O Factor Meme: Comido Por Um Coreto

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
16 min readFeb 19, 2019

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Em 2003, houve um artigo no Washington Post intitulado Harry Potter and the Reader’s Poundage Headache onde ficamos a saber que a voracidade com que as crianças liam o tomo Order of the Phoenix lhes provocava surpreendentes dores de cabeça. Também me lembro de na altura ver a sofreguidão com que os fãs enchiam as bibliotecas à hora zero do lançamento de cada livro e de pensar que o prazer de lerem Harry Potter não seria razão suficiente para estas filas intermináveis de gente que não só queria ler mas queria mesmo devorar cada livro o mais depressa possível. Como acontece com muitos dos fenómenos da nossa vida neste milénio, a explicação tem tudo a ver com a internet.

Fan Art de Shane Haunt

O contexto descontextualizado das ligações online permite-nos experienciar livros, séries ou jogos como parte de uma comunidade que tem apenas um ponto muito forte em comum. E esse ponto é como uma flor que cresce em muitas direcções envolvendo piadas, críticas, ficção alternativa, cosplay e sim, muitos, muitos memes. O gozo de ler Harry Potter está não só nos livros em si mas também numa leitura simultânea e partilhada com outras milhares de pessoas em todo o mundo. O gozo de acompanhar Game of Thrones está não só na qualidade da série em si, mas também na conversa do dia seguinte após cada episódio. O gozo de experimentar Dungeons & Dragons está não só no jogo proposto pela encarnação mais recente deste RPG, mas também no vasto imaginário acumulado que este hobby reúne online. E naturalmente que a actividade de comunidades globais pode ter um reflexo local na cidade de cada um enchendo assim bibliotecas ou lojas de jogos.

Esta nova maneira de entrarmos dentro de uma qualquer proposta criativa tornou possível atrair muita mais gente para Harry Potter do que só as crianças que já gostavam de ler ou que tinham um interesse por histórias de adolescentes feiticeiros. Mesmo que até nem apreciem muito a leitura ou o universo em si, a experiência social que rodeia este interesse comum pode mesmo ser um fim em si mesmo, especialmente nos períodos de maior participação da comunidade. Quantas daquelas crianças que adoraram Harry Potter serão apaixonadas por livros agora que aquele frenesim acalmou?

Apreciar um bom livro deixou de ser uma experiência solitária e quem o publica sabe disso. O escritor já dificilmente é a criatura que desce ocasionalmente do topo da montanha para entregar a sua obra ao público. Também ele tem que entrar no burburinho digital quase diário para se manter relevante. A massa de conteúdo que se forma online em volta destas propostas criativas até pode reunir mais adeptos do que as próprias propostas em si. Interagir com os memes é fácil e rápido , criar ou adaptar um tem feedback instantâneo. Por melhor que seja uma série como Rick and Morty, provavelmente os seus fãs passam mais tempo da sua vida a trocar memes sobre ela do que a ver os seus episódios. Por mais impressionante que seja o final de um filme como o Avengers: Infinity War, foi quase impossível não ter o spoiler desse impacto ao passar os olhos pelas redes sociais. Nunca deixa de ser impressionante como estas torneiras de mimetismos têm o poder de encher a nossa atenção 24 horas por dia.

Dado o seu potencial, este domínio mimético não é só uma fonte acidental de entretenimento. Todas as empresas cujo conteúdo possa estar no centro de um furacão de atenção procuram navegar por rotas onde os memes lhes sorriam. Podem até fomentarem elas próprias a divulgação de conteúdos mimetizáveis, mas a autenticidade dos memes que crescem organicamente é sempre mais eficaz. Por isso, o desafio está em seguir uma linha que possa dar espaço à criação e sedimentação de memes positivos para elas e que vá avançando tentando que os memes negativos sejam tão efémeros quanto possível. Os conteúdos extrapolados por fãs são não só publicidade gratuita mas também sinais que podem ajudar a identificar aspectos inesperados que os criadores originais podem reaproveitar. E para os próprios fãs, esta geração de cliques também já se torna um possível meio de vida, eles próprios procurando seguidores, patronos e subscritores.

O contexto descontextualizado das ligações online permite-nos experienciar livros, séries ou jogos como parte de uma comunidade que tem apenas um ponto muito forte em comum.

