Feminismo Fast, Conversa Barata — As Frágeis Barganhas do Feminismo de Mercado

Desconfiamos do Entusiasmo
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10 min readJun 5, 2017

Esta é uma tradução do texto Fast Feminism, Cheap Talk escrito por Andi Zeisler e publicado originalmente no site da revista Bitch em abril de 2017.

Foto por Kristen Visbal’s — “Fearless Girl statue” /“Estátua da garota destemida” (Wall Street, Nova York) por Anthony Quintano / Creative Commons

A Nova Campanha de Jennifer Lawrence para a Dior tem uma Mensagem Feminista”, diz o título da matéria no VanityFair.com. Em fonte menor, esclarece: “Está na camiseta dela”.

Boa, Vanity Fair. Apontar que o slogan adotado por celebridades que flertam com o feminismo por marketing pessoal geralmente é baseado em pouco embasamento? Boa jogada!

Mas isso não é uma piada, ou sátira, ou sarcasmo.

A coleção de [Maria Grazia] Chiuri para a Dior no ano passado (…) abriu caminho pra mais moda politizada na passarela durante a última Fashion Week, especificamente por usar o canal simples-porém-ousado da camiseta estampada. Modelos da Christian Siriano vestiram saias estampadas com camisetas em que se lia “Pessoas São Pessoas”, e Prabal Gurung incluiu peças com dizeres como “O Futuro é Feminino” e “A Revolução Não Tem Fronteiras”(…) É difícil negar o papel de Chiuri como a líder ousada que ajudou a acender essa faísca dentro da indústria. E agora, ela tem Jennifer Lawrence pra ajudar a levar a mensagem adiante”.

As estilistas não cunharam os slogans que estão nas suas camisetas, e não reconheceram a proveniência deles enquanto os cooptavam para a alta moda (O “Futuro É Feminino” original foi criado pela livraria feminina Labyris Books em 1975 e tornou-se icônico em uma foto da cantora folk lésbica Alix Dobkin; “Todas Nós Deveríamos Ser Feministas”, é claro, foi o título da polêmica palestra de 2014 de Chimamanda Ngozi Adichie). E elas aparentemente não vêem nenhuma desconexão em cobrar uma quantia francamente obscena por tal vestuário — a camiseta da Dior custa $710 dólares, enquanto a da Gurung custa $195 dólares—e nem vêem a ironia em inflar artificialmente o valor para refletir o preço da entrada nos círculos restritos da alta moda.

Mais à margem no espectro da moda está uma nova campanha da DSW, que apresenta uma jovem que também veste uma camiseta escrito “O Futuro é Feminino” (não a versão cara da Gurung, se presume) junto ao slogan #MarchOn. Colares “Nasty Woman”, batons feministas e até uma campanha “eyepowerment de conscientização sobre a Secura Ocular Crônica (patrocinada pela corporação farmacêutica Allergan): 2017 pode ser o ano que o feminismo de mercado —o processo onde corporações, celebridades, e outras entidades comerciais nivelam a linguagem de libertação à serviço do lucro—finalmente ganha sua caricatura completa.

Esse ano está certamente caminhando para ser um ano no qual a fachada brilhante do feminismo de mercado está quebrando para revelar as engrenagens do capitalismo de status-quo girando por dentro dela. Os últimos meses já trouxeram a queda altamente divulgada de Miki Agawal, a fundadora da Thinx, cujas calcinhas absorventes e anúncios sugestivos foram celebrados como uma história de sucesso feminista desde que a marca foi lançada em 2010. Certamente, a Thinx era uma das empresas que, em comparação à tipos como a Dove ou a Always, era considerada uma empresa feminista “de verdade” graças à sua liderança feminina, seu marketing inclusivo, e sua dedicação ao combate contra o tabu atribuído ao complexo industrial dos absorventes.

