- cena do filme HER -

Eliminating the Human? — Humanismo e tecnopolítica em David Byrne.

Douglas Cavendish
Livework São Paulo
8 min readSep 19, 2017

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Recentemente me deparei com um artigo escrito por David Byrne para a MIT Technology Review, em que afirma existir um padrão consciente nas produções tecnológicas contemporâneas que visam eliminar as interações humanas por meio de serviços prestados por máquinas mais eficientes.

Fiquei intrigado de várias formas com o texto e creio que seja interessante tocar alguns pontos que ele evoca, principalmente no evidente humanismo-fetichista que envolve sua fala, reflexo de boa parte dos enredos tecnológicos em circulação no interior da vida social, sobretudo os que são sensíveis a um futuro distópico eminente em face à revolução das máquinas.

Aproveito para agradecer o querido Gustavo Bittencourt, que enfrentou centenas de áudios de whatsapp, durante nossa discussão sobre os pontos mais interessantes deste artigo, o que acabou despertando esta análise.

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"We are beset by — and immersed in — apps and devices that are quietly reducing the amount of meaningful interaction we have with each other." — David Byrne @ MIT Tech Review

Byrne inicia sua tese colocando a ideia de que existe uma agenda tácita por trás de iniciativas em curso nos mercados high-tech que, segundo ele, trata-se de "eliminar os contatos e interações humanas" e que isso não seria um acaso dos fatos (bug), mas sim uma característica deliberada (feature) das ações de grandes empresas de tecnologia.

Interessante perceber o modo sutil e suficientemente contraditório que David usa para delimitar as interações humanas, que segundo ele estariam entrando em desuso com o avanço de inovações no setor de desenvolvimento tecnológico. Em suas próprias palavras:

"much recent tech development and innovation over the last decade or so has an unspoken overarching agenda. It has been about creating the possibility of a world with less human interaction"

Ele faz um panorama sobre este aspecto, analisando uma série de empresas e serviços digitais. Cita pedidos online, streaming de música, pagamento automatizado, carros autônomos (entre outros), como exemplos de serviços altamente convenientes e relevantes, mas os trata como elementos estratégicos da "agenda eliminatória do contato humano", ou "evidências" cabais de um processo que teria como principal objetivo, ainda que tácito, suprimir a necessidade de contato humano direto.

"this then, is the new norm. Most of the tech news we get barraged with is about algorithms, AI, robots, and self-driving cars, all of which fit this pattern. I am not saying that such developments are not efficient and convenient; this is not a judgment. I am simply noticing a pattern and wondering if, in recognizing that pattern, we might realize that it is only one trajectory of many"

O primeiro trigger que me despertou curiosidade no texto de Byrne é a já clássica influência humanista que ronda o mundo tech, que serve em grande medida para fetichizar tanto a nós mesmos (humanos) quanto à nossa própria noção de tecnologia.

"for us as a society, less contact and interaction — real interaction — would seem to lead to less tolerance and understanding of difference, as well as more envy and antagonism."

Esta frase acima mostra nitidamente a maneira como costumamos conferir status de realidade apenas para interações humano-humano dentro do que chamamos de sociedade. Tendemos a encarar como "real" apenas interações entre seres humanos, sendo assim, todo resto há de ser artificial. O que há de sutil aqui é a defesa de um certo tipo de humanismo que seja responsável para consigo mesmo, melhor, que seja capaz de fazer com que as interações ruidosas entre seres humanos os aproximem, para que se tornem mais tolerantes entre si.

O eminente mundo do automatismo, presente em ambientes de prestação de serviços digitais, estariam em oposição a este ideal humanista uma vez que se preza pela eficiência "sem ruídos" da máquina. Neste sentido, quanto maior for a eficiência maquínica destes processos, menor será a necessidade de interação humana. O que não necessariamente é verdade.

Byrne defende com ardor a condição errática do ser humano, como sendo um atributo que nos permitiu evoluir. Sem dúvidas este é um posicionamento bastante sensato e sóbrio, mas não consigo me sentir compelido a acreditar que haverá um rompimento das interações humanas por conta do automatismo das máquinas e das interfaces human-less de serviços digitais.

Isso soa mais como um misoneísmo, à reboque da noção positivista de que as relações entre seres humanos são dotadas de maior especialidade. Noção que herdamos, muito fortemente, do pensamento iluminista Kantiano.

A função central do pensamento iluminista, que estabelece o esteio humanista, é ter o ser humano no centro das relações. A partir daí ficou mais fácil aceitar que o ser humano seria, por si mesmo, capaz de deliberar o significado do mundo que o rodeia. Uma postura cuja centralidade se estabelece por meio de uma suposta superioridade subjetiva humana. Em outras palavras, para o humanismo-positivista adotado desde então, e supersaturado contemporaneamente, somente o ser humano é capaz de produzir subjetividades, “sentir” emoções e, fundamentalmente, decidir questões. Por isso Byrne acredita que delegar decisões para as máquinas seria uma forma de nos retirar humanidade. A máquina, neste sentido, é o outro indesejável, algo que será sempre considerado "sem vida", que não pode decidir coisas melhor do que nós humanos, pelo fato de não possuir consciência, por ser artificial.