No hobby dos RPGs, é de duvidar que a dimensão das suas diversas comunidades permita que o factor meme tenha grande influência, mas não será de ignorar completamente. Outrora, poderia dizer-se que cada grupo de jogo era uma ilha isolada com as suas maneiras muito próprias de enveredar através de uma sessão, com muitas histórias e piadas que só eles podem perceber e com uma relativa indiferença ao que o resto do mundo está a jogar. Nos dias de hoje, ainda é muito assim, mas também começam a haver cada vez mais grupos que chegam à mesa com muitas expectativas e pressupostos gerados online. Também é verdade que o formato habitual de texto sobre imagem não é um meme comum entre roleplayers, mas muitas das histórias mais épicas contadas e recontadas na internet vêm de campanhas que alguém jogou. E uma questão que contribui subrepticiamente para o factor meme nos RPGs é que muita gente que joga não lê e muita gente que lê não joga. Já para não falar de quem não lê nem joga mas que gosta de assistir a sessões que agora são uma espécie de espectáculo televisivo. Por isso, muitos roleplayers só aprendem de outros roleplayers como é que um jogo é na sua plenitude. E a forma mais divertida de juntarem esse conhecimento é através de memes, da mimetização de histórias, hábitos de jogo e arquétipos de personagem. Outra questão mais óbvia é que os RPGs são um jogo de sociedade, de convívio e partilha de experiências. Muitas pessoas se sentirão à vontade nem tanto para se envolverem no jogo mas só para terem uma experiência social que possam referenciar mais tarde. Todo o “verdadeiro” gamer tem de jogar D&D uma vez na vida não é verdade? Senão, como é que poderá entender os memes mais obscuros?

Nos tempos da revista Alarums and Excursions, Richard Aronson publicou Eric and the Gazeebo, o relato de uma situação de jogo que foi sucessivamente republicado até ganhar fama na internet. Como quem conta um conto acrescenta um ponto, a explicação deste meme pode agora encontrar-se na Wikipedia com o título The Tale of Eric and the Dread Gazeebo. A história fala-nos da reacção de um jogador chamado Eric à descrição de um coreto feita pelo seu mestre-jogo. Eric não sabe o que é um coreto, mas também não pergunta e reage como se tivesse encontrado um monstro. O mestre-jogo brinca com a situação, o coreto parece ser imperturbável, Eric opta por fugir com a sua personagem e aí o mestre-jogo descreve que já é tarde demais e que o coreto a comeu. Este meme contém aspectos bastante mimetizados desde então: o jogador que só quer rolar dados sem saber o que está a rolar, o mestre-jogo com uma pontinha de arrogância intelectual, o constante resvalar para o combate, matar uma personagem para punir um jogador, tudo ideias que fazem parte do nosso imaginário sobre o que pode acontecer numa sessão de RPG.

Este é um exemplo clássico de como o factor meme no domínio dos RPGs nasce em paralelo com a tradição oral que sempre fez parte da cultura de jogo deste hobby. Se antes, era uma história partilhada dentro de um círculo de jogadores mais ou menos experientes, agora são mimetismos que fazem parte de como alguém descobre na net o que são os RPGs. As pessoas já não lêem os livros investindo o seu tempo em busca de conhecimento. Em vez disso, tentam seguir o fio à meada nas redes sociais ou em velhos e novos fóruns. Ou acompanham canais e streams onde sessões de RPG se tornam peças de teatro nas quais actores interpretam jogadores que interpretam personagens que recriam memes para o entretenimento do seu público e para fazerem talvez algum dinheiro.

Desta forma, criam-se novos níveis de menor envolvimento com os RPGs. Eu posso não saber propriamente como se joga mas consigo remisturar dois ou três memes e obter reconhecimento pela minha posta de pescada ou comentário. Eu posso nunca ter estado numa mesa de jogo, mas posso divertir-me a ver outras pessoas divertirem-se. Eu posso só ter jogado uma sessão, mas é o suficiente para me sentir parte da tribo dos que jogam o mesmo RPG e até manifestar esse tribalismo online. Eu posso não ter tempo nenhum para nada disto, mas posso dar algum dinheiro por mês a quem fomenta os memes de que eu gosto. Todos estes níveis são quase tangenciais ao RPG efectivamente jogado, mas não deixam de abrir o hobby a mais gente e de aumentar a atenção que este recebe na net. São multiplicadores que não podem ser menosprezados, mas também há que considerar que o seu grau de superficialidade faz com que afectem cada RPG individualmente e que praticamente só incidam sobre os mais mimetizáveis, nomeadamente D&D, Call of Cthulhu ou Vampire. Os RPGs que menos se virem reflectidos nos memes já estabelecidos é como se não existissem. Estes pequenos envolvimentos raramente vão para lá do primeiro RPG que encontram, pelo que o factor meme concentra-se em muitos poucos jogos.

