RPGs do século XIX
à conquista de um
novo milénio

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
17 min readMar 3, 2015

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Respostas ao artigo “O mestre-jogo está morto!
Longa vida ao mestre-jogo!”

A falta de mestres-jogo e o esgotamento de um modelo com quase dois séculos foram abordados neste primeiro artigo e recomendo que o leiam antes deste. Nesta espécie de resposta a esse artigo, viro-me agora para o relativo sucesso que o velho modelo continua a ter.

De acordo com um estudo da ICv2 para o ano de 2013, estima-se que o mercado de hobby games nos EUA tenha valido cerca de 700 milhões de dólares. Dividido em categorias, este valor será de 450 para CCGs, 125 para miniaturas, 110 para boardgames e 15 para RPGs. Não tendo acesso aos número exactos e actualizados, será no entanto razoável afirmar que as vendas de RPGs não devem ultrapassar 5% do valor total do mercado.

Segundo a mesma fonte, as vendas de RPGs nas lojas de jogos dos EUA durante o Verão do ano passado registaram o seguinte top 5:

  1. Pathfinder
  2. Dungeons & Dragons
  3. Star Wars
  4. Shadowrun
  5. Dark Heresy / Rogue Trader / Deathwatch

Nota: Entretanto os dados do Outono de 2014 também ficaram disponíveis aqui.

No espaço de uma fatia muito pequena do valor de mercado, será de esperar que tenham sucesso as empresas grandes com um catálogo que abranja todas as categorias, empresas como a Wizards of the Coast com o seu D&D ou a Fantasy Flight Games com Star Wars e a sua linha de Warhammer 40k. No entanto, a Paizo com o seu Pathfinder e a Catalyst Game Labs com o seu Shadowrun são consideravelmente mais pequenas e mesmo assim conseguem reservar sempre um lugar neste estreito top 5.

Como este ranking se centra na loja física que a cada mês luta para sobreviver e pagar a renda, será de esperar que escolham de modo seguro e conservador os poucos RPGs que têm para venda. Em grande parte, escolhem também aqueles que lhes permitem vender mais miniaturas ou boardgames conquistando assim clientes para as categorias que regularmente dão mais dinheiro.

Este ranking nada nos diz acerca das vendas online, mas a loja física é um possível ponto de encontro importante para os roleplayers de uma cidade, na medida em que o RPG muitas vezes persiste como uma tradição oral passada pelo contacto entre velhos e novos jogadores. Pode-se até dizer que o benefício que os roleplayers retiram de uma loja é maior do que a minúscula percentagem de vendas que a loja consegue ter com eles.

Dentro deste benefício, o futuro dos RPGs está solidamente comprometido com o seu passado. Como dizia o produtor de cinema Samuel Goldwyn:

Give me the same thing… only different!

Não quer dizer que seja fácil estar sempre a publicar a mesma coisa só que diferente, mas tentando identificar quais serão os elementos deste sucesso baseado em mais do mesmo, penso que há três Es que necessitam de ser satisfeitos de alguma forma: Escapismo, Emergência e Excelência.

“Tinker Bell and Peter Pan Fly to Neverland” de Thomas Kinkade

Escapismo

Propensão para fugir à realidade, geralmente através da fantasia.

James Mathew Barrie, escritor e dramaturgo escocês entre o século XIX e XX, foi o autor da famosa obra Peter Pan, the Boy Who Wouldn’t Grow Up na qual Peter, com a ajuda da fada Tinker Bell, leva Wendy e os seus irmãos para se juntarem aos seus Lost Boys na fantástica Neverland. Após várias aventuras e desventuras, Wendy e os seus irmãos regressam a casa e a sua mãe acaba por adoptar os Lost Boys, só não adoptando Peter Pan porque este recusa a hipótese de se tornar adulto. No epílogo da história, Wendy torna-se uma mulher crescida, até que a sua neta Margaret é levada também por Peter até Neverland num ciclo que se repete.

O assunto essencial desta obra é o conflito entre a inocência de ser criança e a responsabilidade de ser adulto. Entre Peter e Wendy, há uma relação mais ou menos romântica e quando ele a deixa com a promessa de voltar a cada Primavera, ela fica a olhar para o horizonte dizendo:

You won’t forget to come for me, Peter? Please, please don’t forget.

No entanto, o epílogo é marcado por um momento em que Peter se sente traído por Wendy se ter tornado uma mulher adulta. Conforme escreve Barrie,

All children, except one, grow up

pelo que a personagem de Peter Pan acaba por ser vista como uma figura quase trágica e irrealista. Mais informação sobre esta obra pode ser consultada a partir da Wikipedia.

