Um Conto de Fortuna

Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além
12 min readJun 5, 2020

Em uma das muitas selvas infernais de Payit, uma região localizada no Verdadeiro Mundo, como chamam seus habitantes ou Maztica como chamam os estrangeiros, uma bota de aço quebra os ossos do crânio de um pequeno, porém feroz e agressivo, goblin. O corpo da criatura cai ao lado de uma pilha de outros, tão mortos quanto, e o dono da bota de aço segue seu caminho, afastando folhas e mosquitos que são, no mínimo, três vezes o tamanho dos encontrados em Faerun.

— Malditos mosquitos, maldito calor, MALDITA SELVA! — se enfurece o dono das botas, um jovem meio-orc de pele cinzenta. — Me diga novamente por que aceitei esse trabalho? — O pele cinzenta direciona seu olhar para um humano, baixo e velho, com roupas de viagem e uma gigantesca mochila, que saía de trás de uma árvore, aparentemente saindo de seu esconderijo durante a luta contra os goblins.

— Meu caro Brejo, o único e resplandecente motivo por ter aceitado esse trabalho, diga-se de passagem, muito fácil, é a quantia generosa de peças de ouro que estou lhe pagando. — O velho, chamado Gregor, dá um pequeno empurrão no ombro do Meio-Orc Brejo, como que o incentivando a continuar o caminho por entre as árvores da selva.

— Afinal, não é todo dia que irá se conquistar uma fortuna em troca de algumas picadas de mosquito e de um eventual embate contra alguns goblins pequeninos, não é?

Brejo, brande sua maça e quebra os galhos que impediam seu avanço, com um grunhido que poderia ser de esforço ou de cansaço pela resposta do homem. O velho Gregor o havia encontrado através da recomendação de um comerciante em ascensão na cidade de Neverwinter, que havia contratado o jovem orc para diversos serviços mais “pesados” e o recomendava por “sua força e por saber manter a boca fechada se necessário”. Fecharam negócio em uma taverna suja nas docas da cidade, de onde três dias depois zarparam em direção a Maztica atrás do que o velho chamou de “uma fortuna que faria um colecionador de Cormyr ficar roxo de inveja”. E agora no meio dessa selva, coberto de suor e de picadas de inseto, Brejo se pergunta se realmente valerá a pena.

Horas passam e a monotonia do verde da floresta, do som dos animais e dos passos dos dois só é quebrada pelo eventual goblin que se lança da altura dos galhos das árvores, tentando em vão, se agarrar à garganta do velho ou de Brejo, que rapidamente os derruba e, com um golpe certeiro de sua maça de guerra, esmaga o peito ou a cabeça do pequeno ser assassino, enquanto o velho, pacientemente lê o seu mapa, que promete levá-los até a tal fortuna. A manhã dá lugar a tarde e de repente algo muda. O meio-orc estende sua mão e para o velho que estava em seu encalço, ele faz sinal para que o homem espere e se esgueira por entre as plantas e folhas baixas que encobrem o caminho a frente. Alguns minutos depois ele volta e rapidamente posiciona o dedo indicador sobre os lábios, pedindo silêncio enquanto guia o homem por entre as folhagens. Dez metros a frente Brejo se ajoelha e pede que o homem faça o mesmo, ele afasta com a ponta da maça grandes folhas que cobriam a visão do que se estendia a sua frente.

O Vilarejo Goblin na Selva

A selva se abre para revelar um aglomerado de construções de madeira, muitas espalhadas pelo chão e um número ainda maior disposto no tronco de uma gigantesca árvore-ferro morta que se encontra no centro dessa aparente vila. Diversos goblins entravam e saiam dessas construções e outros mais trabalhavam ao ar livre. A maioria estava desarmado e parecia despreocupado em sua pacata vida de goblin. Na base do tronco da grande árvore-ferro existe uma porta fechada, com quatro goblins guardando a entrada, esses portando lanças rústicas.

— Aposto que essa sua grande fortuna está lá dentro! — o meio-orc sussurra enquanto aponta com a cabeça em direção a porta. — Só ainda não sei como entraremos sem que toda a vila caia em cima de nós. — Brejo, espera uma resposta do homem, mas ele se mantém calado às suas costas.

— Você ouviu o que falei, velho? — O Meio-Orc se vira e percebe, tarde demais, que os goblins que encontravam pelo floresta não eram guardas que deveriam os impedir, mas sim olheiros que deveriam controlar seu caminho. O velho está com uma lâmina negra e tosca sob o queixo e com um grande goblin, com tatuagens tribais em seu rosto feroz o segurando. Diversos goblins com as mesmas lâminas e tatuagens os cercam, aguardando qualquer movimento.