Além disso, os memes mais populares também são retransmitidos na maneira como os RPGs são representados em séries de comics, animações, filmes ou videojogos. A outras formas de entretenimento também interessa reduzir o RPG de mesa a um estereótipo e co-optar as suas inovações, dado que a proposta do nosso hobby é muito competitiva em termos do preço de cada hora de divertimento. Por isso é dada a impressão que RPG de mesa é uma coisa que aconteceu noutros tempos e que só ainda acontece da mesma maneira. Há sempre um travo de nostalgia nos preparados de RPG mais mediatizados. Vende-se a ideia que Eric continua a ser comido por um coreto e que, para se ir além disso, só indo jogar o próximo videojogo que está para sair, como se estes jogos fossem o futuro e os RPGs fossem o passado, algo que é um logro que consegue florescer numa floresta de velhos memes. Há mesmo memes de RPG cujas origens ainda são do século XIX, do tempo em que já se discutia se os jogos de guerra deveriam ser mais uma simulação estatística completa ou uma narrativa determinada pelas escolhas treinadas pelos oficiais. E, apesar de estarmos a evoluir nas últimas décadas tentando sintetizar estas vertentes com novos jogos de simulação narrativa, o passado como ele é encaixa melhor com os memes como eles são. Estes mimetismo reforçam assim o status quo de um lento progresso do nosso hobby, pois são tanto o seu espelho como o seu molde.

No roleplay de cada um, também há um lado restritivo que os memes podem ter por formatarem não só a nossa imaginação de acordo com arquétipos de histórias e personagens, mas também por prescreverem o nosso comportamento à mesa de jogo. Corremos o risco de não descobrimos o nosso próprio anão ou elfo porque tendemos a nos comportar como um certo meme de jogador que interpreta um certo meme de anão ou elfo que é um bocado sempre o mesmo. Os outros jogadores à nossa volta também podem esperar isso de nós abreviando aquilo que imaginam da nossa personagem para se encaixar nos memes do costume: o bardo inútil, o anão com sotaque escocês, o elfo homosexual, o paladino com zero senso comum, o ladrão cliptomaníaco, etc. Uma vantagem dos RPGs menos mimetizados é que cada personagem tem mais espaço aberto para não se saber como ela é, mais margem de indefinição com que os jogadores podem brincar ao longo de uma campanha. Nos RPGs mais populares há todo um legado que nos pode orientar mas que também nos pode constrangir, há muitas expectativas que chamam jogadores para a mesa mas pouca margem para verdadeiramente os surpreender.

Muitos roleplayers só aprendem de outros roleplayers como é que um jogo é na sua plenitude. E a forma mais divertida de juntarem esse conhecimento é através de memes, da mimetização de histórias, hábitos de jogo e arquétipos de personagem.

Também no design de RPGs podemos nos ver a descer por caminhos já muito viajados se não levantarmos perguntas que nos possam parecer estúpidas ou para as quais não saibamos as respostas. É natural desejarmos que os memes partilhados sobre os RPGs mais populares também encaixem nas nossas criações, é tentador fazer a mesma coisa outra vez só que noutra cor, noutra língua, noutro embrulho. É possível garantir algum sucesso fazendo algo muito igual e um pouco diferente e, feitas as contas, publicar um RPG e não ter prejuízo é um objectivo sensato. Mas será suficientemente motivador? E a verdade é que, por mais que seja confortável fazer mais um D&D, o universo não precisa de mais um satélite em volta do planeta d20, já tem muitos que se eclipsam mutuamente. O que é que podemos ganhar entrando nesse campo de batalha já tão pisado, cavado e revirado? Há muito mais para explorar nos RPGs do que a irrelevante relevância dos seus memes.