Pessoalmente, Agrawal não considerava o feminismo necessário até ter fundado a Thinx, dizendo que tinha sempre associado a palavra à garotas “raivosas, inflamadas” com uma queda por poesia spoken-word. E uma ação condenatória que foi parar no Racked (um site de fashion-business) em março, revelou que a ex-diretora de relações públicas da empresa, Chelsea Leibow, havia registrado uma queixa oficial de assédio sexual contra Agrawal. Junto com um punhado de ex-funcionários anônimos, Leibow—que já havia aparecido no passado em seções de comentários para defender sua chefe—descortinou contos de uma errática cultura no ambiente de trabalho, baixa remuneração, precárias condições de trabalho e uma líder sem limites que falava e tocava os funcionários de maneira inapropriada sob um disfarce de ser “cabeça-aberta”.

E então veio a queda do Nasty Gal, o site de fast-fashion que emergiu de uma loja de roupas vintage do eBay pela força da experiência de marketing e coolhunting da “#GirlBoss” Sophia Amoruso. Amoruso, que estava em seus vinte-e-poucos anos de idade quando o Nasty Gal se estabeleceu em 2008, havia se tornado em 2016 a segunda mulher mais jovem na lista das “Mulheres Self-Made Mais Ricas” da Forbes—logo atrás de Taylor Swift—e estava no caminho para construir um império Nasty. Mas a jovem mulher que juntou-se à Nasty Gal para trabalhar lado-a-lado com Amoruso descobriu que o entusiasmo pró-mulheres dela morreu quando o negócio estourou. Em entrevista para a Anna Merlan do Jezebel em 2015, um número de ex-Nastys revelaram que a empresa havia demitido “diversas funcionárias grávidas tanto antes quanto depois da licença maternidade”, bem como um funcionário na véspera de tirar a licença paternidade e uma mulher que estava aguardando uma cirurgia de transplante crucial. O Nasty Gal declarou falência em 2016.

E na semana passada, foi anunciado que a Modcloth, a loja digital amada por sua moda de tamanhos inclusivos e estilo retrô, foi comprada pela Jet, que é propriedade do Walmart. Assim como o Nasty Gal, o sucesso desproporcional da empresa foi o começo do fim: Assim que a empresa se mudou para San Francisco e atraiu capital investidor, sua cultura inclusiva começou a mudar; e sua CEO e co-fundadora foi substituída por uma ex-executiva da Urban Outfitters cujo desconforto óbvio que tinha com o sucesso da Modcloth no mercado plus-size sacudiu os funcionários mais antigos.

Para observadores e fãs dessas empresas, suas transformações soam como hipocrisia. O que elas são é muito mais mundano. As marcas tem focado há muito tempo em capturar os dólares de consumidores que pensam em si mesmos como experientes, progressistas, céticos — à prova de marcas. O fato de seus esforços serem quase sempre em vão é só uma parte do problema (pergunte à Pepsi). A outra parte do problema é simplesmente que, por mais que as marcas falem sobre disrupção e mudança de paradigma, as corporações não existem para mudar a mentalidade coletiva, normalizar a diversidade de corpos, ou promover igualdade na vida real. Elas existem para lucrar, para satisfazer investidores e acionistas, para cortar custos e maximizar eficiência, para contornar leis trabalhistas onde puderem. A recente elevação do feminismo de movimento político à ideologia de marca não altera esses objetivos. Mas aqui estamos nós, ainda ansiosas em acreditar que a esperta hipocrisia corporativa—um comercial mencionando igualdade de salários, a estátua “Fearless Girl” de Wall Street que trás publicidade grátis para a firma global de investimento que pagou por ela—é uma previsão do investimento na igualdade do mundo real.

REI e DSW levam o feminismo de mercado para as ruas — e para as rochas.

