cuidar disso, aquele script para converter uma tabela que você fez e uma vez por ano precisa ser rodado, aquela reunião para compra de um novo software que é americano e te chamam porque o seu inglês é o melhorzinho da equipe e você acaba virando o contato deles na firma.

Essas tarefas vão fugindo do famoso “job description” mas é o que se chama de ser proativo hoje em dia: tudo tem deadline, os projetos atrasam e é preciso colocar o boi na rua. Você cede.

O dia a dia de um projeto também pode ser fonte de acúmulo de risco. Já vi casos de pessoas que ficaram dez anos numa empresa no mesmo projeto e ele ser cancelado sem ver a luz do dia. Dez anos trabalhando com as mesmas ferramentas, a mesma versão de banco de dados. Algo de valor sempre existe, mas pense em que profissional você está se tornando. Quando se olha para o mercado como um todo, essa experiência pode ser aproveitada em outro lugar?

Também acompanhei de perto profissionais que, passando por vários processos de downsizings dentro da mesma empresa, tomavam conta de quatro equipes diferentes. O risco está em ser uma pessoa que dá conta de controlar incêndios vindo de todos os lugares, e tiro o meu chapéu para quem consegue fazê-lo. Mas pense em quantas vagas de emprego vão ser anunciadas como “precisa-se de gerente de tecnologia que saiba apagar incêndio de quatro equipes ao mesmo tempo”. Difícil, né?

Veja bem, é impossível não acumular risco, independente da dinâmica do seu atual emprego. Ele existe porque você envelhece e com um aumento aqui, um dissídio coletivo ali, você acaba ficando mais caro para empresa.

Os novos projetos, mais interessantes, vão entrando e a tendência é eles irem para pessoas mais novas, já que os que têm mais tempo de casa estão apagando incêndios de outros projetos-legados. A sua idade em si é um fator de risco, porque a recolocação é mais difícil à medida que a idade avança.

O que se pode é tentar mitigar o risco, sempre pensando em quanto valor você está acumulando; e isso vai depender somente de você. Se existir uma abertura para trocar de projetos dentro da mesma empresa, é sempre uma boa. Senão, existem muitos cursos online de graça para se inteirar sobre novas linguagens, bases de dados. Alguns até dão certificado, caso eles sejam importantes para o que você faz.

As empresas, por sua vez, não estão ajudando muito. Nos últimos anos, a tendência tem sido se investir em bens e não pessoas — compre um computador mais rápido e eles vão entregar mais rápido, né? Só que as coisas não funcionam assim.

Computadores estão ficando cada vez mais baratos, pessoas estão ficando cada vez mais caras. A impressão que eu tenho é que se tem investido cada vez menos em qualificação do quadro de funcionários, esse é um dos primeiros cortes num período de crise (depois dos lanchinhos e agradinhos em geral).

Outro fator preocupante é que os aumentos de salário vão virando lendas depois de uns bons anos dentro da mesma empresa. A solução acaba sendo almejar por uma promoção que pode vir quando o seu chefe for promovido ou até se aposentar. Só que ele, que deve ter talvez uns 10 anos a mais que você, está numa posição pior que a sua.

Não para por aí, você provavelmente não está sozinho nessa. Todos os seus pares, colegas na mesma faixa-etária que você, estão almejando aquela mesma promoção. Invariavelmente, vai começar a rolar um back-stabbing de leve. Não é mau-caratismo, é desespero mesmo. Eles estão na mesma situação que você. Então um vai começar a almoçar mais com a chefia, vai soltar um “ih, ele já foi embora, tá meio desmotivado”. São pequenos comentários que vão escalando e criando um clima tóxico ao seu redor. Além de risco à sua carreira, isso pode até virar um risco à sua saúde.

É importante saber que não importa o quanto de risco você acha que acumula pela empresa, isso não vai garantir a estabilidade do seu emprego atual ao longo prazo. Na verdade, com o passar dos anos, a empresa só tem a lucrar com a sua saída. Se ela for pelo lado certo, sem você, as partes que não entravam em atrito vão finalmente colidir e deixar claro que é preciso estabelecer novos processos. Se ela for pelo errado, e tudo continuar na mesma, alguém que custa menos do que você vai tomar o seu lugar.

Nos próximos 20 anos o mercado de trabalho vai mudar exponencialmente. Estudos indicam que, só nos EUA, 40% da força de trabalho vai ser substituída por algum tipo de automação. À luz disso, todas as escolhas que fazemos em relação a nossa carreira têm que abraçar esse ritmo de mudança e se beneficiar dele.

É o que o filósofo líbano-americano Nassim Taleb chama de antifragilidade.

Para Taleb, o contrário de frágil não seria robusto. Algo que é frágil teme mudanças. Algo que é robusto é neutro quanto a mudanças. O antifrágil é o que cresce com a mudança.

Existe um caso clássico de antifragilidade que Taleb menciona em seu livro Antifragile. Dois irmãos gêmeos de 63 anos moram em Londres. Um é taxista, o outro trabalha numa grande empresa, ambos ganham 14 mil reais mensais.

Numa crise, esse último é mandado embora. Já com uma certa idade e muito acostumado com o seu trabalho no escritório, ele não consegue um novo emprego. O irmão taxista, por rodar a cidade inteira, notou que a coisa não andava muito boa. Esperto, ele foi se adaptando. Passou a rodar bairros mais nobres, conversou com os passageiros para saber quais os trajetos que eles ainda faziam de táxi. Com o tempo ele conseguiu driblar o tempo ruim e até ganhar um pouco mais, porque foi forçado a repensar como exercia seu trabalho.

Tem uma lição aí. Frequente lugares diferentes, fale com pessoas de outras áreas, entre numa livraria e compre um livro aleatório. Áreas como filosofia, biologia e estatística vão ser mais importantes para TI do que o que você faz hoje em dia.

Há quem diga que as corporações morreram na crise de 2008. Talvez morte seja um termo muito forte, eu diria que aconteceu um “pulo do tubarão”. O certo é que as grandes empresas criavam uma ideia de “vem trabalhar aqui que a gente cuida de você” até umas décadas atrás.

Se você puxar pela memória, pode até lembrar do papo do RH sobre plano de carreira, carreira em Y, participação nos lucros, entre outras palavras mágicas. Tenho certeza que eles não têm ideia do que está acontecendo com o mundo de TI. Cabe a você, diariamente, se perguntar se a sua equação risco x valor está bem balanceada, especialmente nesses tempos bicudos.

--

--