O design ativista feminista nas mídias sociais: perspectivas pandêmicas

Rafaela Couto
Design em Tempos de Pandemia
9 min readAug 31, 2020

O feminismo abrange uma série de movimentos sociais, culturais e políticos que questionam a desigualdade de gênero. Desde o século XIX até hoje, a ideologia feminista vem se transformando para incluir novas filosofias e causas, dando origem ao que conhecemos como as ondas do feminismo (RAMPTON, 2008). Na era digital, o movimento ativista feminista vem se expandindo, principalmente nas mídias sociais, com intuito de ampliar o alcance desse conteúdo e promover a libertação das mulheres. Por meio desses canais, se torna possível que mulheres de todas as idades possam se educar e desenvolver consciência em torno da importância dos direitos das mulheres e da luta feminista, para que assim se elabore um pensamento crítico, gerando posicionamentos que colaboram para a mudança da sociedade (ARAÚJO; SOUSA, 2018).

Ao longos dos anos, as ondas do feminismo foram caracterizadas por diferentes peças gráficas: desde as revistas suffragettes e as colagens de Hannah Hoch, passando pelos cartazes famosos da segunda onda, como os Coletivo de Chicago, até os fanzines feministas da terceira onda (GOSLING; ROBINSON; TOBIN, 2017). Atualmente, com o crescente desenvolvimento tecnológico, várias estratégias de design surgiram, desenvolveram-se e aliaram-se ao movimento feminista, principalmente quando se trata do ambiente das redes sociais. Especialmente em tempos de crise, como a atual pandemia de COVID-19, as mulheres sofrerão abalos mais profundos, complexos e duradouros, por isso, o ativismo feminista nas redes sociais é especialmente importante nesse momento (OLGA, 2020). Este artigo tem como objetivo elaborar uma breve análise das peças gráficas produzidas durante a pandemia de COVID-19 pelo coletivo feminista xota.power e a consultoria meiacincodez, a fim de observar técnicas e conceitos de design utilizados, assim como os possíveis impactos dessas peças nas usuárias das redes sociais.

Um breve histórico do movimento feminista

O feminismo, crença na igualdade política, econômica e cultural das mulheres, tem raízes nas primeiras eras da civilização humana. Tipicamente, divide-se em três ondas: o feminismo de primeira onda, que trata dos direitos de propriedade e do direito de voto; o feminismo da segunda onda, com foco na igualdade e antidiscriminação, e o feminismo da terceira onda, quando passou-se a incorporar questões relacionadas a corpo, gênero, etnia, heteronormatividade, entre outras questões (RAMPTON, 2008).

A primeira onda do feminismo originou-se no final do século XIX e no início do século XX, emergindo de um ambiente de industrialização urbana, políticas liberais e socialistas. O principal objetivo das feministas de primeira onda era conquistar o direito ao voto, ou sufrágio, por parte das mulheres. O movimento começou formalmente na Convenção de Seneca Falls em 1848, quando trezentos homens e mulheres se uniram pela causa da igualdade de direitos para as mulheres (RAMPTON, 2008).

A segunda onda começou na década de 1960, junto aos movimentos anti-guerra e dos direitos civis. A sexualidade e os direitos reprodutivos eram as questões dominantes neste período, e a principal causa defendida pelo movimento era a aprovação da Equal Rights Amendment (Emenda sobre direitos iguais) que garantiria a igualdade social independentemente do sexo, nos Estados Unidos. Foi durante a segunda onda que, baseadas em ideais neomarxistas e na teoria da psicanalítica, as feministas passaram a associar a subjugação das mulheres a críticas mais amplas à sociedade patriarcal, ao capitalismo e ao papel da mulher como esposa e mãe. Sexo e gênero foram diferenciados, sendo o primeiro biológico e o último uma construção social que varia de cultura para cultura e ao longo do tempo (RAMPTON, 2008).

A terceira onda do feminismo teve início em meados de 1990, originando-se em uma geração que cresceu com o feminismo que, apesar de considerar a luta árdua que levou as conquistas da primeira e segunda onda, criticava e apontava falhas nos movimentos anteriores. Um argumento frequentemente apresentado era sobre a natureza exclusiva dos movimentos e a marginalização das minorias. O feminismo das Riot Grrrls, como eram chamadas, aspirava ser global e multicultural, onde diferenças como as de etnia, classe, orientação sexual, etc. são celebradas e reconhecidas como dinâmicas, situacionais e provisórias. As feministas de terceira onda acreditavam que mulheres deveriam se envolver na produção cultural, como por exemplo, criando sua próprias músicas e fanzines (RAMPTON, 2008). A banda bikini kill, muito popular entre as Riot Grrrls, produziu um fanzine que inclui manifestos para liberação dos corpos gordos, discursos de leitoras sobre serem apalpadas em shows, e ensaios sobre como o movimento Riot Grrrl poderia ser mais inclusivo.

