A alma da crônica

Thays Pretti
Desalinho
Published in
3 min readJul 24, 2020
Ilustração de Firoozeh Tangestanian

Até há pouco tempo, eu diria que nunca pensei muito a respeito do que é uma crônica até ter que escrever uma. Mas, antes disso, já cheguei a julgar que nunca tinha pensado sobre o que era uma crônica até ter que estudar sobre o assunto na faculdade. Hoje, sou tentada a dizer que nunca havia pensado no que é uma crônica até que me perguntassem como se faz uma crônica. Quem sabe o que o futuro me reserva? O fato é que alguém me pediu “dicas de como escrever crônicas” e foi revolucionário perceber que nunca pensamos o suficiente sobre o que achamos que pensa, sobre o que achamos que já é conhecimento adquirido, matéria dada, checkpoint alcançado.

Tentei dizer algo que fosse diferente daquilo que já estava nos livros. Não queria falar sobre a forma da crônica ou sobre o fato de que o narrador da crônica é o que mais se imiscui ao autor — ainda que continuem sendo duas entidades diferentes. Nem sobre a extensão ou o fato de a crônica ser geralmente urgente — de todos os gêneros, acho que é o que mais se relaciona com prazos, tempo — chronos.

Não. Eu queria falar sobre uma coisa que fui aprendendo enquanto escrevia. Ou, melhor, vou aprendendo enquanto escrevo, porque a crônica continua sendo muito maior do que eu (ela é um work in progress — mas, afinal, que processo de escrita não é?).

Queria falar de uma coisa que eu percebi bem aos poucos e que tenho humilde e mansamente chamado de alma da crônica.

A alma da crônica é esse balanço que a crônica tem, esse requebradinho, sabe como? Essa coisa de ser descontraída e leve, mesmo quando está falando de coisa séria. Isso de ter um ritmo de conversa cotidiana, como se fosse um jeito de falar sobre aleatoriedades ao fim da tarde, duas pessoas sentadas na calçada, uma cerveja compartilhada, um tererê. A crônica tem uma voz que é dela e que a gente, quando faz uma crônica, só adota: nunca é completamente nossa. Você nunca alcança a alma da crônica, não é algo que se possa perseguir. Mas ela alcança você. Ou não. E daí você adia a crônica para outra hora ou, se for muito urgente, faz crônica desalmada mesmo. Mas todo mundo sabe quando bota o olho em cima que aquela ali não tem alma. Não tem como escapar.

Quando alguém decidiu falar sobre cotidiano no Youtube, decerto supunha que fosse muito revolucionário. Não era: tem escritores brasileiros fazendo isso há séculos nos jornais. Descontraídos, às vezes ácidos e sagazes, inventaram o vlog muito antes de qualquer pessoa sequer pensar em internet. Alguns Youtubers, sem que saibam, são, na verdade, cronistas de uma nova era, com uma plataforma e recursos diferentes.

Eu sei que há quem fique chocado com isso, mas não vejo por quê. Novas tecnologias surgem o tempo todo e, em consequência, novas formas de expressão artística, já que o ato de se expressar artisticamente está sempre acima e além das formas pelas quais nos expressamos. Talvez o mais importante seja mesmo reconhecer a precedência: tenho para mim que certos vlogs derivam da crônica, assim como a crônica deriva do registro cronológico de eventos, que alguém, muito do brasileiro (porque mesmo que não fosse brasileiro de nascido, era no jeito de ser), decidiu fazer de um modo mais descontraído.

Acho que esse é um lado do jeitinho brasileiro que a gente pouco lembra: o fato de termos mais potencial para bobo da corte que para reis ou rainhas. Mas não se entristeça, ser bobo da corte não é nada mal. No fim, somos nós, os bobos, que sabemos que a liberdade, a verdadeira liberdade, está sempre entre linhas.

Crônica inicialmente publicada n’O Diário do Norte do Paraná em algum momento de 2017, que já nem sei mais. O texto passou por algumas alterações para ser publicado aqui.

--

--