HOSTICIDADE
A arquitetura da cidade e as suas relações com o corpo
Este é um estudo feito para explorar de maneira experimental e sensorial as relações do corpo com a cidade. Sob orientação de nossos mentores, Anderson Penha, Clara Cecchini e Fabricio Licursi, desenhamos e executamos uma instalação artística e urbana dentro do tema O CORPO E A CIDADE com registros que captaram a espontaneidade das relações entre o público definido e o conceito de hostilidade e afeição que criamos.
Para desenvolver e analisar o tea, partimos da pesquisa executada na disciplina de Design Etnográfico sob orientação de Rodrigo Villalba, que promoveu observações a campo de pessoas em situação de rua e o ambiente urbano como um todo. Ao observar a persona que desenhamos, traçamos um paralelo entre sua existência, exterior, relacionada ao mundo urbano e sua essência, interior, para dentro do próprio corpo. Assim como Friedensreich Hundertwasser em seus estudos sobre as cinco peles, realizamos uma reflexão sobre o ser e estar sobre a terra, entendendo o ser humano como um ser de camadas, e os possíveis paralelos de interpretação subjetiva em que as pessoas na rua se inserem.
Imagem: Teoria das 5 peles. (Fonte: HUNDERTWASSER, F.)
Utilizando-se de quatro óticas distintas (Fisiologia, Poética, Sociológica e Psicológica) desenvolvemos as peles que a cidade promove enquanto membrana física e social.
Para ilustrar melhor as nuances e texturas que estamos trabalhando, montamos alguns mosaicos que exploram essa “diversidade epidérmica” tanto no orgânico quanto no sintético.
As peles do corpo
As peles da cidade
Analisando essas teorias do ponto de vista das pessoas em situação de rua, percebemos a escassez de algumas dessas peles, muitas vezes camufladas ou invisíveis para pessoas em situações um pouco mais favoráveis, de onde surgem alguns questionamentos, como: que ambiente, objetos ou lugares atuam como pele casa de pessoas que vivem nas ruas? Quais são as sensações na epiderme dessas pessoas durante um dia? Quais são suas relações com o meio que habitam e a natureza, nossas peles mais externas?
Os “habitantes da cidade” vivem diariamente os desafios em todas as suas peles: o calor e o frio, a posse e a falta, o acolhimento e na discriminação, a coragem e o medo, entre muitos outros contrastes.
Sentindo a cidade
Como terceira etapa, com olhar menos observatório e postura mais intromissiva, nos desafiamos a sentir a cidade e suas nuances; a tocar com o próprio corpo, o corpo urbano. Em um ensaio “pele com pele” exploramos do concreto gelado da calçada ao calor penetrante dos habitantes da rua, aqueles que nela e dela vivem.
A proposta desse exercício foi o desenvolvimento da empatia e o descobrimento de novas formas de abordar o tema.
Munidos com a roupa do corpo e sem objetivos muito claros do que poderíamos vivenciar nas ruas, nos dividimos para executar atividades que explorassem nossos sentidos e nos colocassem em um ambiente de maior exposição.
Coletamos latinhas de alumínio em cestos e lixeiras espalhadas pela cidade, oferecemos ajuda para montar barracas, tiramos a roupa do corpo para doação, sentamos em escadarias, deitamos no chão e em bancos de praças, acessamos centros e abrigos para pessoas em situação de rua, escutamos.
Como resultados desse experimento tivemos alguns insights e observações.
No campo sensorial notamos alguns aspectos característicos dos “habitantes da rua”, aqueles que vivem ou transitam nela. Tivemos a sensação térmica fria do solo, desconforto devido a postura corporal para se acomodar nos lugares que experimentamos, ansiedade pela falta de noção do tempo e as notícias.
O que será que estava acontecendo no mundo naquele momento? Uma minuciosa imersão em desconfortos. Diversos fatores expunham nossas fragilidades, nos colocavam em situação de medo e esperança por um mundo mais justo. Era como se já tivéssemos olhado para isso antes e pudéssemos resgatar em nosso íntimo, experiências difíceis de se aceitar. Muito recorrente também foram as sensações de observação alheia quanto às atividades que desempenhamos e o destacar individual da multidão em discernir se pertencíamos ou não àquele lugar.
Nossa dificuldade de passar “despercebidos” nos colocou em grande exposição, a sensação era que holofotes se apontavam para nós. Nestes espaços parecia que tudo acontecia em grande escala, por nos sentirmos de certa forma “desprotegidos”. Nossa epiderme e nossas roupas limpas nos deslocavam daquele espaço. A escadaria de pedra quente não nos convidava a sentar, onde as pessoas deste ambiente se permitiam deitar para um banho de sol.
Mesmo que tentássemos “nos misturar” éramos automaticamente colocados de volta na posição de observadores pelas pessoas que se permitiram interagir conosco. Não pudemos descobrir exatamente o por quê, mas o que sentimos foi a falta do lugar de fala. Não se consegue ocupar o lugar de outro ser com a verdade dele. Aquelas pessoas dormem e acordam na rua, não sabem o que irão comer hoje ou se irão ter o que comer amanhã, muitos não se importam em guardar o cobertor que usaram na noite anterior para se proteger do frio na noite seguinte. Não se tratava de julgar seus comportamentos, mas sim de sentí-los junto e buscar entendimento de ao menos 1% de suas sensações.
Com base em toda essa experiência, desenhamos em conjunto o que seria uma tradução daquilo que vimos e sentimos para um projeto de intervenção. E assim chegamos na pergunta chave:
Como gerar empatia sensorial com pessoas em situação de rua?
