Adobe Stock

Design Open-Source em tempos de crise

Como o design open-source pode ser uma ferramenta importante em tempos de pandemia.

Letícia Bento
Design em Tempos de Pandemia
10 min readAug 31, 2020

--

O impacto social e econômico da pandemia vem atingindo trabalhadores dos mais diversos ramos de atuação em variados níveis de gravidade. No caso da prática do design, por ser uma profissão que permite o trabalho remoto, muitos de nós vêm mantendo os nossos vínculos empregatícios de casa, através do modelo home-office. Paralelamente, em um país onde o design ainda está longe de ser considerado uma ferramenta essencial para a sobrevivência de um negócio e é muitas vezes visto como frívolo e decorativo, muitos de nós designers brasileiros passamos os últimos meses lidando com reduções de demanda de trabalho, de salário e até mesmo demissões.

Neste cenário, é compreensível que muitos se sintam inseguros e ansiosos ao lidarem não apenas com as incertezas e desafios associados às mudanças significativas na vida profissional, mas também àqueles associados ao cuidado com seus familiares, amigos, e vida em sociedade em tempos de crise. Frente à estas adversidades, é fácil que a nossa moral como profissionais fique prejudicada. Designers são, por natureza, solucionadores. Mas em uma crise de saúde pública em escala global, muitos se perguntam como contribuir com suas habilidades e qual papel assumir dentro dos esforços de contenção da pandemia.

O que é design open-source?

O design open-source promove um maior acesso à tecnologias e inovações.

Open-source design, também conhecido como open-design movement, ou design aberto em português, consiste no desenvolvimento de tecnologias sem a retenção de direitos de propriedade intelectual (TAYLOR, 2015). Em um projeto open-source o produto final está em constante estado de aprimoramento e customização, continuamente influenciado pelos diferentes grupos ou indivíduos envolvidos em sua criação. Em outros casos, o design já finalizado é disponibilizado livremente para o público, sem restrições. Embora a ideia de open design, ou compartilhamento de informações projetuais seja bastante antiga, esta prática tem ganho tração nos últimos anos com o auxílio da internet e as suas infinitas possibilidades de comunicação e compartilhamento de dados. Atualmente podemos observar um número significativo de produtos e projetos desenvolvidos através de iniciativas de contribuição coletiva, muitos dos quais são distribuídos gratuitamente ou a preços reduzidos, o que permite que tais produtos cheguem a usuários que em outras circunstâncias não poderiam acessá-los (HOWARD et al, 2012). Alguns dos exemplos mais conhecidos e bem sucedidos de iniciativas open-source são:

1- ARDUINO

Placa Arduino

Arduino é uma plataforma open-source especializada na criação de placas de prototipagem eletrônica que são capazes de ler entradas — luzes em um sensor, toques em botões, mensagens no twitter — e transformá-las em saídas — ativação de um monitor, acendimento de um LED, clique de mouse. O Arduino nasceu como um projeto criado por estudantes do Instituto de Design de Interação Ivrea, na Itália como uma ferramenta simples e de baixo custo destinada a profissionais e estudantes sem conhecimentos prévios de programação. Ao longo do tempo, a iniciativa ganhou popularidade e o Arduino foi se modificando e adaptando à demandas mais complexas e variadas (ARDUINO, 2018).

2- LINUX FOUNDATION

Linux Foundation

A Linux foundation é umas iniciativas open-source mais bem sucedidas da história. Como uma organização sem fins lucrativos, a Linux Foundation atua não apenas como suporte ao sistema operacional gratuito e open-source Linux, mas também hospeda e patrocina outras iniciativas de desenvolvimento open-source no mundo todo.

3 -MOZILLA FOUNDATION

Mozilla Foundation

A internet é um recurso público e global que deve permanecer aberto e acessível. — Manifesto Mozilla

A Mozilla Foundation é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo promover uma internet segura e saudável através de iniciativas de pesquisa, aprimoramento e movimentos plurais em prol de soluções para os malefícios associados ao mau uso da internet. Além disso, a Mozilla Foundation hospeda o browser gratuito e open-source Firefox, o segundo browser mais utilizado em dispositivos desktop.

Por que o design open source se fez necessário em um contexto de pandemia?

Embora as ideias de autoria, patente e copyright sejam essenciais para assegurar a competitividade e diferencial entre fabricantes de produtos, em um contexto de crise faz-se necessária a criação de soluções para situações emergenciais nunca antes enfrentadas. Deste modo, necessidade de lucro se dissipa à medida que a implementação de inovações tecnológicas tornam-se decisivas para a manutenção do bem estar da sociedade e a prevenção de eventos catastróficos. No cenário atual, é imprescindível que diferentes comunidades tenham a possibilidade de compartilhar experiências e soluções à medida que trabalham por um objetivo em comum. De acordo com Richterich (2020), em um contexto de pandemia, este modelo de criação estimula a inovação cívica e permite que diferentes comunidades produzam e distribuam as soluções necessárias para a contenção da crise em diferentes âmbitos.