Uma lâmina cutuca as costas do meio-orc e ele nota pela primeira vez que uma das criaturas havia se movimentado. Os goblins os levam para fora da selva e para o centro da vila, os colocando de joelhos enquanto se comunicam em sua linguagem cheia de grunhidos e chiados. As portas da árvore-ferro começam a se abrir e tudo que Brejo consegue pensar é que queria uma cerveja gelada para aplacar aquele calor, enquanto o velho ao seu lado reza para todos os deuses e deusas dos panteões de Faerun, Maztica e Kara-Tur.

Os goblins-guerreiros levam os dois improváveis companheiros para o centro de um círculo formado por goblins-comuns de todas as idades e tamanhos, que assistem estupefatos, enquanto o humano grisalho e rechonchudo esperneia durante todo o trajeto em uma língua que eles nunca ouviram antes e enquanto o orc-cinzento caminha e seus pés de metal esmagam as pedras do chão da vila. Os intrusos estavam sendo esperados, diversos goblins-sorrateiros foram designados para seguir a dupla e para intervirem conforme eles se afastassem do caminho até o vilarejo.

A maioria dos presentes no círculo do ritual, não esperava que eles realmente chegassem ali, isso era assustador e ultrajante de diversas maneiras e com toda certeza os deuses do limo e das presas serradas iriam castigá-los, ou ao menos era o que a maioria esperava.

Alguns goblins-comuns rezam baixinho, outros xingam os antepassados dos intrusos e alguns poucos têm a coragem de se aproximar e dar um chute certeiro no humano-velho, que responde com um guincho lacrimoso, mas nenhum ousa chegar perto do orc-cinzento pois sabem que não é papel deles punir os guerreiros, sejam de que espécie forem. Finalmente quando os goblins-guerreiros posicionam os intrusos no centro do círculo do ritual e se afastam, as portas na base da árvore-ferro começam a ser abertas pelos goblins-lanceiros e muitos cochichos e até mesmo alguns gritos de excitação perpassam a multidão goblinoide que abre o círculo, criando um corredor para que o que quer que saia de dentro da capela-verde possa chegar onde o ritual deve acontecer, diante dos olhos vidrados e dos corpos exaltados dos fiéis-da-presa e dos fiéis-do-limo.

Os goblins-guerreiros fazem uma barreira de escudos para impedir que os intrusos ataquem a multidão e lançam ao centro a maça de guerra que o orc-cinzento portava e uma espada curva de aço negro, para que o humano-grisalho possa louvar junto de seu companheiro. Diversos goblins-comuns se ajoelham e gritam batendo fortemente com os punhos na terra e em um ritmo cada vez mais rápido e frenético e, quase como em um transe, os guerreiros batem com os escudos no chão.

É no meio dessa cacofonia ritualística que o emissário aparece, curvado para conseguir passar pela porta da árvore-aço, é um gigante que se aproxima. Os deuses-do-limo e das presas-serradas foram bons dessa vez e enviaram um campeão digno de destruir até mesmo o mais poderoso ser. O goblinoide gigante retira o manto de limo e musgo preso a suas costas e estica seu corpo forte em uma série de estalos, aqueles que estavam mais próximos juraram anos depois que viram os desenhos na pele do emissário se movendo como em vida própria enquanto ele esticava suas costas, como se despertando de um sono profundo de sonhos perturbados e que naquele momento eles ficaram com medo de seus próprios deuses e torceram um pouco para que o emissário desaparecesse.

Emissário

A cacofonia cessou assim que o gigante de pele esverdeada deu o primeiro passo, pois o ritual deveria ocorrer em total silêncio, apenas sendo permitido o som do emissário e dos intrusos durante seu louvor. Os primeiros passos do emissário eram sem pressa e cuidadosos, como se ele não estivesse seguro de que suas pernas aguentariam o seu peso, mas logo ele já andava de forma confiante até o onde o orc-cinzento e seu companheiro estavam. Todos os olhos goblinoides estavam fixos nele, em uma espécie de expectativa doentia, alguns reviravam os olhos e balançavam ajoelhados no chão como se estivessem vendo ou sentindo algo enviado pelo musgo-maior ou pelo próprio presa-serrada.