Semana passada eu fui marcada em um debate de Facebook por uma leitora da Bitch que havia compartilhado um anúncio da nova campanha “Força da Natureza” da REI, cujo objetivo declarado é “fazer do ar livre o maior campo de jogos do mundo”. O debate estava dividido entre dois grandes pontos de vista. Um sustentava que a empresa é simplesmente a última a cooptar o feminismo como forma de reforçar tanto sua relevância quanto seu lucro. O outro protestava que o alcance de consumo que chega à pessoas que não se consideram feministas é a ponte que permite uma passagem segura para além de estereótipos assustadores, um caminho para o empoderamento pessoal e, eventualmente, para acender uma consciência feminista.

Esse argumento, talvez mais do que todo o resto, tem caracterizado a nova era do feminismo de mercado. De Taylor Swift e Lena Dunham ao shampoo Pantene e o desodorante Secret, até Caça-Fantasmas e Game of Thrones, essa questão—oportunismo comercial ou consumo consciente bem intencionado?—tem sido levantada, considerada e contestada. Isso é feminismo? Tipo, feminismo de verdade? Isso é uma porta-de-entrada ou uma via sem saída? Eu preciso de desodorante de qualquer forma, então não é melhor financiar uma marca que está pelo menos tentando assumir um discurso?

Os anúncios “Força da Natureza” da REI mostram mulheres—velhas e jovens, negras e brancas, sorrindo e pensativas—envolvidas com o atividades ao ar livre, com um texto que enfatiza a conexão feminina elementar com as maravilhas da natureza (“O Lugar da Mulher é na Natureza Selvagem”). Aulas e retiros para mulheres (“um grupo já formado de amigas”) e uma bandana da campanha cujas vendas financiam organizações sem fins lucrativos que “ajudam mulheres e garotas à irem ao ar livre” completam a iniciativa. A diretora de assuntos públicos da empresa, Laura Swapp, afirmou que “A liderança das mulheres tem sido parte do que fazemos aqui há muito tempo”.

Mas se a liderança feminina tem sido algo tão integral para a REI, parece justo perguntar por que a empresa esperou tanto tempo pra centrar as mulheres no seu marketing. Sexismo institucional? Pode ser. Desinteresse? Possivelmente. Mas, principalmente, essa é a mesma adesão acrítica ao status quo e a mesma aversão ao risco que tem sido transformada em produto cultural por décadas, da Avenida Madison até Hollywood. Bem intencionada ou não (e à despeito da cofundadora que a empresa cita rapidamente), a REI esperou que o feminismo de mercado estabelecesse uma base segura na América corporativa para depois “descobrir” o poder de suas consumidoras femininas, adentrando um nicho em que outras marcas já tinham tido sucesso. Isso significa que a campanha da REI é simplesmente uma causa de fachada? Ou é apenas tão válido para a promoção de mudanças sociais quanto qualquer marcha das mulheres ou um editorial impetuoso?

O feminismo de mercado é reconhecidamente sedutor em uma época em que mais de metade da população ainda está lutando para ser valorizada igualmente, para ser paga como seus colegas masculinos, para controlar seus corpos, para simplesmente existir em público. O feminismo de mercado pode produzir imagens poderosas, como pussy hats fotografados de cima como um mapa topográfico em tons de rosa. Isso pode unir estranhos virtuais pelo entusiasmo por bolsas descoladas ou broches que dizem “FEMINISTA” em letras arredondadas. Isso pode oferecer uma voz para aquelas que não conseguem ainda expressar o que pensam ou para aquelas que não conseguem se expressar forma alguma.

Mas o feminismo de mercado é também frágil. É frágil porque requer a aposta daqueles que, em sua maioria, vêem o feminismo apenas de modo abstrato. Essas forças — CEOs, investidores capitalistas, executivos de mídia, etc. — irão argumentar que negócios são apolíticos, e para essas forças de fato são. Como uma mercadoria, o feminismo não é diferente de qualquer outra tendência, seja ela ambientalismo ou blusas cropped. O fato de que no mundo real a igualdade de gênero pode ser uma questão de vida ou morte não tem importância no feminismo de mercado. O feminismo de mercado é frágil, também, por causa do seu potencial, seu alcance e sua influência demandam uma construção do feminismo como sucesso individual, privilegiando “empoderamento” pessoal acima de mudanças mais difíceis de atingir—e, talvez, mais angustiantes, sugerindo que tal empoderamento pode estar disponível pra todas.

