Fim de noite

Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além
6 min readMay 15, 2020
O Gigante Tímido após o horário do expediente

— Tec, tec, tec!

— Já estamos fechados amigo, sinto muito! — Diz o taverneiro enquanto limpa uma das mesas de madeira da sala principal de sua modesta taverna.

— Tec, terec, tec!

— Amigo, por favor, estou cansado e, infelizmente não estou em condições de atender mais ninguém hoje! — O homem para de passar o pano pelo tampo úmido da mesa e se dirige até a porta com um suspiro profundo e cansado.

O caminho não é longo, talvez uns cinco ou seis passos e não houve nenhuma outra batida nesse tempo. Porém quando o taverneiro abriu uma fresta na porta, apenas suficiente para espiar e dar o seu melhor sorriso sem graça, a próxima repetição estava prestes a acontecer.

Quem ele viu foi um draconiano, com suas escamas esverdeadas cobertas por um longo manto preto com detalhes azuis. O draconiano segurava um grande cajado de madeira rústico que terminava em um grande e imperfeito nó, aparentemente o instrumento que ele utilizava para bater na porta, pois ele estava prestes a fazer novamente isso.

— Perdão, meu bom jovem humano — Diz o draconato.
— Você, por favor, poderia abrir uma exceção para um velho lagarto com as pernas cansadas de andar pra lá e pra cá? — Ele posiciona suas mãos sobre o nó do cajado enquanto o apoia no chão e, por alguns segundos, o taverneiro pode jurar que o dragão na sua frente lhe lançava um olhar pidão, digno de um gato ou cachorro esperto que sabe conseguir o que quer.

— Desculpe meu bom senhor, mas já fechei pelo dia e de qualquer forma aposto que o senhor encontraria muitas tavernas melhores mais perto da parte alta da cidade. — O homem aparentando um cansaço, da de ombros e espera que o draconiano siga seu caminho.

— Mas seu estabelecimento me parece perfeitamente adequado para uma cerveja e quem sabe um cachimbo do Queimado da Ponte. Além do mais recebi muitas recomendações desse local. — O draconato espera pacientemente, por exatos cinco segundos, e como o taverneiro, com olhar de espanto, não parecia dar espaço ele seguiu em frente mesmo assim.

O velho esverdeado entra e vai diretamente para uma mesa localizada no canto próxima da lareira que já esta apagada e no exato momento que se senta, ele aponta levemente seu cajado na direção das toras secas e com uma fagulha alta as chamas começam a crepitar novamente.

O homem, que até esse momento estava embasbacado olhando meio de lado na porta, se vira e vai em direção ao balcão, passa para o outro lado e começa a servir a cerveja.

— Um Queimado da ponte então? E…você falou algo sobre recomendações? Poderia me dizer de quem?

O draconato tira seu pesado manto e o coloca sobre a guarda da cadeira.

— Bem, diversos conhecidos sempre falam sobre a Taverna do Gigante Tímido e sempre falam do bom atendimento que receberam, falam que o preço é justo, que a cerveja é gelada e que o Queimado é de ótima qualidade. Mas confesso que tenho maior apreço pelo atendimento. — O dragão da uma piscadela para o taverneiro boquiaberto, prestes a derramar cerveja por todo o balcão.

O homem se recompõem e desliga a torneira rapidamente. Ele da a volta no balcão e em poucos passos largos já se encontra ao lado do draconiano que está sentado com as pernas esticadas em direção ao fogo.

— Eu nunca imaginei que falassem bem assim de mim e da taverna! — Diz o taverneiro incrédulo, porém entusiasmado, enquanto entrega o caneco para o velho que o pega com ambas as mãos e da um longo gole que o esvazia pela metade.

O draconato lança um olhar curioso, por sobre a borda do caneco, na direção do homem, enquanto da pequenos golinhos. O taverneiro espera balançando sobre os pés de forma a tentar parecer casual.

Após o ultimo pequeno gole, o lagarto o questiona. — E por que você acha que seria diferente disso, meu jovem amigo? O seu atendimento é impecável, visto que abriu seu estabelecimento, mesmo estando obviamente cansado e triste, sua cerveja está maravilhosamente refrescante e aposto todas minhas peças de ouro, que diga-se de passagem, e uma tremenda quantia, que o Queimado da Ponte que você tem ai no bolso do seu avental vai ser o melhor que eu encontraria nessa cidade.

O taverneiro se atrapalha e rapidamente pega a pequena caixa de dentro do bolso. — Nossa, desculpe eu realmente acabei esquecendo, vou pegar um cachimbo para que o senhor…

Mas ele logo foi interrompido por um movimento rápido da mão do dragão, que com um movimento circular e um estalar das garras, fez surgir um cachimbo longo e adornado por runas, que logo estava com uma ponta em sua boca e a outra apontando em direção ao homem.

— Não precisa se desculpar meu caro, eu que sou apressado mesmo. Faria a gentileza? — Ele direciona seus olhos para a ponta do cachimbo que estava vazia.

— Ah, é claro, que sim, só um segundo. — O taverneiro abra a caixa e começa a despejar aos poucos a erva fina e enquanto faz isso as runas do cachimbo começam a se acender uma a uma, com uma luz esverdeada delineando as formas retas.

O taverneiro termina de preparar o cachimbo e se senta a uma distância respeitosa, desconfortável, como se não soubesse bem como começar um assunto. O draconato idoso estala seus dedos novamente e uma leve chama começa a queimar a erva e após alguns segundos e um punhado de tragadas minimas ele da uma longa tragada que é logo seguida por uma baforada onde a fumaça se transforma aos poucos, em um grande barco a velas, depois em um grande dragão batendo suas asas que aos poucos se desmancha no ar.

Aparentemente essa cena tirou o taverneiro de seu estado de timidez e enquanto o dragão de fumaça se dissipa seu olhar se direciona para o dragão sentado em sua taverna.

— Não é normal que os elogios sejam dados diretamente a mim, aparentemente. As vezes passo o dia sem alguma conversa que não seja um pedido por mais cerveja ou que uma mesa seja limpa. Acho que estou realmente cansado, talvez até um pouco demais.— O homem baixa seus olhos para o chão e apoia a cabeça nas mãos.

— Jovem amigo, acredito e reconheço o que você diz — O draconato deixa escapar fumaça por suas narinas enquanto fala. — O que posso dizer é que nem sempre um bom trabalho é reconhecido como deve por aqueles que nos rodeiam, as vezes as pessoas correm por sua vida e não param para perceber os detalhes, como uma boa cerveja e como a pessoa que serve essa cerveja merece atenção e merece aprovação, mas isso não significa que o trabalho é ruim, ou que aqueles que o consumem não são agradecidos pelo fato de tudo isso ser feito e existir. — O dragão idoso pega o cachimbo e vira sua ponta em direção ao taverneiro. — O que acha de dividir esse delicioso Queimado com alguém que está lhe mostrando que as vezes o reconhecimento vem quando menos esperamos?

O taverneiro hesita por alguns segundos mas estica sua mão e pega o cachimbo. — Acho que você pode até ter razão, senhor…?

— Bronn T’hssaorul, mas pode me chamar de Bronn. — O draconiano sorri e observa o taverneiro tentando criar formas com a fumaça.

E é provável que no decorrer dessa conversa e dessa noite, o taverneiro consiga fazer um barco e talvez um pássaro voando com a fumaça de seu cachimbo e também é provável que o draconato esteja estalando seus dedos discretamente para que ele não perceba.

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Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além

“As vezes tudo que precisamos são umas palavras espalhadas ao acaso pra fazer a maré virar pro nosso lado”