A pele cinza do emissário brilhava com os raios solares e seus braços compridos quase arrastavam no chão ao lado de seus pés em garra. Seus músculos retorcidos causavam uma mistura de assombro e repulsa nos invasores que mesmo tentando com todas suas forças não conseguiam desviar o olhar da criatura que se aproximava. O humano-velho tremia e o pele cinzenta olhava fixamente na direção do emissário, aparentando estar resoluto diante do seu óbvio destino.

Brejo olhou para o goblin gigante que vinha em sua direção e balançou a cabeça, pensando mais uma vez que fez um mau negocio em aceitar essa missão. Mas sem muito mais tempo para reclamações ele girou no chão até sua maça de guerra e aproveitou também para pegar a espada torta de aço negro, pois tinha certeza que seu companheiro choroso não iria fazer bom proveito dela.

A criatura tinha uns bons três palmos a mais do que ele, que já era bem grande. Com certeza era o maior goblin que já havia visto e o mais ameaçador, nada parecido com os pequenos esverdeados que os estavam “guiando” até esse maldito vilarejo no meio da selva. Os goblins da tribo ao menos haviam parado de cantar e gritar, apesar de que o silencio parecia algo estranhamente macabro e ao mesmo tempo reverente.

Brejo pode jurar que conforme a criatura andava em sua direção, as marcas nos braços e no tronco do gigante se mexiam como se estivessem com vida própria, mas sem tempo de prolongar esse pensamento ele teve apenas alguns milésimos de segundo para erguer sua maça e defender um golpe das garras do inimigo. O maldito era muito veloz e muito forte, o primeiro golpe quase arrancou sua arma fora e se pegasse em cheio no alvo era provável que abriria um belo rasgo em sua armadura e no peito cansado que estava embaixo dela.

O monstro salta para o limite da arena improvisada e começa a circular o meio-orc sem tirar seus olhos dele, o impacto do golpe fez seu braço inteiro tremer e adormecer durante alguns segundos, Brejo estava cansado e não aguentaria muitos golpes como aquele, ele teria que pensar depressa, mas antes que conseguisse fazer isso o segundo golpe veio. A criatura saltou e caiu com as duas mãos unidas, como um martelo e acertaria o meio-orc em cheio, se ele não saltasse para o lado e caísse de forma nada graciosa, o que arrancou algumas risadas e aplausos dos goblins que logo foram repreendidos.

Brejo se levanta com um suspiro de cansaço e da de cara com seu contratante, olhando apavorado em sua direção. Com uma bufada de raiva ele atira o homem para o lado e se vira segurando a maça com as duas mãos, pois em sua pressa de escapar deixou a espada de aço negro cair em algum lugar. A criatura não da nenhuma atenção ao velho e se prepara para uma investida, rasgando a terra à seus pés com as garras dos dedos, seus dentes pontiagudos, projetados para frente e saliva esverdeada fluindo de sua boca perpetuamente aberta. O monstro avança e o meio-orc em um momento de inspiração e com um sorriso de Tymora brilhando sobre suas façanhas, acerta em cheio o rosto da criatura enquanto ela saltava em sua direção com as garras estendidas, prontas para lhe dilacerar. O goblin gigante cai ao chão com um grunhido de dor e todos os goblins menores ali presentes suspiram juntos, Brejo também cai, como consequência da força do impacto de seu golpe, cai de joelhos arfando, definitivamente um combate tão tenso após um longo dia de caminhada não lhe favoreceu em nada.

Sua vitoria momentânea passou rapidamente, sem chance de descanso, pois o inimigo se ergueu e novamente correu em sua direção, Brejo tentou erguer sua maça mas foi lento e estava cansado demais para isso, o goblin saltou sobre seu corpo e o jogou ao chão, suas garras rasgaram sua armadura e penetraram na carne de seu peito, definitivamente Tymora não lhe sorriu duas vezes e ele pensa na morte de merda que vai ter, do outro lado do oceano em busca de riquezas ao lado de um humano velho burgues. O bafo do goblin é terrível e a saliva que escorre por entre seus dentes cai e queima sua pele enquanto o monstro ruge a apenas alguns centímetros de seu rosto.

De repente um grito ecoa, seguido por diversos outros gritos e gemidos de tristeza dos goblins, Brejo percebe que o goblin gigante não está mais se mexendo e enxerga a lamina negra se projetando do estomago da criatura, quase encostando em sua armadura surrada. O cadáver do inimigo cai ao lado e com um grunhido Brejo, deitado e olhando para o céu, arranca as garras de seu peito, percebendo o rasgo feito no metal de seu peitoral de aço. Logo acima de sua cabeça, tapando o sol com seu rosto rechonchudo e rosado está seu salvador, Gregor deve ter pego a espada de aço negro e aproveitado a distração do monstro em seu momento de vitória.

