Libra

Thays Pretti
Desalinho
Published in
4 min readJul 14, 2021
O tipo de coisa que se usava para flertar nos anos 00

Durante minha adolescência, a coisa que eu mais temia era ser chamada de poser. Não tinha medo de altura, assalto, afeto, enchente, granizo, acidente. Ser humilhada na sala de aula. Apanhar da turma da escola rival. Não. Eu tinha medo de ser chamada de poser.

Disso e de barata. E mais de barata, na verdade. Mas não vem ao caso.

Eu tinha muito medo de ser chamada de poser. Primeiro porque eu realmente não era fiel. Não ouvia álbuns completos, nem ouvia músicas na ordem. Misturava numa mesma pasta do computador rock de vários estilos e décadas, em inglês e português, MPB e pagode, pop de rádio e bandas lado b, Radiohead e Ragatanga. A pasta se chamava simplesmente “música”.

É o que eram: música. Mas que audácia. Eu sei, que audácia! Nunca consigo falar sobre isso sem perceber um ligeiro calafrio do meu interlocutor. Que audácia!

Acontece que eu tinha umas bandas preferidas, daquelas que a gente ouve tudo o que tem disponível, lado A, lado B, gravações fuleiras em shows ao vivo, em emissoras de rádio. Versões diferentes. Entrevistas. Uma dessas bandas era Legião Urbana. Conheci cedo, por intermédio da minha mãe, e nunca deixei de lado. Ouvia tudo, vivia tudo. Renato Russo formou meu caráter, mesmo tendo morrido quando eu ainda era pequena demais para ter noção de tudo o que ele — e a morte dele — representava.

Mas não queria ser chamada de poser, então não falava sobre isso. Não falava muito sobre música, aliás. Só estava sempre aberta a sugestões e adorava receber CDs gravados por colegas com as seleções de músicas preferidas de cada um deles.

(Aliás, abre parênteses: gravar um CD para alguém era uma das formas de flertar no começo dos anos 00: você mostrava seu bom gosto pra pessoa, ostentava ter computador com gravador de CD, às vezes convidava a pessoa para queimar outro CD na sua casa, e assim ia. Fecha parênteses)

Uma vez, ganhei uma bandana da Legião Urbana de um amigo. Fiquei super feliz. Nunca usei. Via camisetas com o nome da banda e ficava enlouquecida. Nunca comprei. Minha adoração era silenciosa e humilde. Eu sofria de uma paixão delicada. Não queria que alguém questionasse injustamente meu afeto — não pela Legião, não pelo Renato. Eu gostava até das músicas em italiano. Seria injusto se alguém questionasse meu amor.

Felizmente, nunca fui chamada de poser, passei incólume pelos difíceis anos da adolescência. Tentaram me definir de várias formas, porém. Roqueira. Emo. Nerd. Eu não era nada disso, porque não era fiel. Pegava o que eu gostava e me desfazia do que não me atraía no momento. Fui rock’n’roll sem sexo e drogas, fui emo sem tristeza, fui gamer só com RPG e jogos fofinhos, fui nerd sem Star Trek ou Star Wars. E fui caxias pra caramba, devoradora de livros, rata de biblioteca, do tipo que gostava de Machado de Assis aos 13. Isso eu era mesmo. Mas, ainda assim, não era fiel, intercalava Memórias Póstumas de Brás Cubas com livros interativos do tipo Onde está o Wally?

E ainda sou assim, um pouco de tudo, um pouco de nada. Fiel apenas ao meu descompromisso com o que quer que seja pré-determinado: tenho preguiça de me encaixar em padrões. E não quero deixar de me espraiar, sem preconceitos, sem limitações. Como diz o poeta Chacal, a vida é curta para ser pequena.

Librianos ficam em cima do muro, já ouvi dizerem. Não acho certo. A verdade é que eu quero tudo, não quero deixar nada de fora. Se eu posso aprender e me inspirar com coisas tão diversas e variadas, por que me limitar? Não me limito: estendo os braços e envolvo o infinito. Acho que isso é um pouco antropofágico, talvez eu dance à moda modernista. Mas abarco. Espraio e abarco.

Katherine Mansfield tem uma frase que eu assumi como lema. Ela guia meus dias em suas duas possibilidades de interpretação. A frase é “eu quero ser tudo que sou capaz de me tornar”. E eu quero. Tanto nesse processo de expandir-me por caminhos vários quanto no movimento de me aprofundar até o máximo de mim. Eu quero ser tudo o que sou capaz de me tornar, na horizontalidade e verticalidade de mim, na extensão do quanto o olho alcança e na profundidade do abismo. O limite, quero que seja somente o da minha capacidade: até onde eu for capaz, é até lá que eu quero ir.

Crônica publicada inicialmente em O Diário do Norte do Paraná, em 27 de janeiro de 2018. O texto sofreu pequenas alterações para esta nova publicação.

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