Submergir — ou: Pequeno Ensaio de Dança com a Água

Thays Pretti
Desalinho
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2 min readMay 23, 2021

Tenho uma sensação recorrente: às vezes eu fecho os olhos e submerjo. Meus cabelos me seguem acima de mim enquanto eu vou cada vez mais para baixo. O ar sai da minha boca e nariz em bolhas, tudo em volta escurece e silencia, meu corpo fica confortável num imaginário abraço líquido. O tempo pára.

Nesse lugar, eu sou a noite. Retorno ao ovo, à placenta. Num amniótico mergulho, limpo a mente, volto para o momento-já. Sinto novamente meu corpo. Meus pés, minhas pernas, meus braços. Meu peso afunda, desassistido de controle. Habito meu silêncio e nele me identifico: eu sou o Silêncio, eu sou o Nada, eu sou o Todo.

Quando abro os olhos, reemerjo: engulo uma bocada de ar e me coloco pronta. Os ruídos retornam, as preocupações, a agenda. O telefone volta a notificar, as contas chegam, a [falta de] saúde grita, a política nacional ri da minha cara, rasga meu corpo ao meio e expõe minhas vísceras ao sol. Ouço buzinas e sirenes onde quer que eu esteja. Tudo se torna urgente e volto a ser una, apartada, com nome, cargo, cadastro de pessoa física. Volto a ser arredia e espigada. Um animal que se equilibra nos frágeis fios de iluminação.

Transito de tempos em tempos entre esses dois estados. Ser água-viva é o que me salva do concreto dos dias. Tenho pouco elemento Terra no meu mapa astral, o que me deixa assim, toda impalpável. Ar, fogo e água não são passíveis de delimitação — eu me espraio.

Tento me contornar, sou bem comportada, me ensinaram assim. O mundo pede ordem, cronologia, linearidades e certezas e eu, ensinada a servir e a agradar, obedeço. Faço tabelas e planilhas, agendas, listas de tarefas, atas e resumos. Não me atraso. Me dizem: você é organizada! — sorrio o elogio e me sinto cativa, dicionarizada, poesia aprisionada em planilhas de Excel.

Mas às vezes — às vezes — também vejo certa beleza na ordem, na simetria, no ritmo que se repete em padrões. A minha subversão, então, é essa pequena beleza que vou encontrando e espalhando pela dureza do que é regido pela ordem. Coloco cores nas minhas planilhas, aperto musicalmente as letras no teclado. Chego antes, só para ridicularizar o relógio e mostrar que eu tenho o meu próprio tempo. E, quando os dias tentam me engolir em sua concretude áspera, eu me mergulho e reencontro na poesia que escondo em mim.

Peço então perdão por qualquer desatino: sou amniótica de nascença— não sei me conter completamente.

(e ainda bem)

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