Explora-se a possibilidade da emergência de uma quarta onda do feminismo, que teve início em meados do ano de 2012, com foco no combate ao assédio sexual, body shaming e cultura do estupro, entre outras questões. As feministas da atualidade trazem para a discussão perspectivas importantes, ensinadas pelo feminismo da terceira onda, em termos de interseccionalidade, em que a supressão das mulheres só pode ser totalmente entendida em um contexto de marginalização de outros grupos e gêneros. Uma das principais características do movimento é o uso das mídias sociais para destacar e abordar essas preocupações (RAMPTON, 2008). No próximo capítulo será feita uma breve análise de peças gráficas do coletivo feminista xota.power, que abordam as questões citadas anteriormente e trazem a luta feminista para o atual cenário de pandemia, oferecendo apoio para mulheres em situação vulnerável.

O design ativista feminista nas redes sociais: perspectivas pandêmicas

No cenário atual, todos serão impactados direta e indiretamente pela pandemia de COVID-19, porém, os grupos vulneráveis, especialmente as mulheres, sofrerão abalos mais profundos, complexos e duradouros. De acordo com ONG Think Olga:

“Mais de 13 milhões de pessoas no Brasil sobrevivem abaixo da linha da pobreza, com uma renda média de até 145 reais mensais. Entre essas pessoas, uma grande maioria é composta por mulheres […].”(OLGA, 2020).

Portanto, as populações mais atingidas pela crise sanitária e econômica causada pela pandemia são, em grande parte, mulheres negras de baixa renda, mães solo, trabalhadoras domésticas e enfermeiras. Além disso, os casos de violência contra a mulher aumentaram em 50% no estado do Rio de Janeiro durante o isolamento social (OLGA, 2020). Por essas e muitas outras razões, o ativismo feminista nas redes sociais é especialmente importante nesse período de crise, e o design pode ser um grande aliado na produção de peças gráficas para o público feminino que promovam a luta pelos direitos das mulheres, incentivem e implementem soluções para facilitar denúncias, entre outras questões.

Existem inúmeros coletivos e ONGs feministas que marcam presença nas redes sociais, produzindo conteúdo diverso sobre o assunto, com intuito de educar mulheres de todo o país. Nesse artigo, serão analisadas postagens do coletivo xota.power no Instagram, durante a pandemia de COVID-19. A primeira postagem a ser analisada tem como tema a violência doméstica na quarentena, trazendo dados sobre o aumento desse tipo de agressão em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de explicar porque esse aumento ocorre. Na legenda da postagem são informados dois números de telefone para denúncias de violência doméstica.

Postagem do perfil xota.power no Instagram, 2020.

A segunda postagem foi produzida pela consultoria especializada em comunicação com mulheres, chamada meiacincodez, e postada pelo coletivo xota.power, trazendo dados relacionados à maternidade e a família, e como as mulheres brasileiras são as mais afetadas economicamente por essas questões, principalmente mulheres negras e mães. Segundo a ONG Think Olga:

“A crise econômica agrava ainda mais a situação de mulheres em trabalho informal, pequenas e média empreendedoras, mães e mulheres em empregos mal-remunerados.” (OLGA, 2020).

Postagem do perfil xota.power no Instagram, 2020.

A terceira postagem também foi produzida pela consultoria meiacincodez, e traz uma frase da escritora feminista, Simone de Beauvoir. Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, de 1949, constata:

“Não há mãe “desnaturada”, posto que o amor materno nada tem de natural; […] Não há nisso nenhum “instinto materno” inato e misterioso.” (BEAUVOIR, 1949).

Neste trecho do livro, a autora questiona o papel da mãe na família, que geralmente é imposto às meninas desde criança, presenteando-as com bonecas, encorajando-as a encantar-se com a maternidade, ditando que essa é sua vocação (BEAUVOIR, 1949). A necessidade de rever o papel da mãe dentro da família se torna especialmente importante em tempos de crise, como a pandemia de COVID-19, quando o isolamento social precisa ser respeitado, e a família passa mais tempo em casa e, geralmente, são as mães cuidam de todas as tarefas domésticas, dos filhos, do marido, do trabalho, entre outras atividades. Como observado na postagem anterior, mulheres dedicam 73% mais tempo que homens à tarefas domésticas ou cuidados com outras pessoas, como crianças e idosos (IBGE, 2017).