Este elemento de visita à Terra do Nunca já vem pelo menos desde a Alice no País das Maravilhas (obra de 1865 de Lewis Carrol) e é sem dúvida central para muitos jogos nos dias de hoje. No caso dos RPGs, podemos falar de uma visita que satisfaz não só um desejo de escapar da realidade mas até do próprio jogo. É um escapismo practicamente infantil no sentido de não querer saber de regras nem de responsabilidades. Quer só alguém que nos leve e nos traga, um Peter Pan que mantenha o caminho para a Terra do Nunca aberto para o caso de nos apetecer por lá andar. É um escapismo entregue à mais pura sorte e ao mais leve deslumbramento, sem querer se preocupar com o jogo ou pertencer a um País das Maravilhas.

Numa velha procura da satisfação deste desejo, os RPGs incorporam uma deliberada separação entre as suas Terras do Nunca e quem as visita. As personagens são criadas independentemente do mundo onde se vão encontrar e os jogadores desconhecem grande parte do que nele se passa. Por isso, é normal as personagens estarem à margem da sociedade, não serem dali, não terem família ou terem poucas posses. É mesmo como estivessem só de visita. É também comum que a Terra do Nunca seja suficientemente diferente do quotidiano dos jogadores para estes sentirem que saiem da sua realidade, mas não tão diferente que eles tenham de aprender muita coisa para poderem nela estar. Tal como nas Crónicas de Narnia de Clive Lewis (outro exemplo clássico de escapismo), as personagens podem ser simples projecções dos jogadores num mundo de fantasia. Os mesmos mas diferentes.

Esta ideia quase turística de escapar para nunca estar propriamente em lado nenhum, encaixa com a referência a uma espécie de guia turístico que conduza a excursão, também chamado de mestre-jogo (ou Dungeon Master em D&D). Dada a separação entre as personagens e o mundo onde elas se inserem, é possível entregar não só o mundo, mas também o jogo e a história nas mãos desta pessoa, dado que os jogadores desejosos deste escapismo não querem ter responsabilidade sobre nenhuma destas coisas. Fica também assegurada para eles uma eventual passividade na qual se podem recolher confortavelmente se assim o desejarem. Podem se deixar surpreender por coisas em que não querem ter o trabalho de pensar.

Do lado da outra pessoa, podemos dizer que a questão do que é que pode motivar o mestre-jogo se calhar também se coloca quando pensamos no que faz mover Peter Pan. Desde logo, talvez seja um amor pela fantasia, que já não é uma paixão turística, mas um orgulho patriótico de quem mora com imenso prazer na sua imaginação. Mais do que isso, será também o agradável exercício de dar vida àquilo que parece ser um emaranhado de referências perdidas num livro (um pouco à semelhança das experiências do Victor Frankenstein criado por Mary Shelley em 1818). Um exercício que dá ao mestre-jogo o poder de deslumbrar os outros criando momentos memoráveis que podem ser raros, mas basta acontecerem uma vez para nele suscitarem uma forte motivação. Além disso, poderá dizer-se que o próprio papel do mestre-jogo é carregado de uma mística para a qual se pode escapar. Numa era de memes da internet, há inúmeras brincadeiras sobre o “Killer DM” ou “The DM Is Always Right” que aludem a uma nobre figura investida de misericordiosa autoridade e pressuposta sapiência.

Este mestre-jogo também pode escapar para uma criação de mundos que não é jogada com outras pessoas mas imaginada de modo independente, podendo assim perder-se em todo o tipo de detalhes, nomes, mapas, cronologias, etc. que não têm que interessar a ninguém excepto a ele. Graças à já referida separação entre os contributos de cada um, da mesma maneira que um jogador pode isoladamente escrever infinitas páginas sobre o passado do seu personagem, um mestre-jogo pode inventar tudo o que ele quiser sem ter em conta as personagens. Escapando para o mundo interior de cada um, exige-se pouco da interacção com outros e jogar com eles torna-se opcional. Cada um joga mais consigo próprio.

Emergência

Processo de formação de padrões complexos a partir de uma multiplicidade de interacções simples. Um comportamento emergente ou propriedade emergente pode aparecer quando um número de entidades simples operam em um ambiente, formando comportamentos complexos no seu colectivo. A propriedade em si é normalmente imprevisível e sem precedente.

