A arte e o design como preservação da memória coletiva em tempos de pandemia.

Eduarda Moreira
Design em Tempos de Pandemia
9 min readNov 12, 2020

Atualmente, nossa sociedade vivencia um momento crítico, a pandemia de Covid-19 surgida em 2020, abalou nossas vidas de forma repentina e bárbara, transformando nosso cotidiano. O novo mal que acompanha a era da modernidade certamente adentrou a história junto com outras doenças que também marcaram a trajetória da humanidade, e assim como elas, o novo Coronavírus está sendo perpetuado pelas mais diversas formas de arte e design, que são essenciais para a preservação de tais eventos.

Eduardo Kobra — Fonte: Instagram @kobrastreet art (2020)

Indubitavelmente, a arte existe em nossas vidas como um fenômeno social, no qual o artista coloca um pouco de si mesmo e de suas vivências, compartilhando e materializando suas ideias e seu momento histórico. Sabemos que a arte está imersa na sociedade desde o período pré-histórico, a arte rupestre permitiu que no futuro historiadores pudessem entender as perspectivas e vivências dos homens das cavernas, compreendendo seu estilo de vida, organização social e problemáticas de sua época.

Ainda que a arte tenha tomado diversas formas ao longo das décadas, desde a arte egípcia até a arte romana, do renascimento ao romantismo, do concreto ao abstrato, mesmo maleável e em todas as suas formas, ela mantém uma característica perene: a documentação e preservação de uma memória coletiva.

Nesse sentido, a arte mostrou-se mais do que apenas um artifício artístico, tornou-se mais complexa, sendo forte exponencial no estudo, no entendimento de sociedades e na compreensão de momentos históricos importantes.

Logo, a arte é construtora e testemunha da história, já retratou ao longo das décadas a memória e contexto de diversos povos, diversas revoluções e variadas guerras, mas também pragas e doenças que assolaram a humanidade. Tanto a peste negra (Séc. XIV), quanto a gripe espanhola (Séc. XX) influenciaram diversos artistas de suas respectivas épocas, doenças devastadoras que ocorreram na história do mundo deixaram uma marca assim como uma cicatriz em um corpo, e através da arte e foram representadas e gravadas na história como um importante meio de documentação.

Tendo em vista as informações apresentadas, este artigo visa refletir sobre a arte e o design na preservação da memória coletiva em tempos de pandemias passadas e no contexto atual do Covid-19.

O que é memória coletiva?

Em 1950, ocorrera a publicação do livro A Memória Coletiva de Maurice Halbwachs o sociólogo que criou o conceito de Memória Coletiva. Em sua teoria, o autor afirma que é impossível analisarmos o fenômeno da recordação sem antes levar em conta os fenômenos sociais de uma época ou contexto histórico para a reconstrução de memória (HALBWACHS, 1968).

Além disso, o conceito de memória coletiva afirma que não há a existência de uma memória estritamente individual, visto que o sujeito está inserido em algum contexto ou grupo, e que esse contexto que o indivíduo pertence, será importante para rememorar algum momento específico. Por exemplo, ainda que uma lembrança específica seja vivida por apenas uma pessoa, ela ainda está inserida em um viés social, que diz respeito a alguma comunidade ou grupo, ou seja, a lembrança torna-se pertencente à comunidade ou grupo ao qual o indivíduo pertença. Para Halbwachs, a memória é sempre construída de forma coletiva mas também gerada individualmente (HALBWACHS, 1968).

A arte como preservação de memória coletiva em tempos de pandemia passadas.

“A arte é a forma mais intensa de individualismo que o mundo já conheceu.”

— Oscar Wilde

Ainda refletindo sobre o conceito do sociólogo francês, que também afirma que memórias individuais são perspectivas sobre memórias coletivas, podemos pensar que a representação individual que artistas fizeram ao longo da história das pandemias, espelharam ali uma realidade coletiva de tempos de crise e realizaram a preservação de um importante momento para a história.

Por certo, a peste negra é uma das doenças que mais debatemos quando olhamos para o passado da humanidade, surgida na Europa no século XIV, foi documentada diversas vezes pela arte. Visto que vários artistas a representaram em suas obras fúnebres, a arte nesse contexto perpetuou a coletividade vivida no momento, tornou-se muito importante para a documentação das problemáticas medievais. Diversas pinturas retratam a crise vivida pela sociedade da época, o caos, miséria, fome, luto e doença estão sempre presente nas obras, e enfatizam a morte de forma caótica e eminente.

