Presas Brilhantes na Noite Escura

Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além
9 min readJun 8, 2022
Phandalin em um dia cinza com a Mansão Tressendar ao fundo.

Chovia pelo terceiro dia seguido, portanto ambas estavam com os nervos a flor da pele. Lolita uma halfling Pés-Ligeiros e Kathani uma humana de pele escura originalmente de Zakhara, irmãs de tudo menos de sangue saíram a algumas horas de Phandalin, onde a busca por trabalho e, quem sabe, algo valioso que pudesse ser “pego emprestado”, resultou apenas em dor de cabeça e na certeza absoluta de que já estavam naquela cidade a tempo demais, afinal os olhares dos guardas e do prefeito pareciam indicar que sabiam mais do que deviam sobre as duas. Saíram em meio ao entardecer chuvoso e agora com suas capas encharcadas e pesadas andam lado a lado pelo canto de uma trilha lateral que corta a Estrada Trijavali. Pensam em que caminho tomar, pois sabem que se continuarem seguindo a sudoeste inevitavelmente acabarão vislumbrando a Estrada do Comércio de onde poderão seguir ao norte para Inverno Velado e ao sul para a metrópole de Águas Profundas e seus problemas e possibilidades de cidades grandes. Mas isso era um problema para a Lolita e Kathani do futuro, as do presente só precisavam encontrar um local apropriado para erguer acampamento e tentar se proteger da chuva e do frio até o amanhecer.

Era meia madrugada quando o primeiro uivo acordou Lolita. A halfling imediatamente se levanta e sai de dentro da barraca para a garoa fina que desce se misturando a uma estranha névoa que desliza arroxeada em meio a vegetação rasteira. Kathani já esta com suas adagas de prontidão, ficando de costas para sua companheira quando o segundo uivo toma conta da noite. Lobos comuns tão perto da estrada? Muito improvável. Lobos Atrozes, talvez? O pensamento foi interrompido por uma série de grunhidos e rosnados vindos da direita, ou será da esquerda? A névoa está mais alta agora, quase cobrindo a cabeça da halfling, olhos vermelhos as observam envoltos em tentáculos de névoa obscura. Som de patas se chocando fortemente contra o chão e agora elas os veem. Lupinos sim, mas não são lobos, as criaturas gigantes cuja parte humana não pode ser vista agora caem sobre as duas, golpes e estocadas acertam seus alvos, mas o grupo de Lobisomens é grande e feroz e a luz da noite se apaga para as aventureiras.

Lobisomem Atroz em busca de sua presa

O tremor da carruagem e o choro baixinho de uma garotinha foram as duas coisas que acordaram Kathani. Ao lado dela sua amiga dormia com a cabeça descansando encostada em seu braço, uma grande bandagem suja de sangue escondia metade de seu rosto. Ela sentia as costas ardendo em brasa e lembrou das garras dos inimigos cortando sua carne. Como e por que ainda estavam vivas eram questionamentos que deveriam ficar para depois, o mais importante é o que estavam fazendo dentro de uma carruagem de luxo com uma garotinha chorando e um homem e uma mulher vestindo roupas da mais alta aristocracia faeruniana e para onde diabos estavam indo. A ladra questiona seus companheiros de viagem, mas tudo que recebe em troca são olhares vazios dos adultos e olhares repletos de lágrimas da garotinha magra, até que a carruagem para com um solavanco e quase imediatamente a porta se abre revelando uma noite fria com uma garoa leve do lado de fora e é nesse momento que a criança suplica as palavras que no decorrer da noite infelizmente farão sentido.

— Por favor mamãe, não deixe o Diabo me levar”.