Seguindo o propósito de simular realidades herdado dos kriegsspiel, um RPG pode evitar ser um jogo que providencie uma estrutura de mecanismos orientados para determinados temas e, em vez disso, ser mais um género de brinquedo feito de uma amálgama de actividades que podem ser atribuídas pelo mestre-jogo a eventuais circunstâncias geridas por ele. É assim um monte de regras condicionais, um menu de indicações que seguem o formato “se acontecer isto, faz aquilo” para o maior número de ses possível.

Deste modo, o mestre pode jogar com ele próprio usando esta ou aquela indicação para lhe dar um possível resultado, indicações e resultados que ele interpreta como achar melhor. A última edição de D&D explica:

The DM decides what happens,
often relying on the roll of a die to determine the results of an action.

O elemento de emergência é a razão pela qual o mestre-jogo não está fechado no seu quarto a escrever o próximo Senhor dos Anéis. Em vez da sua história ter que enfrentar uma página em branco, pode ser construída reactivamente perante as contribuições das outras pessoas que ele filtra, nega ou adapta mediante o seu julgamento e um eventual lançamento dos dados.

Para as outras pessoas, é também uma maneira do escapismo poder se soltar de uma excessiva intencionalidade determinada pelo jogo que pode prender demasiado as personagens aos temas que fazem parte de um universo fantástico. Um importante exemplo desta intencionalidade foi a 4a edição de D&D, no sentido em que, quando se diz que D&D é hack’n slash como uma forma ligeira de se justificar um certo escapismo, está tudo bem, mas quando o próprio jogo assume essa intenção, as pessoas já sentem que a coisa está a ser levada demasiado a sério. O desejo por algo emergente está assim relacionado com o espaço que este elemento de escapismo precisa para poder dizer “não sei” ou para poder afirmar “é assim que a minha personagem se comporta” sem poder ser questionado.

A simplicidade de interacções que faz parte da definição de emergência permite que cada pessoa preserve um seu mundo interior para onde pode sempre escapar sem ter de prestar contas a ninguém. A imprevisibilidade daquilo que emerge na sessão também serve muito bem um escapismo inocente que consegue passar uma tarde inteira a perguntar “O que é que acontece se eu fizer isto? E isto? E isto?…” sem estar propriamente interessado em questões do tipo “Sabendo eu já o que pode acontecer nestes casos, que opção vou agora tomar?” que são demasiado próximas de um verdadeiro jogo.

Do ponto de vista das editoras de RPG, para satisfazer este escapismo, teoricamente poderiam publicar livros sem regras, só com arte e pequenos contos, mas é claro que assim perderiam o seu posicionamento no mercado. É necessário que as pessoas possam pelo menos fingir que estão a comprar um jogo. Assim, o que acontece é a exploração de um modelo que evita definir-se a nível de game design e, se não replicar simplesmente aquilo que já foi feito, no mínimo segue a abordagem de muitos dos jogos de guerra do século XIX:

  1. Identificar situações que o árbitro pode ter dificuldade em ajuizar (ex: um tiro de artilharia).
  2. Verificar em campo qual é a estatística registada em centenas de situações (ex: quantas vezes se acertou num alvo a 200 metros).
  3. Aplicar essa estatística a uma probabilidade modelada pelo lançamento de um dado (ex: 35% é perto de um 2 em 6 com um dado de seis lados).

Conforme vimos no artigo anterior, a história dos jogos americana conta nomeadamente com o Strategos de Charles Totten que inadvertidamente mostrou qual é o caminho para se publicarem inúmeros suplementos quando propôs uma enorme quantidade de tabelas para avaliar desde o estado das estradas até o salário que um soldado pode receber mediante o saldo da balança comercial do seu país. Por outro lado, também vimos como Verdy du Vernois propôs que um árbitro conhecedor e experiente pode responder muito bem ao passo 2 sem precisar de consultar tabelas. Seguindo esta abordagem, quem escreve um RPG pode limitar-se a aplicar este pensamento a situações imaginárias e assim, da mesma maneira que um jogador não tem que explicar porque é que a sua personagem age de certa maneira, evitar dar qualquer propósito coerente às regras do seu livro. De resto, há sempre duas maneiras de não mostrar qualquer intencionalidade: dizer que o mestre-jogo é que sabe ou dizer para se lançar um dado sem qualquer modificador ou resultado mais provável.