Pierart dou Tielt — Cidadãos de Tournai Enterrando os Mortos Durante a Peste Negra (1347) Fonte: Silvana Tinelli (2020).

A arte fora de suma importância para a compreensão da memória coletiva na época da peste, houve também o nascimento do movimento artístico ‘Danse Macabre’ ou dança macabra que tornou-se forte representante dos sentimentalismos sombrios presentes da idade média. Exemplificando, podemos observar a pintura de Bernt Notke que mostra a morte dançando e rondando a todos independentemente de classe social.

Bernt Notke- Surmatants Totentanz (Séc. XV) Fonte: Obvious (2017)

Outrossim, mais tarde na história, a gripe espanhola ocorrida no ano 1918 também foi representada por alguns artistas, como o pintor expressionista Egon Schiele, que retratou em uma de suas últimas pinturas (inacabada) a situação de sua família ao contrair a gripe espanhola. Também, Edvard Munch, criou obras expressionistas que petrificaram o seu medo e estado físico ao contrair a doença. Munch produziu diversos autorretratos acerca de suas angústias relacionadas à doença e à morte e, ao contrário de Schiele, sobreviveu à gripe.

Edvard Munch — Autorretrato apos á gripe espanhola (1919) /Egon Schiele — A familia (1918) Fonte: Leia Já (2020)

Arte e o Design no contexto do novo coronavírus.

Ainda que a pintura tenha sido muito significativa para a representação de memória coletiva em tempos de pandemias passadas, a contemporaneidade tem ainda meios mais fortes que reafirmam a arte e o design como formas desta preservação de memória: o advento da internet e a capacidade de armazenamento de dados.

Desde o início da quarentena gerada pelo vírus Covid-19, o consumo artístico aumentou exponencialmente em nossa sociedade, tornou-se uma válvula de escape, que promove o bem-estar e a preservação da saúde mental. A produção gráfica neste período está representando o sentimentalismo coletivo sobre como estamos vivendo e expressando as angústias de uma sociedade em isolamento à frente de um vírus mortal. As cidades, vazias no início da crise sanitária, foram preenchidas com as mais diversas formas de arte, e a internet permitiu que, diferentemente das pandemias passadas, essas expressões artísticas estejam sendo preservadas em dados e em redes sociais, até mesmo quando essa forma de arte ou design não é necessariamente concreta.

Foto: Desconhecido (2020) / Foto: Guglielmo Mangiapane (2020) Fonte: G1 (2020)

Através dos veículos de notícias, não foi raro a transmissão de diversas manifestações artísticas momentâneas ao redor do mundo. Graças à tecnologia, essa produção artística cotidiana não só foi documentada como também será extremamente relevante para a preservação da memória em tempos de pandemia.

No Brasil, a noite em algumas cidades tornou-se diferente, diversas pessoas criaram projeções nos prédios das grandes cidades, uma forma de artística gerada pelo isolamento social e pela pandemia, que permitiu a transmissão de mensagens de conforto para várias pessoas mesmo a distância. Também na Itália, no início do isolamento, pessoas cantando as sacadas gerando orquestras amadoras, foram também uma forma de arte, entretenimento e escapismo para todos que estavam em isolados em suas casas.

Essas expressões artísticas, estão sendo capturadas por meio de performances fotográficas e em vídeo , que são resguardadas por meio das novas tecnologias, e podem ser observadas mesmo em um futuro longínquo. Diferentemente do que acontece com as pinturas medievais, a reprodução desses momentos permite a imersão total do observador, que poderá reviver essa lembrança pandêmica pelos olhos e pelas câmeras de um outro alguém, mantendo viva a memória coletiva gerada pelos cidadãos que viveram a época crítica de isolamento social.

Além disso, a arte e o design concretos, também se beneficiaram das tecnologias atuais. Com as redes sociais, foram criadas inúmeras formas de publicação artística, como o desenvolvimento do Covid Art Museum, um perfil no Instagram que possibilitou manter um acervo ilimitado de obras produzidas no mundo todo no período da pandemia. Outrossim, inúmeras vezes, artistas utilizaram de suas redes sociais para produzir peças gráficas com mensagens de conforto, ou ilustrações que mostram situações cotidianas vividas pelo sujeito contemporâneo lidando com a nova realidade gerada pelo vírus.