The Order of the Stick

Como criadores de RPGs, o factor meme afecta-nos de vários lados, sendo que podemos definir uma espécie de arquétipo máximo da sua potencial influência, algo que podemos imaginar como o livro de RPG que reúna todas as características que chamem mais gente e que induzam mais conteúdo derivativo, indepentemente do que possamos achar ser melhor para o seu leitor ou que seja mais apropriado para o nosso projecto. Este será provavelmente o clássico livro a cores tamanho A4 de capa dura, talvez até dois ou três deles logo de uma vez. Terá um design gráfico e uma arte incrível que não só fica bem na capa como nas partilhas das redes sociais, financiamentos colectivos e lojas online. Terá fichas, índices, apêndices, tabelas e todos os capítulos que correspondem às expectativas da maior parte dos roleplayers e que deixam sempre a porta aberta para conteúdos futuros: as listas de equipamento, as colecções de monstros, os mapas com territórios desconhecidos, as dicas para o mestre-jogo, etc. Terá as mesmas propostas e as mesmas lacunas que os RPGs mais vendidos e mais falados, pois repetir os mesmos erros que eles encaixa na mesma linhagem de artigos, conselhos e suplementos que diariamente passam no cortejo da internet RPGística.

Imagem da série Rick & Morty

Dito de outra maneira, se o teu jogo está tão bem pensado e o teu livro tão bem escrito que os teus leitores facilmente o percebem e sabem tudo o que precisam de fazer para jogar, não deixa de ter dois problemas quanto ao factor meme. O primeiro é que a sua mais valia está no jogo em si e ninguém o lê logo à partida, qualquer novo RPG precisa sempre de algum tempo para ganhar adeptos. O segundo é que, se o jogo e o livro forem teoricamente perfeitos, quase não há nada a dizer acerca dele a não ser recomendá-lo. Não há tópicos intermináveis de principiantes à procura de dicas. Não há artigos que tentem explicar por outras palavras aquilo que não está evidente no livro. Não há adaptações que explicitem melhor o propósito que o jogo pode servir. É um pouco o que está a acontecer paralelamente na indústria dos videojogos. Se um videojogo estiver incompleto, cheio de bugs, exigir estar sempre online, custar €50 e ainda mais €30 todos os anos, deve ser mais um projecto lucrativo de uma grande editora. Se um videojogo estiver basicamente pronto, funcionar bem, não depender de estar online e custar €20 por aquilo que é uma experiência completa, deve ser mais um projecto de uma pequena editora a tentar lutar por algum reconhecimento.

Ordem dos Últimos, módulo para Dungeon World

Mas há maneiras de ganhar o favor do factor meme e de ainda fazer aquilo que melhor serve um RPG e os leitores a quem se dirige. Se todos os ditames do bom design de RPGs dizem que devemos dar ferramentas e não só permissões, a boa notícia é que isso também é o caminho a seguir para incentivarmos a criação de conteúdo derivativo. Pode acontecer que incluir essa possibilidade no nosso jogo faça pouco sentido, mas devemos pelo menos considerar a hipótese de integrar no seu esquema criativo alguns processos que possam expandir a sua premissa e abordar outras escolhas não tomadas por nós. Um caso de estudo é o de Apocalypse World, um RPG que não é propriamente acessível mas que claramente mostra uma abordagem seguida por Vincent Baker para o criar, tão claramente que muitos sentiram-se impelidos a experimentar aplicá-la a outros universos. Aliás, nem sempre se evidencia como criar um RPG pode ter duas fases: uma em que montamos um esquema criativo e outra em que o usamos para escrever arquétipos, poderes, cenários, ganchos narrativos, exemplos de jogo, etc. E o factor meme pode nos ajudar se pusermos estes processos de ambas as fases nas mãos dos nossos leitores. A magia dos RPGs é tal que, como seus criadores, podemos não só dar o espectáculo mas também abrir a cortina para os bastidores. E, como leitores e jogadores, não será descabido nos imaginarmos a subir também para esse palco.