À partida, seria de pensar que este E de emergência se tornasse frustrante para o mestre-jogo, e até certo ponto isso acontece. Porque é que uma pessoa há-de gastar dinheiro num livro que só lhe vai dar mais trabalho? Mas o truque é que a seguir pode se vender um novo livro ao mestre-jogo para o ajudar nesse trabalho extra. Ou podemos criar fóruns de apoio, escrever blogues ou gravar vídeos e com tudo isto fazer dinheiro em publicidade. É todo um negócio paralelo que floresce graças a uma procura de respostas que será sempre infindável, já que o problema está nas perguntas que se deixa permanecer em nome deste E.

Se, por um lado, a emergência pode ajudar o escapismo a manter a sua infantilidade, o escapismo pode ajudar a emergência a ser assumida pelo mestre-jogo, pois há toda uma suposta arte que tem de ser aprendida para se poder almejar a ter o título de temido e respeitado mestre. Além de que ambos os elementos beneficiam da separação entre supostos jogadores e mestre-jogo, entre as personagens e o universo do qual estas supostamente fazem parte, entre o livro e aquilo que acontece à mesa.

“Fiana, the Bloody Baroness” de Daniel Kamarudin

Excelência

Grau elevado de perfeição ou superioridade.

Monte Cook, um dos designers da terceira edição de D&D escreveu em 2005 um artigo que entretanto foi apagado do seu site, mas que eu penso ser relevante para avaliarmos a importância deste último elemento, pelo que aqui fica o link para o conteúdo arquivado. Nele, Monte Cook explica que

We wanted to reward mastery of the game.

sem chegar a entrar no motivo pelo qual consideraram que a mestria sobre o sistema seria importante para os jogadores (referindo apenas a comparação com as “Timmy cards” de Magic: the Gathering). Numa entrevista de 2012, Monte Cook reafirma que

For 3rd Edition D&D, we decided that system mastery would be a built-in reward. This is the idea that people who play the game longer figure out better choices than a brand new player, and so the old veteran around the table feels rewarded.

e acrescenta:

I would say that mastery is entirely a psychological thing. Lots of good game design actually has to do more with psychology than mechanics. You want people to be glad they’re playing your game. You want them to be happy about their choices, particularly when those choices are good for the game. Getting a cool new thing at each level isn’t about game balance, it’s about psychology. You want people to think, “I am glad I kept playing, because now I’ve gained a level and got this cool new ability.” That’s why the whole concept of levels is so brilliant.

System mastery is the same thing. It’s a reward for being really invested in the game, long-term. “I feel smart because I have read the rules twice and have been playing for nine years.” People who are that invested are likely to want to keep playing. And player retention–getting people to continue to play–is as important as getting new players.

Esta procura de excelência é o elemento que nos faltava para complementar os outros dois. Depois de termos colocado o mestre a jogar com ele próprio, também precisamos de prever a possibilidade dos jogadores fazerem algo semelhante com as suas personagens. Algo sobre o qual possam conversar dentro e fora da sessão, uma espécie de brinquedo ou puzzle que estimule as suas capacidades e os faça investir o seu tempo de um modo que os prenda ao longo do tempo sem pôr em causa o seu escapismo. Quem não se lembra de personagens descritas desta maneira (copiado de um fórum da última edição de D&D):

sorc 16/ fighter 2/ warlock 2, max CHA for the eldritch blast, and taking the fighter lvls just for the action surge ability
The idea is using the eldritch blast (4 rays), then using the quickened spell metamagic from sorcerer class to cast 1 additional eldritch blast ( 4 rays), and then using the action surge for fighter cast 1 additional eldritch blast (another 4 rays), so you will be able to cast 3 eldritch blast in 1 round( 12 rays), and then 2 (8 rays)for the following 7 rounds, the lvl 2 warlock allows you to add the agonizing blast invocation, and you can choose hex spell for the warlock class… the possible damage for each ray should be 1d10+5 (cha)+1d6 = 15 average per ray

Naturalmente que este mesmo prazer que qualquer pessoa retira de se poder tornar excelente a fazer alguma coisa também se alinha com tudo o que já faz parte da figura do mestre-jogo conforme descrita anteriormente. Nota-se até na própria linguagem, nomeadamente no uso constante do verbo lidar e da aplicação do caso possessivo em frases do género “como é que posso lidar com os meus jogadores nesta minha campanha?” (sendo que em Inglês tanto encontramos o verbo to deal como to handle). Mais exemplos que facilmente encontro na internet:

Need help teaching my try-hard PC’s a lesson.

How do I handle a PC with evil intentions?