Minha irmã ainda esta desacordada e então a coloco sobre o ombro para seguir atrás do grupo que sai. Do lado de fora a chuva leve encharcava o solo e as pedras de um gigantesco e ameaçador castelo, repleto de vitrais vermelho escuro e torres vigiadas por gárgulas de pedra em poses grotescas de carnificina. A mesma bruma arroxeada vista durante a emboscada podia ser vista ali, como que espreitando por entre as grades do enorme portão de ferro separando o jardim do castelo do restante de onde quer que esse lugar fosse. O caminho até a porta principal foi curto e inevitável visto que os enormes cavaleiros de armadura escura que dirigiam essa estranha carruagem sem cavalos estavam ladeando o grupo com uma das mãos descansando vigilante sobre a bainha da espada. Antes mesmo de pisarmos no pórtico a porta se abre com um rangido inquietante para revelar um elfo de pele acinzentada e cabelos negros, seus olhos afiados passando rapidamente por cada um de nós com um ar de desprezo ele diz se chamar Rahadin e que seu amo nos aguardava para um jantar de honra, antes mesmo de conseguir formular uma resposta eu sinto seus olhos penetrantes e sua voz doce proferindo palavras desconhecidas, fazendo com que tudo parecesse fazer perfeito sentido, quando ele finaliza sua fala com:

— Sejam bem vindos ao Castelo Ravenloft.

Vista do Castelo Ravenloft

Ao ouvir as palavras do elfo, Lolita desperta e caminha ao meu lado segurando minha mão, até que passamos pelo hall de entrada desse castelo que só pode pertencer a um nobre nascido em berço de ouro, com tapeçarias, vasos, móveis, lustres e toda sorte de decoração que se esperaria da mais mais alta nobreza. Rahadin nos conduz através de uma porta dupla e nos deparamos com o salão de jantar que facilmente comportaria uma centena de pessoas, mas agora somos apenas nós e uma mesa com dez outros, todos aparentemente ricos, certamente pálidos e inquietos, nos observando com sorrisos e olhos sedentos por cima de suas taças. Da cabeceira da mesa o amo do elfo e dono do castelo se levanta e abre seus braços em um gesto que seria convidativo, se não fosse a palidez cadavérica de sua pele e seus olhos cor de sangue fixos em nosso pequeno grupo. Um sorriso surge de seus lábios e sua beleza terrível é quase insuportável de olhar, mas não conseguimos desviar, é como se ele sugasse toda a atenção do enorme salão para si, ele era o anfitrião e nós apenas os convidados maravilhados e aterrorizados com o que poderia vir a seguir. Até que ele abre sua boca e direcionado aos nobres sentados a mesa ele diz:

— Enfim, amigos, o jantar chegou!

Conde Strahd Von Zarovich, anfitrião do Castelo Ravenloft e Lorde do Vale de Barovia

Tudo aconteceu rápido demais, os caninos pontiagudos das criaturas na mesa refletem a luz dos candelabros, a menininha que chorava foge em direção a porta com seu vestido manchado com a urina quente, ela passa pelos pais um segundo antes que um dos vampiros caísse do teto e abrisse o pescoço de ambos fazendo o sangue espirrar longe. A filha não vai longe, esta prestes a encostar na maçaneta da porta quando Rahadin atravessa o peito da garotinha com um golpe de sua mão. Metade do grupo de vampiros se alimenta do corpo da família e a outra vem se aproximando das amigas Lolita e Kathani.

As criaturas malditas se aproximam de sua presa pouco a pouco, esticam suas garras enquanto o anfitrião sorri e tamborila seus dedos na base de uma taça do que, depois de toda a carnificina, não deve ser vinho. As amigas se afastam o máximo possível mas acabam encurraladas, seus algozes dão um passo na direção delas e… Uma explosão ilumina toda a sala, os gritos dos vampiros ultrapassam o estampido da explosão e quando a luz e o fogo diminuem o que resta são os corpos fumegantes das quatro criaturas. Uma mulher alta de cabelos cacheados longos afastados do rosto por uma faixa vermelha, vestindo roupas coloridas de viagem e de batalha e portando um sabre longo, trava uma batalha feroz contra Rahadin bem na frente das duas, o vampiro é obviamente um exímio espadachim mas a mulher se mostra mais audaciosa ao duelar apenas com uma mão, com a outra pega um frasco de liquido borbulhante prateado dentro de sua bolsa, atira o frasco contra o vampiro que o golpeia em pleno ar, derrubando a prata liquida sobre seu corpo que grita de dor. Ela aproveita a guarda baixa para atravessar o peito do vampiro com sua espada prateada, enquanto olha na direção do anfitrião e grita:

— O próximo é você Diabo Strahd, seu reino de terror acaba agora.