O design de novos RPGs e a teoria em volta de novas ideias permitem-nos avançar por terreno desconhecido que não é iluminado pelos grandes espelhos e holofotes dos memes da internet, esses que tanto têm de cómodo mas também de desapontante. E mesmo só termos consciência do factor meme permite-nos jogar sem nos deixarmos levar pela sua influência e sem o canalizarmos para cima de outras pessoas. Podemos usá-lo para fazer humor e criar convívio sem reduzir as nossas sessões a um mero exercício de mimetismo. Podemos aprender com a maneira como os memes revelam verdades, emoções e pontos em comum que nos aproximam. Valorizemos sempre o ser humano que veio se encontrar connosco não só para jogar mas também para brincar. E como designers, criadores de novos jogos ou cenários, pensemos nos nossos leitores, nas suas possíveis experiências e dificuldades. E como leitores de novas criações, procuremos compreender o contexto em que os seus autores descobrem que jogos nos querem proporcionar. Usemos a nossa imaginação não só para dentro dos nossos sonhos mas também para benefício dos outros.

Há muito mais para explorar nos RPGs do que a irrelevante relevância dos seus memes.

Como criadores de conteúdo RPGístico, temos não só de ser os nossos piores críticos mas também os fãs número um das nossas criações. Ninguém pode chegar àquele instante de inspiração primeiro que nós, ninguém pode escrever por nós aquilo que brilha na nossa cabeça, mais ninguém pode ter a última palavra sobre o destino das nossas ideias. É certo que somos bafejados por todo o género de inspirações e que muitas delas nem conseguimos identificar conscientemente. Nós também estamos mergulhados no caldeirão dos memes. Mas não devemos deixar de ter orgulho desta nossa ilusão de sermos originais, pois é isso que nos motiva a levar um projecto até algum fim e é esse ímpeto que pode ser mimetizado. Só pondo alguma coisa cá para fora é que o fã número um pode encontrar o fã número dois, três e por aí fora. Não podemos tirar memes da cartola, mas podemos canalizar a paixão que temos pelos nossos projectos para que se estendam até ao alcance de outros apaixonados pelos RPGs.

Arte de Denise Jones para Do: Fate of the Flying Temple

O factor meme evidencia o desafio da definição de um público para os nossos RPGs. Se todo o autor deve ter em mente a quem se está a dirigir, de facto há pouco espaço nas nossas pequenas comunidades para criar uma audiência, especialmente em Portugal. Sem um público-alvo, como pode um designer escolher o nível de prejuízo monetário que está disposto a sofrer para publicar um RPG? Esta dificuldade pode justificar a tal justaposição de RPGs que procuram público no campo de batalha de D&D. Também é uma razão para ir atrás de universos que estejam a ganhar popularidade na cultura pop, como os super-heróis ou o revivalismo dos anos 80, tudo para se conseguir sentir pelo menos uma brisa do factor meme. Mas também é motivo para um designer de RPGs ser também um promotor deles e de toda a sua potencial diversidade. É uma lógica simples, se somos poucos e sempre os mesmos, devíamos ser mais e chegar a outras pessoas. Não podemos inventar um factor meme, mas podemos contribuir para fazer crescer comunidades onde novos memes possam dar fruto. E em paralelo, se quisermos assumir que o nosso tempo de trabalho RPGístico tem para nós um custo zero, muitos designers aprendem a ser pau para toda a obra de modo a minimizarem o seu prejuízo monetário, apesar de isto ter consequências para a qualidade de produção dos nossos jogos. O factor meme precisa de boa arte e livros bonitos para captar a nossa atenção.

Usemos a nossa imaginação não só para dentro dos nossos sonhos mas também para benefício dos outros.

Gerir expectativas, as nossas e as de outros, em relação às nossas publicações faz parte do processo de criação de conteúdo RPGístico. Apesar de ser arriscado pormos o nosso dinheiro em jogo para algo como uma arte melhor ou testes de impressão, estes são investimentos que sinalizam à comunidade o quão comprometidos estamos com um projecto, o quanto nós somos o seu fã número um. Em simultâneo, sermos fãs do trabalho de outros designers e promovermos os RPGs em geral cria condições para que o factor meme possa eventualmente chegar a outras paragens. Ou, pelo menos, coloca-nos virados para onde novos públicos se podem formar. Sendo proactivos e conscientes do poder que o factor meme tem sobre nós, evitamos ser comidos por ele. Sendo generosos com o nosso tempo, contamos com mais pessoas para enchermos os nossos coretos e os jardins e os caminhos que se estendem para lá deles.

Arte de Charlie Creber para o mais recente 7th Sea

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

Podcast relacionado com a gestão de expectativas acompanhado de desenhos que ajudam a perceber como elas se podem (des)alinhar.

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