Design social, ativismo digital e o panorama brasileiro em tempos de crise

Ana Martha
Design em Tempos de Pandemia
10 min readSep 7, 2020

Estamos em 2020, e o mundo está enfrentando uma pandemia de proporções inimagináveis. Não há como negar: fomos pegos de surpresa. Tendo em vista o panorama atual, as perguntas a respeito das possibilidades de atuação social de diversos campos ganharam intensidade nos últimos meses. Com o design, não foi diferente.

Entretanto, a resposta para esse questionamento não é tão simples; para que se possa entender o viés social do design, é preciso compreender sua função essencial primeiro.

Segundo o designer André Villas-Boas em seu livro O que é [e o que nunca foi] design gráfico (2007, p. 30): “design gráfico é a atividade profissional e a consequente área de conhecimento cujo objeto é a elaboração de projetos para reprodução por meio gráfico de peças expressamente comunicativas”. Ou seja: de forma muito resumida, a função mais básica do design é comunicar mensagens. É isso que faz dele uma ferramenta tão poderosa. Esse aspecto singular acrescenta ao designer uma responsabilidade intrínseca à sua profissão, que é a de se preocupar conscientemente com a sociedade em que está inserido. Enquanto instrumento de comunicação, o design é capaz de impactar as mais diversas áreas, como a cultura, o mercado, a estética, a economia, a política, a ecologia e a cidadania (BARROS, 2013, p. 75). Por isso que, de certa forma, é possível afirmar que todo design é social.

No entanto, existe uma área de atuação específica no campo do design conhecida no Brasil como design social, “que atua além do domínio do mercado e prioriza as mensagens de caráter não-comercial, normalmente ligadas a questões de cidadania” (NEVES, 2011, p. 45 apud BARROS, 2013, p. 76). Ainda segundo Neves (2011, p. 46), o propósito do design social é justamente trabalhar com mensagens de denúncia e crítica visando uma transformação no quadro social, econômico e político.

Recapitulando: a noção de função social do design é intrínseca à atuação profissional do designer; entretanto, há uma área própria dentro da profissão (denominada design social) que tem como objetivo particular a reflexão, crítica e/ou mobilização acerca de problemas sociais e a busca ativa por melhorias.

Raízes do designer como agente social: uma breve retrospectiva

As noções iniciais de que o design tem poder transformador perante a sociedade podem ser traçadas até o movimento Arts and Crafts (ou Artes e Ofícios), que teve origem na Inglaterra durante o fim do século XIX como reação à confusão social, moral e artística da Revolução Industrial (MEGGS, 2009, p. 216). Os integrantes do movimento advogavam a favor do design e do retorno aos ofícios manuais, opondo-se fortemente à produção em massa de artefatos. O próprio John Ruskin (1819–1900), a inspiração filosófica por trás do Arts and Crafts, rejeitava a economia mercantil e defendia a união da arte e do trabalho a serviço da sociedade (MEGGS, 2009, p. 217).

Avançando no tempo aos anos 1960, chega ao auge o movimento da contracultura, quando a contestação social é intensificada através do uso dos novos meios de comunicação em massa. Nesse contexto, a comunicação visual alia-se aos movimentos sociais, potencializando o tom social dos discursos. Em 1964, é publicado o manifesto First Things First, escrito pelo designer britânico Ken Garland, que prega um design menos tecnicista e uma atuação mais voltada às necessidades reais da sociedade, questionando a falta de senso crítico por parte dos profissionais e convocando-os à mudança (ALBUQUERQUE, 2018, p. 20).

Ken Garland liderou o manifesto First Things First, publicado em 1964. Fonte: http://www.designishistory.com/1960/first-things-first/

Os conflitos sociais na Europa culminam no movimento de maio de 1968, na França. Estudantes e trabalhadores de Paris tomam a Escola de Belas Artes e estabelecem o Atelier Populaire, um marco para o design social, produzindo cartazes para os protestos que tomavam a cidade. Naquela época havia uma “consciência de que a comunicação visual poderia ser utilizada para além do suporte estético, como ferramenta concreta e estratégica para questionar e propor novas atitudes” (MIYASHIRO, 2011 apud BARROS, 2013, p. 79). Alguns associados ao Atelier Populaire decidiram seguir o trabalho, formando, em 1970, o Grapus, uma organização de designers engajados social e politicamente, que promoviam mensagens diretas e provocativas (ALBUQUERQUE, 2018, p. 27). Já nesses tempos, o design assumia um claro posicionamento diante dos problemas sociais e das questões políticas, revelando designers fortemente conscientes e subversivos.