I need tips for running politics in a campaign that can keep my PCs interested.

Curiosamente, não existem os mesmos clamores por excelência no design dos próprios RPGs, algo que não surpreende tendo em conta a estratégia explicada anteriormente. Mestria não só sobre um sistema (ex: d20) como sobre um universo (ex: World of Darkness) são usados como prémios de excelência para agarrar e comprometer um número máximo de clientes. Dito de outra forma, a quem domina um destes RPGs, não é suposto lhe restar tempo, dinheiro ou até vontade para se poder meter num outro RPG.

Desenhos de Christopher Burdett para Dungeons & Dragons

Neste século XXI, os RPGs que montam o seu sucesso a partir destes três Es são naturalmente ameaçados pelos jogos de computador que também tentam satisfazer estes mesmo elementos, nomeadamente MMORPGs como o Eve Online ou projectos inovadores como o Minecraft. Num horizonte dos próximos cem anos, a questão central que talvez possa impedir uma inteligência artificial de substituir o mestre-jogo é a ambiguidade com que elementos aparentemente contraditórios são combinados, graças à compreensão humana daquilo que as pessoas querem. Se alguém disser a um computador que quer que lhe conte uma história em que a sua personagem é importante, mas sem a questionar demasiado sobre ela, com surpresas planeadas, mas afectadas por aleatoriedade, e por todas as coisas que a pessoa possa querer fazer, ou nenhumas se naquele dia não lhe apetecer, sem ter que se preocupar com as regras, mas com a hipótese de abusar delas se se lembrar de alguma coisa, acho que consigo cheirar um chip a derreter à distância. Já agora, é claro que essa pessoa não diz isto explicitamente e de alguma forma o computador vai ter que aprender a ler mentes. Boa sorte portanto.

Boa sorte também para todos os mestres-jogo que sustentam o sucesso destes RPGs, já que esta tarefa não parece nada fácil, mesmo para seres humanos. Mas apesar de todas as dificuldades, as pessoas depositam a sua confiança neles e estão habituadas a que possa haver um certo drama causado pela estranha dinâmica de suposta autoridade que eles assumem. É também sui generis a normalidade com que se vê um mestre-jogo a se sentir esgotado e a por vezes ter de parar ou desistir completamente.

No entanto, havendo um voluntarismo dos mestres-jogo para darem o corpo às balas, a conquista do novo milénio vai avançando de ano para ano e os RPGs que não apelam a uma qualquer combinação de escapismo, emergência e excelência estão ainda à procura de modelos alternativos e de públicos que não se revejam tanto nestes três Es. A verdade é que muita gente ainda deseja aquele deslumbramento de criança, aquela surpresa do rolar de um dado ou aquele gozo de ir para casa pensar em combinações de feats, classes, feitiços, armas, etc.

Além disso, continua a haver uma forte identificação entre o anfitrião e o mestre-jogo. Mesmo nos RPGs que não têm um mestre-jogo designado, as pessoas associam quem explica o jogo a alguém em quem podem confiar para filtrar o contributo de cada um, dar ideias quando estas não surgem e dizer sempre o que se faz a seguir. Possivelmente, isto acontece porque é natural que a disponibilidade de cada um e a confiança que têm nas capacidades dos outros não seja uniforme, ou seja, há sempre alguém mais dedicado ao jogo e/ou alguém em quem as pessoas confiam mais e com quem mais querem interagir naquela circunstância. A perspectiva de valorizar o contributo de todos da mesma forma pode até funcionar e ser muito divertida, mas se calhar a maioria das pessoas prefere interagir prioritariamente com um mestre-jogo e confia pouco no que outras pessoas à mesa possam fazer.

Deste modo, poderá dizer-se que os RPGs vindos do século XIX são os mais resilientes na maneira como dependem pouco da interacção entre os jogadores e da participação de cada um. E, a partir da figura central do mestre-jogo, satisfazem elementos de escapismo, emergência e excelência que apelam a uma maioria bastante identificável. Conseguem também fazer negócio apesar da eterna falta de mestres-jogo ser um tecto que estruturalmente impede o seu crescimento (conforme explicado no artigo anterior). As suas marcas são fortes e chamam gente de todo o lado, mais até do que a sigla RPG. São assim os carros de combate desta categoria, a linha da frente cujo sucesso continua a determinar a história dos RPGs.

E, no entanto, até quando esta visão militarista persistirá?

Capa do Expansion Book do RPG Last Best Hope

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

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