Problemas graves, como aqueles trazidos por uma pandemia global, não podem ser resolvidos através da mesma lógica dominante usada em tempos de maior certeza e estabilidade.

Mas quando o design open-source é a melhor solução para a viabilização de um projeto? Conforme Cankurtaran e Beverland (2020), problemas graves, como aqueles trazidos por uma pandemia global, não podem ser resolvidos através da mesma lógica dominante usada em tempos de maior certeza e estabilidade. Para encontrar o melhor curso de ação para abordar o problema com efetividade, é necessário realizar questionamentos a fim de compreender o contexto geral no qual ele está inserido, identificar os empecilhos pré-existentes e fomentar ideias para diferentes alternativas (BEVERLAND et al, 2015). Um dos problemas graves mais comuns enfrentados por diversas comunidades desde o início da pandemia é a escassez de equipamentos de proteção individual — EPI , indispensáveis aos profissionais da saúde para que lidem em segurança com pacientes altamente infecciosos. A escassez foi tamanha que várias comunidades ao redor do mundo se prontificaram a tomar o problema em suas próprias mãos e produzir alternativas viáveis enquanto muitos governos locais falharam em assegurar esses recursos de modo confiável.

Enquanto os governos apelavam aos fabricantes comerciais para começar a produzir o equipamento necessário, os inovadores civis foram amplamente esquecidos. E mesmo assim, várias iniciativas relevantes passaram a surgir. Por exemplo, voluntários italianos imprimiram em 3D válvulas respiratórias que salvaram vidas quando um hospital em Brescia descobriu que sua cadeia de suprimentos estava esgotada. Também na Alemanha, Holanda, Espanha, Reino Unido e em outras partes do mundo, as comunidades DIY (Faça você mesmo) empregaram suas habilidades e ferramentas: membros de iniciativas independentes de criação e manufatura produziram, entre outras coisas, protetores faciais , máscaras cirúrgicas e respiradores (RICHTERICH, 2020).

Em face desse problema, Lennon Rodgers, diretor do Laboratório de Design e Inovação na Universidade de Wisconsin, recebeu a tarefa de produzir mil protetores faciais para o hospital da universidade. Imediatamente, ele iniciou a busca por peças e materiais apropriados para o projeto. Logo mais, em colaboração com uma empresa de design e fabricante locais, ele iniciou o desenho de um novo modelo de máscara de acrílico: a Badger Shield.

Badger Shield

Inicialmente, eles esperavam utilizar impressoras 3d para a fabricação das partes necessárias, porém logo perceberam que não conseguiriam atingir a escala necessária para suprir a demanda do hospital. Com um projeto finalizado mas sem meios viáveis de fabricação, eles optaram por criar um website e disponibilizar o design junto com instruções de montagem e lista de partes necessárias para download, permitindo que qualquer um pudesse montar o próprio exemplar (IP, 2020).

Lista de componentes

A estratégia de Open Design parece criar uma grande cobertura da mídia, talvez devido ao engajamento social associado ao Open Design.

Logo, a iniciativa atraiu a atenção do público e da mídia, uma das vantagens associadas ao design open-source segundo Howard (2012): “A estratégia de Open Design parece criar uma grande cobertura da mídia, talvez devido ao engajamento social associado ao Open Design.” Pouco tempo depois, a dificuldade inicial de manufatura foi solucionada quando a gigante Ford Motor Co assumiu a tarefa de fabricar as máscaras em grande escala e distribuí-las aos vários hospitais de Detroit.

A partir deste exemplo podemos observar o emprego de um open-design similar, em partes, ao processo utilizado pela organização responsável pelo Arduino. Em ambos os casos o design inicial do produto foi realizado por uma entidade específica, sem contribuições externas. Contudo, diferente do Arduino, a Badger Shield apresenta o princípio da replicabilidade exposto por Howard (2012) como uma das características que podem estar presentes em certas iniciativas open-design que visam a distribuição a baixo custo de um produto ou tecnologia.

Replicabilidade — denota a disponibilidade dos componentes individuais do projeto e, portanto, a possibilidade de o produto ser montado à mão. Desta forma, os objetos necessários para a montagem do produto, incluindo componentes internos, podem ser replicados com facilidade se esses componentes forem fáceis de obter. Inversamente, os objetos open-design cujos componentes são difíceis de produzir ou não podem ser obtidos com facilidade pelo público em geral podem não ser facilmente copiados (HOWARD et al., 2012).