Postagem do perfil meiacincodez no Instagram, 2020.

Quanto ao design, a estética das postagens pode ser comparada às colagens dadaístas do início do século XX, pelas suas característica semelhantes, como identifica Melo e Portinari (2018):

“O fragmento, os restos, os vestígios, cortes torcendo a linearidade do tempo e seus papéis rasgados. Rasgos que não se trata apenas do corte físico, mas também do valor simbólico que possuía como ruptura com o passado, com a linearidade.” (MELO, PORTINARI, 2018).

“Indian Dancer: From an Ethnographic Museum” Hannah Höch, 1930.

Com o apagamento das mulheres na história da arte, muitas artistas não são reconhecidas como deveriam. Uma dessas artistas é a colagista alemã Hannah Höch, uma importante representante do movimento dadaísta, com produção intensa entre 1910 e 1960. O movimento dadaísta se construiu em um período crítico marcado pela primeira guerra mundial, fortes tensões sociais e inflação desenfreada. Diante disso, os dadaístas buscavam destruir os valores tradicionais, criando uma nova arte que rompe com a uniformidade de superfície na representação (MELO, PORTINARI, 2018).

Ainda sobre as postagens analisadas e suas semelhanças com as colagens dadaístas, pode-se traçar uma aproximação dessas peças com os zines feministas de terceira onda. Segundo Melo e Portinari (2018), além da aproximação de materiais e técnicas como o fragmento, o rasgado, a sobreposição, a mistura, entre outras características, Hannah Höch e as zineiras de terceira onda aproximam-se na inclinação político-artística. Tanto as postagens analisadas, quanto às colagens de Hannah Höch e os zines das Riot Grrrls buscam a ruptura, o alerta, a denúncia das violências cotidianas (MELO; PORTINARI, 2018).

Colagem do fanzine “Riot Grrrl Manifesto,” Bikini Kill #2, 1991

Considerações finais

Quando se trata da luta feminista, ainda há um longo caminho a percorrer e o ativismo nas mídias sociais, sozinho, não resolverá todos os problemas do mundo. Porém, o ativismo feminista online têm potencial educador e transformador, visto que auxilia mulheres que têm acesso a esse conteúdo a desenvolver consciência em torno da importância dos direitos das mulheres, para que assim se elabore um pensamento crítico, que gera posicionamentos que colaboram para a mudança da sociedade. Principalmente no cenário pandêmico atual, é essencial que questões como violência, educação, saúde e política sejam trazidas à tona e discutidas, e as comunidades virtuais fornecem um espaço seguro que permite formas mais inclusivas e transgressivas de igualdade de gênero.

Referências

ARAÚJO, J; SOUSA, D. Feminismo contemporâneo: as mídias sociais como ferramentas de resistência. VI Semana de História do Pontal, Ufu, 2018. Online. Disponível em: http://www.eventos.ufu.br/sites/eventos.ufu.br/files/documentos/delles_de_lean_rodrigues_de_sousa.pdf

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Ebook, 1949.

GOSLING, L; ROBINSON, H; TOBIN, A. The feminist art: Images that shaped the fight for equality, 1857–2917. Ebook, 2017.

IBGE. Mulheres dedicam mais horas aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas mesmo em situações ocupacionais iguais aos dos homens. 2017. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/24266-mulheres-dedicam-mais-horas-aos-afazeres-domesticos-e-cuidado-de-pessoas-mesmo-em-situacoes-ocupacionais-iguais-a-dos-homens

MELO, C; PORTINARI, D. MATERIALIDADE NO TECIDO DA VIDA: COLAGENS DADAÍSTAS E ZINES FEMINISTAS. Tríades PUC-RIO, 2018. Online. Disponível em: https://triades.emnuvens.com.br/triades/article/view/59

OLGA, T. Mulheres em Tempo de Pandemia: Os agravantes das desigualdades, os catalisadores de mudanças. ONG Think Olga, 2020. Online. Disponível em: https://thinkolga.com/covid-19/

RAMPTON, M. Four Waves of Feminism. Pacificu magazine, 2008. Online. Disponível em: https://www.pacificu.edu/magazine/four-waves-feminism

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