Voadora

Thays Pretti
Desalinho
Published in
4 min readJul 23, 2020
Uma ilustração mostrando baratas em um cais de porto.
Ilustração de G. Burgun. Fonte: Sarah Finn

Juro que não queria falar sobre este tema. Fujo dele. Mas ele entrou voando pela janela da cozinha, pousou e me cercou no canto, acuada. Era uma barata grande e gorda. Bem adulta, acredito eu, ainda que eu não saiba — e nem queira saber — coisa alguma sobre o ciclo de vida das baratas. Sei que elas existem, e isso basta para fazer da minha vida um dos nove círculos do inferno.

Não houve qualquer comoção. Apenas sua presença intensa e árida. E seu cheiro — um cheiro muito peculiar que reconheço de longe, algo como ferrugem. O pior que já senti. Dizem que o inferno cheira a enxofre, mas eu não acredito. O inferno tem cheiro de barata. Não há castigo maior para se infligir aos pecadores do que ter aquele cheiro impregnado em suas narinas por toda a eternidade. O inferno é cheio de baratas, com suas patinhas serrilhadas subindo pelas pernas dos danados.

A barata é excessiva. Em qualquer lugar em que esteja, sobra. O ruído que ela faz quando se move ou rói coisas à noite é excessivo. Seu cheiro persistente e metálico é excessivo. O toque de apenas uma patinha em nossa pele abre um vórtice e nossa alma é sugada de dentro do nosso corpo, restando apenas uma casca oca que se arrepia em desespero, e empalidece.

A barata tem um excesso de vida. Uma sobrevida. Não sei se li isso em algum texto da Clarice Lispector sobre baratas — talvez em A Paixão segundo G.H. — ou se pensei nisso a partir da leitura. Mas o certo é que essa consciência surgiu do diálogo com Clarice: a barata é uma sobrevida. Encarar qualquer outro perigo não causa o mesmo vazio de alma que se tem ao encarar uma barata.

Há um conto da Clarice chamado A quinta história em que a narradora conta várias vezes uma mesma situação em que misturou cal e açúcar como uma armadilha para matar baratas. Quando acordou, todas elas eram pequeninas estátuas de patas esbranquiçadas. Mas ela conta a mesma história tantas vezes, que não consigo não ficar com essa sensação de que as baratas são excessivas. Tanto que prenderam a narradora num círculo do qual ela não consegue se libertar. E, por mais que ela mate algumas em uma noite, ela sabe que outras voltarão assim que a noite chegar. Pois elas são sobrevida. Elas são o que pulsa. Elas são imunes a bombas nucleares.

Ouvi dizer que hoje a maioria das baratas urbanas já não come açúcar. Tantas vezes o misturamos com veneno para matá-las, que sobraram apenas aquelas que não gostam de açúcar, e essas dominaram as cidades. É a evolução. Nenhum bicho está mais adaptado para estar no mundo do que as baratas. Nem nós. O excesso delas oprime todos os outros bichos e faz com que se sintam frágeis e inúteis. Eu não gosto de baratas. Mas elas seguem suas vidas assim mesmo. Não precisam de nós, elas estão além. Seguem a vida ignorando a existência de todos os outros seres que não sejam baratas.

Como as baratas não comem veneno com açúcar e eu não tenho coragem de matá-la com o chinelo, tenho duas opções: chamar alguém para me ajudar ou apelar para o aerossol. Por vergonha, opto por este último. Jogo muito, até que ela fique com a casca toda branca. Ela vira a barriga para cima e eu volto a espirrar veneno. Depois fico assistindo enquanto ela morre (para ter certeza da minha vitória e segurança). Não é rápido, ela sofre. Como tem um excesso de vida, leva tempo para se esvaziar de todo. Ela sofre e eu levemente me compadeço. Ela estica as pernas, suas pequenas coxinhas brilhantes, suas panturrilhas serrilhadas. E cada seção de seu abdômen se esforça para conseguir respirar.

Baratas respiram?

Respiram, isso é certo. Vi na aula de Biologia quando estava na escola, só não lembro como é. O movimento que ela faz quando coberta de veneno é um pequeno estertorar num leito de morte, como alguém desesperado por respirar. Uma dor lancinante e genuína. Baratas, por favor, não cruzem meu caminho. Eu não tenho escolha. Não tenho sobrevida, e preciso da minha alma. Tenho medo desse vórtice dentro do qual você pode me aprisionar. Desculpe, é uma luta pela vida. Ou vence seu excesso, ou permaneço viva. Bicho que sou, tenho um instinto de sobrevivência persistente e bruto — e insisto em viver.

Só que, veja você, de tão excessiva, ela ainda está aqui. Depois de morta, continua me assombrando em sua sobrevida, vira texto. Seu excesso é perene.

Deus, espero que matar baratas envenenadas não seja pecado o suficiente para ir para o inferno. Pois, eu sei: o inferno é cheio de baratas.

Crônica publicada inicialmente n‘O Diário do Norte do Paraná em 30 de janeiro de 2016. O texto passou por algumas alterações para a publicação neste blog.

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