Produção do Atelier Populaire, maio de 1968. Fonte: http://www.formes-vives.org/histoire/?post/mai-68
Produção do Atelier Populaire, maio de 1968. Fonte: http://www.formes-vives.org/histoire/?post/mai-68

Design, ativismo e redes sociais na atualidade

O site Dicio (2020) define a palavra ativismo como: “Transformação da realidade por meio da ação prática; Doutrina ou argumentação que prioriza a prática efetiva de transformação da realidade em oposição à atividade puramente teórica; Efetivação dessa doutrina ou dessa argumentação, através da defesa de uma causa ou da transformação da sociedade por meio da ação e não da especulação”. Essa palavra ganhou força nos últimos anos principalmente na internet, com o advento das manifestações de diversos movimentos sociais nas redes.

Apesar disso, o termo design ativista ainda é pouco usado no Brasil, muitas vezes tido como sinônimo de design social. Entretanto, o pensamento de Albuquerque (2018, p. 102) sugere que há uma distinção, pois “quando associamos a palavra ativismo à prática do design, ele se desloca para a ação, para o campo do conflito e não é feita necessariamente por profissionais”. Entende-se, então, que o design ativista se difere do social no sentido de ser utilizado por organizações e coletivos ativistas, mesmo que não seja produzido propriamente por designers. De acordo com a autora, na maioria das vezes “a produção e reprodução de todo esse conteúdo é um processo aberto e livre que possibilita a difusão de ideias e materiais para a promoção dos valores de quem está envolvido” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 104).

Essas práticas ativistas, que antes utilizavam como suporte os meios mais tradicionais de comunicação, como jornais, revistas e panfletos, agora encontram grande parte de seu suporte nas redes. A rapidez com que as mensagens são disseminadas e o enorme alcance de público são apenas duas das inúmeras vantagens oferecidas pela internet, que amplia e potencializa a divulgação das ações ativistas consideravelmente. O maior alcance das redes também significa um maior número de adeptos aos movimentos. Nesse contexto, conforme os pensamentos de Albuquerque (2018, p. 44), o design evidencia-se como facilitador da comunicação e propagação ativista; elementos gráficos passam a identificar movimentos e representar ideologias, e assim acabam infiltrando-se no imaginário popular. Além disso, a autora defende que ao passo que as novas tecnologias “se proliferam e criam novos ambientes, as imagens se reproduzem na mesma velocidade, invadindo nosso cotidiano com experiências visuais reais e virtuais” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 14).

A força de uma hashtag: #designativista e a busca por um design que vai além

No Brasil, as relações entre design e ativismo digital podem ser melhor ilustradas pelo movimento virtual Design Ativista, uma rede de criativos que entendem e, mais que isso, se apropriam do design como ferramenta de transmissão de mensagens de cunhos sociais e políticos. Para além do nome, esse coletivo corresponde muito bem às noções de design ativista que acabamos de articular, uma vez que propicia a integração de iniciantes, profissionais experientes, artistas e pessoas que nem trabalham com Design (MÍDIA NINJA, 2020).

Perfil da Design Ativista. Fonte: Instagram, 2020.

Essa participação coletiva é promovida principalmente através da hashtag #designativista no Instagram, que permite que qualquer pessoa compartilhe suas criações visuais — algumas delas são repostadas no perfil do movimento, que já conta com 190 mil seguidores. Em setembro de 2020, a tag #designativista soma pouco mais de 38 mil posts com as mais diversas mensagens de cunho crítico, levantando questionamentos e abordando assuntos como política, direitos ambientais, LGBTfobia, racismo e feminismo através de recursos gráficos.

Publicações com a tag #designativista. Fonte: Instagram, 2020.

De acordo com Albuquerque (2018, p. 15):

“O design serve como instrumento para modificar, deslocar e subverter significados e essa produção imagética se insere na estrutura social, procurando criar novas identidades e símbolos, levantando questionamentos sobre como podemos alterar as condições e modos de nossas vidas.”

É desse entendimento de design que deriva a rede Design Ativista. A busca por um design que vai além da comunicação; um design que mobiliza, critica e reflete sobre a sociedade em que está inserido, assumindo uma posição de compromisso e consciência. Um design que vai além da teoria — que torna-se ativo ao produzir, engajar e recrutar pessoas, propondo resistência e convocando a sociedade para uma efetiva transformação.

O Covid-19 entra em cena: design virtualmente engajado como reação à crise no Brasil

Mesmo antes do Covid-19 se alastrar pelo país, a situação no Brasil já era digna da palavra “crise”. Agora, com a pandemia, o clima de colapso iminente ganhou intensidade, deixando milhões de brasileiros perdidos em uma atmosfera de frustração e descontentamento e, acima de tudo, sem perspectiva de melhora. O aumento crescente e veloz da proliferação da doença no país se deve, em grande parte, à negligência do governo. “Desde o início da pandemia, em março, o Brasil se tornou referência negativa em como lidar com a Covid-19. Diferente de outros exemplos pelo mundo, o país bradou pelo negacionismo, forçou ainda mais uma ruptura política e, durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, também sofre com conflitos na economia e frequentes ataques contra a democracia” (O VALE, 2020).