O sorriso do Diabo Strahd não vacila, enquanto a mulher se atira sobre a mesa e se prepara para o combate com sua espada de prata em uma mão e uma adaga que irrompe em chamas na outra. A ultima coisa que veem antes de serem puxadas para fora da sala é o olhar do vampiro se fixar em ambas e seu sorriso se abrir para revelar caninos pontiagudos prestes a serem utilizados. As duas caem ao chão e a porta do salão de jantar é fechada com um estrondo. Uma criatura mecânica trajando vestes de bobo da corte olha para elas com seus olhos inertes, ele afirma se chamar Piddlewick II e que esta ali pra resgata-las, ele anda mancando em direção a uma escadaria levando um saco repleto de itens que batem um contra o outro às suas costas.

Descem e sobem escadarias, entram em salas e passam por corredores infindáveis, no caminho a criatura mecânica vai tirando do saco os pertences de Lolita e Kathani, e os entregando para suas donas enquanto sons de explosão acontecem nos andares superiores, ou serão inferiores? Olhos observam a movimentação em meio as sombras figuras fantasmagóricas cruzam o caminho e quando ambas estavam totalmente desorientadas chegam até uma pequena porta por onde o frio da rua passa por suas frestas, Piddlewick II as atira para fora, jogando logo em seguida o saco, afirmando que agradecimentos não são necessários, pois seu mestre, o conde Strahd Von Zarovitch já o puniu e agradeceu pelo resgate. Do lado de fora sobre a sombra do Castelo Ravenloft, ambas observam na base do penhasco do castelo um vilarejo, sinal de civilização em meio a uma floresta escura e seu único destino óbvio no momento.

Na Vila de Barovia, ambas descobriram que não estão mais em Faerun, mas sim no Plano do Pavor de Barovia, um local eternamente jogado nas sombras, local sob o julgo do Diabo Strahd. O restante de seu caminho em busca de uma saída dessa terra amaldiçoada as levou até Vallaki, onde encontram a cidade murada sendo controlada com mão de ferro por Lady Wachter e sua família de cultistas adoradores de demônios e servos fieis de Strahd. Escapam da cidade um pouco mais preparadas pra lidar com as intemperes do clima e das ameaças da noite de Barovia, mas no meio do caminho para Krezk, a última vila no limite do vale, as duas se encontram com uma tribo nômade do Povo Antigo, que as acolhe e as leva para seu acampamento, no centro da Floresta Svalich. Hani, a matriarca do grupo as acolhe sem ressalvas, mas ambas acreditam que devem pagar pela hospitalidade, sendo a partir dali responsáveis pela segurança do grupo que vem sofrendo ataques de lobos, lobisomens, mortos-vivos e espíritos, muito além do que o clã estivera acostumado no passado. Mas a necessidade de escapar dessa terra desolada se mostra forte quando o grupo se depara com um elfo chamado Leilon, que afirma estar em busca da fonte de poder que move as estranhas entidades dos Planos do Pavor, os Poderes Ocultos. Acompanhando o historiador, ambas se dirigem até próximo do topo da maior montanha do vale, chamado de Monte Ghakis, lá elas procuram o Templo Ambar, local onde esperam encontrar uma maneira de sair desse lugar e voltar aos seus planos e vidas anteriores, para sempre mudadas pela desolação e tristeza de um local esquecido pelos deuses.

A entrada para o Templo Ambar, em algum lugar próximo ao topo do Monte Ghakis

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Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além

“As vezes tudo que precisamos são umas palavras espalhadas ao acaso pra fazer a maré virar pro nosso lado”