Foi através da arquitetura urbana que decidimos explorar a possível resposta para essa pergunta, pois durante as nossas longas caminhadas pela cidade, junto a nossas pesquisas netnográficas, percebemos a importância dos elementos da cidade para a vida de todos, assim como elementos específicos são desenhados de forma intencional para dificultar a ocupação prolongada do local.
Esses, entre vários outros, são elementos espalhados pela cidade que interferem diretamente na pele casa das pessoas em situação de rua, da mesma maneira como climas muitos extremos também hostilizam o dia a dia dos habitantes.
Para esse estudo demos o nome:
Experimentar os contrastes de realidade desses habitantes com a realidade da maioria das pessoas, buscamos trazer elementos que vimos na cidade para a assepsia de um ambiente frequentado por pessoas de alta classe social: o local escolhido foi um conjunto de Parklet da Chilli Berna na Rua Oscar Freire, em SP.
Materiais como pregos, parafusos, cobertores, papelões e lixas foram utilizados para transpor sensorialmente as texturas encontradas pelos habitantes da cidade dia após dia.
Durante o experimento, os funcionários das lojas foram os que mais se incomodaram com a ação no espaço público. “Melhor vocês usarem o espaço da Chilli Beans porque aqui as pessoas comem na hora do almoço”, “Mas tem que ser aqui?”, “Você nos desculpe o incômodo mas tem um pessoal fazendo uma intervenção aí”, foram algumas frases que escutamos durante as 3 horas de ocupação do espaço e que pessoas em situação de rua diariamente ouvem por ocuparem a cidade.
Ainda sem sentir na pele a tal empatia sensorial que comentamos antes, resolvemos seguir para uma segunda intervenção: colocamos um colchão em alguns pontos das calçadas da avenida Paulista, onde sentamos por intervalos de 30 minutos, no domingo de sol forte do dia dos pais.
As sensações foram muitas. Desde o calor que infiltrou nossas roupas e atingiu nossas peles, aos olhares e as indiferenças dos passantes. Nesse tempo sentimos minimamente na pele o que era a Hosticidade.
A diversidade de sons estridentes do trânsito misturado às conversas de pessoas com escapamentos das motos e a voz dos ambulantes aproveitando o movimento da rua para vender seus produtos, era ensurdecedor. Somados a total indiferença e invisibilidade que algumas pessoas faziam questão de externar, quase nos atropelavam e nos colocavam num lugar incomôdo de digerir.
“Você já se sentiu incomodado por estar incomodando?”
Durante a experiência, uma lojista ambulante reclama em tom enfurecido à nossa ocupação próxima ao seu ponto de vendas que, coincidentemente, também ocupa um espaço público.
Nesse momento Igor sente na pele o que é incomodar. “Mas tem que ser aqui?” nos tira o direito de descansar, de ocupar a cidade que é de todos e para todos.
O colchão agora é do Leandro, 31 anos, acolhido pela rua há mais de 7 anos.
Leandro relatou para nosso grupo que fez a transição para rua por conflitos familiares, ele tem casa, família e portas abertas para voltar, mas como a convivência não é boa, prefere chamar a rua de sua casa. Relatou também as duras realidades vividas, as incertezas, os medos e a breve alegria em ser escutado naquele momento, receber aquele colchão, que tanto nos tinha tocado e agora era dele.
“É liberdade, mas tem um preço. E a gente paga esse preço todos os dias.”
Experimentado todo esse contexto, gostaríamos de traçar um caminho entre as sensações que vivemos aos espectadores da apresentação final e relatar uma breve vivência pela cidade com direito a ruídos, interações e interrupções urbanas que vivemos na pele todos dias mas que nem sempre percebemos, através de um passeio.
Te convidamos a viver à cidade hoje. Mas será que ela te deixa entrar?
É com esse exercício que gostaríamos de explorar com vocês um outro olhar sobre o corpo na cidade. O corpo que habita o espaço e se funde de maneira a fazê-lo parte do ambiente físico. O corpo então não é mais apenas corpo, é também cidade. E a cidade deixa de ser o espaço e se torna também o corpo de quem o habita.
Um misto de escutar e não ser ouvido. De ser atrapalhado pelo carro que passa na avenida, ou atrapalhar quem transita na calçada?
Através de uma caminhada guiada e formada por muitas visões diferentes do que significa estar e viver a cidade. À reflexão é uma: como experimentar mais o ambiente a sua volta e perceber lugares hostis, lugares que precisam ser mais inclusivos, mais afetivos, mais humanos?
O que pra muitos é um túnel, uma estrada, um trajeto a ser percorrido. Para tantos outros é casa. Sua pele, sua casa, seu trabalho.
Talvez você saiba exatamente do que estou falando. Ou talvez não, você é apenas mais um passageiro nessa viagem querendo apenas chegar ao seu destino.
…esses nomes vivem a hosticidade todos os dias e celebram os momentos que os fazem serem ouvidos. É preciso ouvir mais a cidade, tocar com a própria pele a pele da rua.
Esse foi um ensaio que nos levou a olhar para lugares quase invisíveis.
Que nos fez descobrir o quanto a cidade de uns, não é a cidade de outros. Foi uma experiência pequena perto do todo, mas enriquecedora independente da escala.
Convidamos todos a fazerem o mesmo e se perguntar
“Como seu corpo sente a cidade? E como seu corpo faz os outros se sentirem?”
Originally published at https://medium.com on August 26, 2021.