Três perguntas para os teus protagonistas

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
5 min readDec 6, 2014

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Que queres saber? O que é que fazes? O que é que queres?

Esta é uma colecção de artigos sobre design e teoria dos RPGs reunida nesta página. Este artigo é um exemplo alargado do tipo de perguntas específicas que podemos integrar nos nossos jogos. Seguindo a abordagem também já delineada anteriormente, isto gera novas perguntas que ficam no ar, pendentes assim do propósito que cada autor tenha para cada um dos seus jogos.

Pensando em personagens que façam mover a história perante as várias situações em que se vão encontrando, podemos lhes colocar estas três perguntas:

As três podem ser sistematizadas numa qualquer sequência. Como neste artigo não estou a criar um jogo, não tenho qualquer orientação mais concreta, vou simplesmente seguir um critério de as ordenar pela frequência com que costumam ser colocadas. Habitualmente, “que queres saber” é a questão mais perguntada, desde que contemos todas as vezes em que apresentamos informação a uma personagem. É natural partirmos do pressuposto que um protagonista precisa de ter alguma noção mínima do contexto em que está metido antes de poder agir. Além disso, depois de tomar qualquer acção, a mesma questão também se levanta para a personagem poder avaliar o que acaba de acontecer. Por outro lado, “o que é que queres” é uma pergunta cuja resposta pode se manter igual ao longo de uma série de acções, pelo que talvez não precise de ser levantada tão frequentemente.

Não falo aqui dos procedimentos através dos quais estas questões são colocadas ou respondidas. Não sei quem as faz, a quem as dirige ou quem responde. Podem fazer parte de uma conversa entre jogadores, de uma sequência de intruções, de tabelas aleatórias, etc. Podem depender da descrição de alguém, de um lançamento dos dados, do valor de uma carta, de uma quantidade de contadores, etc. Mesmo sem nada estar previsto, um jogador pode pensar nestas perguntas só para ele próprio. Todos estes possíveis processos dependem daquilo que um autor quiser para cada um dos seus RPGs.

De qualquer forma, vou seguir uma possível sequência para poder exemplificar como este trio de interrogações se combina naturalmente:

1. Que queres saber?

Perante uma interrogação do protagonista, podemos simplesmente dar-lhe a resposta ou perguntar-lhe o que é que faz para poder saber isso, o que nos leva à segunda pergunta. Normalmente, haverá uma motivação no protagonista que dá relevância aquilo que ele quer saber (“Eu quero saber isto porque quero…”), pelo que esta primeira questão não é equivalente à terceira.

2. O que é que fazes?

A resposta a isto é potencialmente central e clarificadora, pois é o momento em que efectivamente se passa alguma coisa, integrando a informação que está disponível com aquilo que o protagonista pretende. Perante aquilo que é feito, há consequências que nos levam de volta à primeira pergunta (“O que é que aconteceu?”) e suscitam a terceira (“É isto o que tu queres?”).

3. O que é que queres?

Quando pensamos em protagonistas, podemos considerar que a explícita definição dos seus objectivos precede as suas acções, mas não tem que ser assim. Podem haver vários propósitos possíveis numa dada circunstância antes de uma personagem assumir um deles para si. No limite, pode não saber aquilo que quer até ver acontecer algo que não quer. Por isso, coloco esta questão em terceiro lugar para, após serem verificadas as consequências daquilo que o protagonista fez, ele poder comparar e ver até que ponto correspondem aquilo que ele quer.

Arte de Clyde Caldwell para AD&D

Imaginemos agora um ladrão que faz parte de um grupo de aventureiros. Regularmente, ele vigia os seus companheiros para lhes ir roubando umas moedas de ouro sempre que tem oportunidade.

Que queres saber?

“A guerreira está a dormir?”

“O que é que fazes para saber isso?”

“Deito-me ao lado dela durante algum tempo e oiço a sua respiração.”

“A respiração é lenta e regular. O que é que fazes?

“Pego-lhe na bolsa e tiro de lá algumas moedas, nada que ela chegue a notar.”

Ao longo do tempo, o ladrão vai tirando dinheiro aos seus companheiros. A consequência disto é que ele acaba por gerir a totalidade das moedas de que o grupo dispõe para as suas aventuras. Nunca pode ficar com muito para ele sem colocar em risco a continuidade do grupo, mas vai acumulando um considerável pé-de-meia com o qual se pode ir embora quando lhe apetecer.

O que é queres?

“Quero fazer mais dinheiro com este grupo, mas não vamos a lado nenhum enquanto eles andarem sempre a contar tostões para arranjarem melhor equipamento. Vou começar a pôr de volta nas bolsas deles algumas das moedas que lhes roubei.”

Neste caso, explorando o protagonismo de um ladrão, descobrimos que ele se torna o tesoureiro do grupo (ou é descoberto e foge/matam-no/mata o grupo terminando as suas aventuras). Note-se que, se as consequências forem previsíveis, é possível dar como garantida esta situação de protagonismo e saltar da primeira resposta para a última (determinando que qualquer ladrão é sempre o tesoureiro do grupo).

Em geral, podemos analisar como este trio de interrogações é integrado num jogo de forma mais ou menos explícita e como se dá mais ou menos preponderância a alguma questão sobre as outras, nomeadamente para definirmos qual o nível de protagonismo que queremos para as personagens dos jogadores. Também é possível colocar estas perguntas no plural para o conjunto destas personagens (que querem saber, o que é que fazem, o que é que querem), mas aí corremos o risco de nos afastarmos demasiado da ficção na medida em que ignoramos a individualidade concreta de cada uma. No fundo, estas questões hipotéticas permitem-nos olhar para um RPG do ponto de vista da personagem de um jogador e essa proximidade do Espaço Imaginário Partilhado pode nos salvar de uma excessiva abstracção.

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

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