Diante do panorama atual do país, encontramos o terreno ideal para a manifestação do design ativista. Além disso, com o isolamento social, já é possível ver o ativismo digital ganhando força, exigindo que os protestos se adaptem para o meio virtual. Agora, mais do que nunca, é hora de explorar as potencialidades do design a fim de denunciar, criticar e refletir os problemas que afligem nossa sociedade. A disseminação de informações úteis a favor do coletivo nunca se fez tão necessária.

Dentro e fora do Instagram, a já citada rede Design Ativista tem feito exatamente isso, atuando em projetos para o desenvolvimento de materiais e usando as plataformas digitais para conscientizar a população sobre os riscos de quebrar o isolamento social, além de comunicar medidas de proteção para a parte da população que não teve a opção de entrar em quarentena (MÍDIA NINJA, 2020).

Como reação à pandemia e suas repercussões no cenário brasileiro, designers (e não-designers) vêm contribuindo ativamente para a criação de imagens, mensagens e peças gráficas diversas relacionadas à crise no país, compartilhadas através da tag #DesignAtivista.

Fonte: Instagram, 2020. Em ordem: 1. militantecansado, 2. acabou_posters (autor: felipevalerio), 3. acabou_posters (autor: wirell4), 4. _cattini, 5. designativista (autor: _cattini) e 6. designativista (autor: estan.thi)

Como é possível observar nos exemplos, a linguagem gráfica utilizada busca chamar a atenção e alertar para a gravidade da situação, visto que o país acaba de alcançar 126 mil mortes e já conta com mais de 4 milhões de casos de Covid-19 (G1, 2020). Entre os recursos mais utilizados para agregar impacto às peças estão as ilustrações e as montagens fotográficas, junto de mensagens verbais de apelo e questionamento.

Fonte: Instagram, 2020. Em ordem: 1. designativista (autor: gnborges), 2. raphabaggas, 3. militantecansado, 4. designativista (autor: catarinabessell), 5. designativista (autor: dinholascoski) e 6. designativista (autor: dnegojustino)

Considerações finais

Em tempos de pandemia, fomos lembrados da importância do papel socialmente responsável atrelado às profissões. Designers de todo o mundo passaram a refletir sobre a amplitude da função social do design, e pensar em meios de combater ativamente a crise por meio de nossas habilidades e competências. Como vimos, o design gráfico, por ser uma ferramenta comunicadora, sempre esteve diretamente vinculado à sociedade. Os tempos atuais pedem uma atuação social ainda mais crítica e reflexiva; é essencial que continuemos questionando, mobilizando e engajando através da comunicação visual. “Reconhecer que somos atores sociais e podemos propor e executar novos caminhos faz descortinar possibilidades de atuação que não ficam amarradas a arquétipos sociais e de trabalho,” como defende Albuquerque (2018, p. 102).

Como discutido, as relações entre design e ativismo nunca estiveram tão próximas. As redes sociais na era digital possibilitam a propagação de mensagens de cunho social e político em proporções extraordinárias, tornando os processos de engajamento ainda mais acessíveis.

São tempos difíceis, não há como negar; mas é preciso continuar resistindo, e, como declara a organização Design Ativista, o design é importante demais para ficar somente à disposição do mercado e dos poderosos (MÍDIA NINJA, 2020). Seguiremos em busca de um design que vai além.

Referências

ALBUQUERQUE, Elisabete Maria de. Design gráfico em tempos de ativismo. 2018. 131 f. Dissertação (Mestrado em Design) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/34595

BARROS, Roberta Coelho. Comunicação e Pós-Modernidade: estudo das imagens não-comerciais na sociedade contemporânea. 2013. 247 f. Tese (doutorado) — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Curso de Pós-Graduação em Comunicação Social, Porto Alegre, 2013. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4545

DICIO. Ativismo. 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/ativismo/

G1. Brasil tem 126.686 mortes por coronavírus; apenas Amazonas tem alta na média móvel de óbitos. 6 set. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/09/06/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-6-de-setembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml

MEGGS, Philip B; PURVIS, Alston W. História do design gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

MÍDIA NINJA. Design Ativista. Medium, 2020. Disponível em: https://medium.com/news-quarentena/design-ativista-acb79ec0739c

NEVES, Flávia de Barros. Contestação gráfica: engajamento político-social por meio do design gráfico. In: BRAGA, Marcos da Costa (Org). O papel social do design gráfico: história, conceitos & atuação profissional. São Paulo: Senac São Paulo, 2011.

O VALE. Sem política efetiva para combate ao vírus, Brasil se aproxima de 100 mil mortes por Covid-19. 8 ago. 2020. Disponível em: https://www.ovale.com.br/_conteudo/brasil/2020/08/110938-sem-politica-efetiva-para-combate-ao-virus--brasil-se-aproxima-de-100-mil-mortes-por-covid-19-s.html

VILLAS-BOAS, André. O que é [e o que nunca foi] design gráfico. Rio de Janeiro: 2AB, 2007.

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