Não Calarão a nossa fé!

(Des) Estigmatizar
des-estigmatizar
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4 min readNov 21, 2018

por Cristina Soares

IMAGEM: Reprodução/ Tumblr

Com o assassinato da vereadora e ativista pelos direitos dos negros, Marielle Franco, em março deste ano, as discussões sobre o racismo e os rastros de sangues deixados na história do Brasil pela escravidão ficam cada vez mais escancarados na mídia. A aversão que boa parte da população brasileira parece sentir a tudo que faça a mínima referência às nossas origens africanas não é novidade.

Em 2015, Kailane Campos, que na época tinha 11 anos, foi atingida com uma pedra na cabeça quando saía de um culto por usar as vestimentas da sua religião: o Candomblé. Na onda desumana que o país vive (dessa vez, abertamente desumana) e os anos cheios de incertezas que temos pela frente, mais do que nunca, é importante estar disposto a conhecer o outro para evitar qualquer pré-conceito, repulsa e a violência. Esse ciclo vicioso, que tem como base a ignorância, só tem a possibilidade de se findar com a educação, no seu sentido mais amplo.

Os africanos tiveram suas raízes podadas do continente mãe e submetidos ao cativeiro da escravidão. No Brasil, essa situação perdurou durante quase 400 anos. Um medo comum entre as gerações de negros escravizados que nasceram em terras desconhecidas era o de serem enganados pela memória. Em meio ao convívio diário com a dor, pensar sobre a situação que foram colocados era um grito de saudade, mas acima de tudo, de resistência.

Ao passo que os padres jesuítas catequizavam a colônia e davam ao catolicismo o posto de religião oficial da província Brasil, os negros africanos escravizados foram proibidos de exercer livremente suas crenças, na verdade, a palavra liberdade e todos os seus sinônimos foram usurpadas. O caminho encontrado por eles para perpetuar as doutrinas que havia em cada tribo foi a aproximação com os santos da Igreja Católica. Dessa prática, nasce o Candomblé.

O Candomblé, como espaço para prática religiosa, cria forma no estado da Bahia, em meados do século XVIII. É monoteísta, acredita na existência do ser supremo — Olórum, e seus enviados — os Orixás. O Candomblé e a Umbanda se diferenciam em diversos aspectos, mas o principal é que hoje boa parte dos candomblecistas são contra o sincretismo, usado como mecanismo para salvaguardar a memória, e desejam retornar às raízes africanas. Em contrapartida os umbandistas enxergam essa mistura religiosa como algo mais positivo.

Ilustrações que representam as vestes e desenhos na pele que influenciam as práticas e rituais religiosos no Candomblé. IMAGEM: Reprodução/ Tumblr

Os Orixás, a representação mais conhecida do senso comum sobre a religião, são muitas vezes confundidos ou relacionados com os demônios existentes nas crenças de origem cristã, como é o caso de Exu, que é a entidade que representa a comunicação, a paciência, a ordem e a disciplina. Historicamente, representavam os nomes das famílias e das tribos, que hoje são inexistentes na África, de onde os negros foram raptados. São entidades que representam a força e a energia da natureza. Eles possuem um papel importantíssimo nos rituais religiosos por serem incorporados pelo praticantes mais experientes.

O transe é o ritual estigmatizado como macumba, feitiçaria ou magia negra, mas na verdade, em outras crenças também existem rituais similares.

“O transe não é exclusivo da matriz africana. Até na própria Índia e na própria renovação carismática existem situações de transe que eles denominam como orar em línguas, estar em contato com o Espírito Santo”

conta Éden Barbosa, que é adepto da religião há 14 anos, mestrando em Políticas Públicas e Sociedade e realizou estudos sobre as Práticas Educativas Digitais no Candomblé.

Os rituais são cheios de músicas, com o uso de instrumentos de percussão, cânticos, danças e oferendas aos Orixás. As cores das roupas que são usadas se diferenciam de acordo com os gostos do Orixá que se destina a oferenda. Normalmente, essas práticas acontecem em rodas de terreiro e são dirigidas pelo pai (babalorixá) ou mãe de santo (iyalorixá). Os adeptos do Candomblé levam 7 anos para concluir a iniciação dentro dos preceitos. “Se for estudado à luz da ciência são similares. Todas são hierárquicas: o ato de iniciação até se tornar padre. Os sacramentos são formas iniciatórias. Está tudo conectado, estamos todos juntos” comenta Éden, comparando o Candomblé com o Catolicismo.

A verdade é que nada é tão individual como as nossas expressões de religiosidade (ou até a falta delas). A liberdade para poder acreditar no que se deseja acreditar, a liberdade nos sentidos mais puros da palavra, não pode mais ser amordaçada. Anos de escravidão, maus tratos, falsas promessas meritocráticas, pedras, tiros, ameaças (quase sempre tudo ao mesmo tempo) não calaram a fé de quem deseja se reconectar as suas origens e lutar pelo seu direito de existir. Eles nos tiraram Mestre Moa, mas nunca tirarão nossa fé!

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