Por exemplo, a máscara mesmo já sendo um fator comum em nossas vidas, tem sido representada em ilustrações diversas, tornou-se parte da identidade visual do período, e é representada de maneira icônica. Ela tornou-se um símbolo universal, e forte representante do período em que vivemos, logo podemos vê-la sendo reproduzida nas mais diversas peças artísticas que falam sobre a pandemia da modernidade. A artista Cassandra Calin, conhecida por ilustrar cenários cotidianos, também começou a representar situações que a pandemia inseriu em seu dia a dia.

Cassandra Calin — Fonte: Instagram @cassandracalin (2020)

Ademais, temos também a arte de rua que reflete a memória das mais diversas nações frente a esse período histórico traduzindo a realidade vivenciada. Não é incomum encontrarmos registros feitos ao redor do mundo, com os mais diversas representações gráficas que mostram não só mensagens de esperança, mas também homenagens para os profissionais da área da saúde.

A rua fala artisticamente através dos muros, mantendo viva a expressão individual de um artista e representando mesmo assim a realidade de toda uma sociedade.

Tanto artistas anônimos, como artistas renomados, transformaram as paisagens urbanas trazendo cor para a realidade cinza que se faz presente. O artista britânico Bansky, conhecido por suas obras ativistas, usou de sua influência para representar mensagens artísticas em homenagem aos profissionais da saúde no Hospital da Universidade de Southampton, no sul da Inglaterra. Também, outros artistas não tão reconhecidos mundialmente, vem colorindo as ruas, concretizando de forma artística o momento em que vivemos, fazendo da própria rua um livro, que agora não mais em branco, permite refletir a nova realidade.

Robert Cianflone — Anjo Australiano (2020) Fonte: Veja (2020) /Bansky — Fonte: Instagram @bansky — 2020

Conclusão

A arte diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível” — Leonardo da Vinci

A arte e o design possuem um papel de preservação de memória coletiva indubitável. Mesmo que a memória seja preservada de forma diferente ao longo das décadas, é inquestionável que ambos apresentam uma possibilidade de entendimento contextual e de estudo histórico imensurável.

Ainda que cada artista expresse sua individualidade em uma determinada forma de artística, por mais variada que ela seja, é uma visão sobre a memória da sociedade que vive e presencia momentos de crise como os de uma pandemia. Assim como a arte retratou as pandemias passadas, a arte contemporânea e o design são de suma importância para gravar na história todos os sentimentos que eventualmente foram expressos por nossa sociedade atual.

Tanto as mensagens de consolo e afeto quanto as homenagens aos heróis da pandemia, permitirão que no futuro historiadores possam refletir e estudar esse momento, preservando a realidade que uma doença causou no mundo inteiro. A arte e o design podem traduzir todo esse sentimentalismo que nela é expresso, e perpetuar uma realidade e a memória coletiva gerada pela sociedade contemporânea.

Refererencias

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G1.Coletivo escreve frases de incentivo a isolamento social em SP: ‘A cidade não está vazia, está cheia de amor ao próximo’. 2020. Disponivel em: https://g1.globo.com/. Acesso em 20 out. 2020.

__.De quarentena por novo coronavírus, moradores de cidades da Itália cantam nas janelas; veja VÍDEO. 2020. Disponivel em: https://g1.globo.com/. Acesso em 20 out. 2020.

__.’Um afago’, diz integrante de grupo que exibe mensagens de esperança no isolamento em um dos prédios tradicionais de BH. 2020. Disponivel em: https://g1.globo.com. Acesso em 20 out. 2020.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed.. São Paulo: Editora Revista dos tribunais LTDA, 1990.

LEIA JÁ. Como os artistas plásticos retratam pandemias. 2020. Disponível em : https://m.leiaja.com/. Acesso em 20 out. 2020.

OBVIOUSMAG. As obras da danse macabre. 2017. Disponivel em: http://obviousmag.org/.Acesso em 20 out. 2020.

SILVANA TINELLI.Como a arte retrata uma pandemia. 2020. Disponível em: https://www.silvanatinelli.com.br/. Acesso em 20 out. 2020.

VEJA. A arte de rua virou a melhor tradução cultural da pandemia pelo mundo. 2020. Disponivel em: https://veja.abril.com.br/. Acesso em 20 out. 2020.

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