— Eu…eu não sabia o que fazer, meu caro Brejo…Achei que você fosse morrer e me deixar sozinho aqui, eu não poderia deixar isso acontecer. — O homem fala enquanto tenta ajudar o meio-orc a se erguer entre grunhidos e cambaleios.

O choro dos outros goblins cessa e o silencio volta a ecoar na clareira do vilarejo na arvore-morta. Todos os goblins estão de joelhos, olhando para o chão nesse momento, até mesmo os guerreiros com lanças e os com as espadas de aço negro. Alguns choram e tremem, outros parecem em uma espécie de transe ainda, mas nenhum deles olha para os dois. Gregor e Brejo cambaleiam em direção a árvore-aço e às portas abertas de onde o gigante saiu, a luta estava acabada, o que quer que tenha acontecido ali estava acabado e agora o que buscavam estava a seu alcance.

— Me deixe sentar aqui durante alguns minutos velh…Gregor. — Brejo fala enquanto se atira sobre uma pedra, olhando para seu salvador, com um respeito recém adquirido.

O velho homem nem pensa duas vezes e parece nem ouvir o que o meio-orc fala. Ele anda rapidamente em direção às portas escancaradas e a escuridão que se encontra lá dentro, sem piscar e praticamente sem respirar. Ele entra e desaparece nas trevas do covil obscurecido do goblin gigante. Enquanto isso Brejo olha para o céu e sonha com o que irá fazer com todo o dinheiro que irão conseguir, enquanto o sangue escorre de seu ferimento ele abaixa os olhos se perguntando quantas viagens terão de fazer para levar as riquezas de volta a Faerun e percebe que alguns dos goblins já começam a se mover voltar para suas pequenas cabanas, aparentemente após o espetáculo terminar eles voltam para suas vidas normais como se um dos seus não estivesse morto e como se eles, os intrusos, nem mais existissem.

Ele fica perdido nesse devaneio até que a sombra de Gregor aparece sobre ele, o velho homem com um grandioso sorriso no rosto e com as mãos atrás das costas, parece em êxtase.

— Observe meu caro Brejo, o que viemos de tão longe para buscar. — O meio-orc não entende bem o que está vendo, parece uma pedra disforme meio esculpida em algo que tenta ou que um dia se assemelhou a um crocodilo ou algum réptil. — Não é maravilhoso meu grande companheiro? Esse artefato é a fortuna que todo grande estudioso do Forte da Vela daria a própria vida para por as mãos — Gregor suspira, com lágrimas aos olhos.

Brejo ri, começa baixinho, meio incrédulo e meio enlouquecido, mas a gargalhada que logo está ecoando pelo coração da selva faz todos os goblins ainda em suas preces se levantarem e observarem a cena, do velho humano olhando sem entender e do meio-orc-cinzento caindo ao chão segurando o peito e gargalhando até chorar.

Anos depois, já aposentado de suas aventuras da juventude, casado e com uma filha a caminho, Brejo ainda pensa em Gregor, no goblin gigante e na pequena estátua. Não foi naquele momento que ele conseguiu o dinheiro para comprar sua estalagem, nem fama ou algo do tipo, Gregor levou a estátua para o Forte da Vela e fez um nome para si entre os estudiosos, Brejo acabou sendo apenas uma nota de rodapé na história do velho que salvou sua vida, mas pelo menos algo de bom saiu de toda essa aventura, ao voltar para Faerun e para Neverwinter a história começou a se espalhar entre seus amigos, o conto sobre o guerreiro que foi até Maztica em busca da fortuna que acabou se transformando em uma pequena estatua tosca e em uma cicatriz no peito. A partir daquele momento sempre que o viam andando pelas ruas eles gritavam, “Hey, Brejo, Brejo Fortuna! Já trocou sua pedrinha por moedas de ouro?” Eventualmente as piadas pararam mas o nome ficou e ele sonhava com o dia que teria sua estalagem e poderia contar para os fregueses curiosos de onde surgira seu nome tão peculiar.

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Victor Kichler
Desafios em Faerun e Além

“As vezes tudo que precisamos são umas palavras espalhadas ao acaso pra fazer a maré virar pro nosso lado”