E então, eu tenho uma ideia melhor?

Eu não sei. Até aquelas dentre nós que acreditam que uma mudança coletiva e colaborativa é possível tendem a culpar não a real estrutura de opressão—capitalismo, supremacia branca, sexismo arraigado—mas tendem a culpar a nós mesmas, como indivíduos, por nossa inabilidade de assegurar essas mudanças. E, como feministas, nós podemos supervalorizar a ideia de autenticidade e acabar gastando uma energia considerável debatendo o que é feminismo de verdade e o que é suspeito. Mas talvez—e eu sei que isso é um grande talvez—nós podemos contar com o fascínio, a sedução fácil do feminismo do mercado e, bem, libertá-lo desse trabalho bagunçado, constante e impraticável do feminismo como uma ética viva. Em uma intersecção, o feminismo de mercado sobrepõe essa ética no lugar onde valorizamos representatividade e visibilidade, onde nossas causas se levantam à vista do grande público, onde é divertido debater os méritos de uma nova série do Netflix com nossos amigos. Mas talvez nós possamos pensar em maneiras de considerar o trabalho de sustentar um movimento multifacetado separado de uma ofensiva corporativa atraente. É arriscado defender a separação e o desigual, mas e se isso nos ajudar a levar em consideração o mundo feminista que não está à mercê do capital?

Quase ao mesmo tempo em que as notícias sobre a Thinx foram publicadas, um comunicado de imprensa de outra iniciativa sobre menstruação e roupa-íntima apareceu na minha caixa de entrada, buscando uma entrevista com a fundadora de uma “marca feminista de verdade” que faz uma linha de “lingerie absorvente fashion feita para empoderar mulheres que lidam com incontinência urinária”. Eu não caí nessa, mas outro site caiu, e o resultado foi um texto chamado “A Queda da Thinx Não Precisa Arruinar as Calcinhas Feministas”. É omitida aí a questão sobre “calcinhas feministas” serem ou não uma coisa que precisa ser salva de sua ruína potencial. A questão sobre o motivo de imbuir calcinhas com peso ideológico é contornado na corrida para estabelecer um produto feminista novo, melhor, dessa-vez-feminista-de-verdade. Mas essas são questões que requerem engajamento.

Quando o feminismo de mercado segue roteiros capitalistas previsíveis—competindo para ser a melhor, a “mais verdadeira” marca feminista de calcinhas, ou o batom mais empoderador, ou o equipamento de atividades ao ar livre que mais estimula a mulher—o que nós ganhamos além de produtos que podem, talvez, fazer com que nos sintamos melhor sobre o consumo? Quando nos dizem que a paixão da empresa é “empoderar as mulheres” ou “construir uma marca feminista” ou até “nivelar o jogo”, podemos perguntar se essa paixão se reflete nas práticas de negócio e valores internos? Quando uma marca dá o corajoso salto de defender publicamente a autonomia e igualdade de não-homens, aquelas que criticam essa marca estão “sendo injustas” ou “pedindo demais”? Quando esses esforços se transformam no que parece ser uma farsa—como aquelas camisetas de 3 dígitos de estilistas ostentando slogans reciclados—exatamente o quanto nós podemos revirar os olhos de irritação?

E, finalmente: Se tratarmos as estruturas capitalistas como entidades frágeis cuja consciência social vai depender da quantia que isso movimenta —e se nós protegemos sua fragilidade porque “pelo menos elas estão tentando”—para quais interesses nós estamos trabalhando de fato?

POR ANDI ZEISLER

Andi Zeisler é a co-fundadora da Bitch Media e autora do livro We Were Feminists Once: From Riot Grrrl to CoverGirl®, the Buying and Selling of a Political Movement. Você pode encontrá-la no Twitter.

Traduzido para o português por Desconfiamos do Entusiasmo

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