Por utilizar partes facilmente adquiríveis em lojas de artesanato, papelarias e lojas de equipamentos para dentistas, a Badger Shield pode ser replicada com bastante facilidade em diferentes realidades e contextos, sem a necessidade de obtenção ou montagem de peças complexas ou exclusivas. É importante ressaltar, no entanto, que a criação de equipamentos de proteção individual improvisados não é uma solução definitiva para a escassez destes materiais. Conforme colocado por Richterich (2020), “Os esforços de voluntários podem adicionar, embora não substituir, a fabricação em grande escala. E, obviamente, evitar a falta de equipamentos de saúde em primeiro lugar deve ser prioridade.”

A pandemia é um desafio que precisa de soluções em diversos níveis e há inúmeras maneiras de contribuir de modo relevante através de iniciativas de pequena escala em comunidades locais.

Por envolver questões relacionadas à saúde pública em um sentido mais pragmático e funcional, iniciativas como a de Rodgers e sua equipe podem parecer bastante intimidadoras para um designer que não se sente confortável em seus conhecimentos e habilidades para pensar e projetar equipamentos desta natureza. Contudo, é possível aplicar os princípios do open-source design expostos neste artigo a diversos tipos de projetos. A pandemia é um desafio que precisa de soluções em diversos níveis e há inúmeras maneiras de contribuir de modo relevante através de iniciativas de pequena escala em comunidades locais.

Sophie Dennis, designer britânica, notou uma grande demanda por materiais informativos bem desenhados, com comunicação clara e limpa. “Alguém na minha região queria fazer um panfleto informativo e eu me ofereci para criar o design do panfleto”. Movida pela curiosidade sobre como outros grupos estavam utilizando o design da informação em suas comunidades, ela pediu em suas redes sociais para que lhe enviassem exemplos de panfletos relacionados à pandemia. “Foi muito útil ver os exemplos e ver o que era eficaz. Uma coisa simples como coletar esses exemplos e colocá-los em uma pasta do Dropbox é uma pequena maneira de ser útil e de compartilhar conhecimento com outras pessoas que possam estar fazendo algo semelhante.”

Um dos panfletos presentes na pasta de Dropbox da Sophie é um modelo customizável de cartão criado por Becky Wass, uma redatora publicitária britânica. O Cartão da Bondade Viral foi criado com o intuito de oferecer assistência à indivíduos em situação de vulnerabilidade que necessitam de ajuda para realizar as tarefas do dia-dia enquanto permanecem em quarentena.

The Viral Kindness Card por Becky Wass

No cartão, lê-se: “Olá. Se você está se isolando, eu posso te ajudar. ” O remetente do cartão pode, então, preencher seu nome, endereço e número de telefone e, em seguida, marcar as caixas que indicam como ele pode ajudar. As opções incluem pegar compras, postar correspondência, um telefonema amigável e suprimentos urgentes.

Por fim, o cartão completa com as instruções e recomendações de segurança para o destinatário do cartão: “Basta ligar ou enviar uma mensagem de texto e farei o meu melhor para ajudá-lo (de graça!). O Coronavírus é contagioso. Por favor tome todas as precauções necessárias para assegurar que está transmitindo apenas bondade. Evite contato físico (2m de distância). Lave as mãos regularmente. Os itens serão deixados na sua porta.”

Através deste exemplo podemos observar uma iniciativa bastante simples, mas que pode ter um grande impacto na qualidade de vida de um indivíduo em necessidade. A alta possibilidade de customização do cartão faz alusão ao princípio da replicabilidade mencionado anteriormente e, desta vez, está aplicado à uma peça gráfica voltada para a distribuição.

Como colocado por Vizard (2020), “quanto mais longe estamos de uma situação complexa, menor é a possibilidade de termos o discernimento e contexto necessários para contribuir.” Esta realização frente a uma crise de tantas facetas e dimensões pode nos trazer uma sensação de derrota, inutilidade e desânimo. A profissão do designer é historicamente vista, na melhor das hipóteses, como uma parte vital da comercialização de um produto e, na pior das hipóteses, como um acessório na criação do fetichismo da mercadoria. Esta “crise existencial” proveniente da reflexão acerca do lugar da nossa profissão em uma sociedade centrada na cultura do consumo desenfreado e que se afoga nas consequências trazidas por esta cultura, afeta a maioria dos designers em algum ponto de sua formação. Acredito que este é o momento de nos lembrarmos que o principal pilar da nossa profissão é o ato de colocar as pessoas em primeiro lugar, e, a partir dele, utilizar da empatia e estudo para criar soluções e inovações que tragam impactos positivos, sejam eles quais forem. O movimento design open-source encoraja um design altruísta, acessível, e se beneficia do enorme potencial de inovação e criatividade proveniente da mescla de diferentes grupos em prol de um objetivo comum.

--

--

Letícia Bento
Design em Tempos de Pandemia

23 years old — Design student at the Federal University of Pelotas, Brazil ; UX and UI designer ; Motion designer.