"humans are capricious, erratic, emotional, irrational, and biased in what sometimes seem like counterproductive ways. It often seems that our quick-thinking and selfish nature will be our downfall. There are, it would seem, lots of reasons why getting humans out of the equation in many aspects of life might be a good thing. But I’d argue that while our various irrational tendencies might seem like liabilities, many of those attributes actually work in our favor. Many of our emotional responses have evolved over millennia, and they are based on the probability that they will, more likely than not, offer the best way to deal with a situation"

O que o humanismo tem dificuldade em admitir, com efeito, é exatamente a condição de artificialidade em que o ser humano se encontra quando está no mundo. Peter Sloterdijk, filósofo alemão, faz um alerta interessante quando a isso: não existe para fora. Pensar sobre o que significa "estar no mundo" implica num esforço direto em definir precisamente que tipos ambientes e sistemas de suporte de vida nós, seres humanos, estamos em articulação.

Esta condição amalgamática (imbricada — não separada) que Sloterdijk elucida, em que o ser humano mantém relações e interações (tanto reais, quanto artificiais) com os ambientes ao seu redor, tem um sentido prático que ruma em oposto ao humanismo evocado por Byrne.

Para o ser humano existir enquanto tal ele sempre precisou estar em relação, não consigo mesmo e seus semelhantes apenas, mas com todo um mundo sensorial, natural, técnico, real. Isso inclui: objetos, artefatos, máquinas, seres vivos, sistemas, ecossistemas, etc. Somos entidades que estabelecem entre si, o tempo todo, relações de coexistência por meio de afetações mútuas.

A interação de um ser humano com máquinas não é menos real do que sua interação com um porco, ou um semáforo, ou um cobrador de ônibus. Estamos todos em relação, e todas estas relações são reais, pois mediam a nossa realidade, numa equação de soma zero. Não há nada de muito especial nas interações humano-humano que deveria ser preservado, pois estas relações não estão separadas do mundo ao redor.

Pensar em um ser humano separado no mundo é tão imprudente quanto lançar um cosmonauta nú no espaço sideral.

A questão mais interessante não seria pensar sobre com o quê as máquinas podem contribuir para que possamos interagir mais e melhor com aquilo e aqueles que amamos? Se as máquinas forem capazes de fazer os trabalhos burocráticos a que somos expostos no dia a dia, se forem capazes de eliminar interações sem muito sentido (ruidosas, porque não?), isso pode significar mais tempo para nos dedicarmos a coisas que realmente gostamos de fazer.

A máquina pode nos ajudar a ressignificar e melhorar o trabalho humano.

Porque é que temos a sensação de que o que acontece é exatamente o contrário? Porque temos a sensação de que a máquina está "roubando nosso trabalho"? Porque acreditamos que estamos perdendo nossas interações humanas? Porque nutrimos esta aversão à máquina?

Esta aversão à máquina, este misoneísmo-maquínico, simboliza o último recôndito humanista, que busca ainda nos reservar algum lugar de destaque dentro dos sistemas de interações aos quais estamos sujeitos. O problema deste tipo de visão positivista é que geralmente deixamos escapar assuntos que são realmente relevantes e urgentes a serem rediscutidos.

Vamos tomar por exemplo este trecho do texto de Byrne:

"the point is not that making a world to accommodate this mind-set is bad, but that when one has as much power over the rest of the world as the tech sector does over folks who might not share that worldview, there is the risk of a strange imbalance"

Este é, sem sombra de dúvidas, um dos trechos mais potentes de sua fala, pois coloca uma problemática que em larga medida ignoramos em nossos debates sobre tecnologia, ou seja, as políticas em curso nos mercados high-tech. Quero dizer que as performances tecnológicas subjacentes à nossa estadia no mundo são articuladas em espaços especializados de mediação de interesses corporativos, econômicos, sociais, técnicos, maquínicos, etc. Ao conjunto destes espaços especializados podemos dar o nome de tecnopolítica.

É destes espaços que surgem todo tipo de proposta de valor tecnológica que nos é vendida. É sobre o que acontece no interior destes espaços que deveríamos dar mais ênfase em nossas discussões, pois o resultado destas mediações tecnopolíticas guiarão o modo como usamos coisas, tomamos decisões, interagimos entre nós e com o mundo ao redor.

Mais do que nos preocuparmos com a probabilidade ficcional da máquina nos desumanizar, não seria mais proveitoso discutir tecnocracia (que não é uma produção meramente humana) em curso no mundo?

Mais do que considerar a máquina como uma entidade incapaz de "acreditar em ficções", não seria mais interessante pensarmos sobre outras ficções que podemos criar junto delas?

Elas sempre estiveram conosco, nos ajudando a mediar nossa estadia no mundo. Desde a pedra lascada, estivemos sempre articulados com máquinas, que assim como nós também passaram por um processo evolutivo, foram ganhando maior capacidade adaptativa, maior automação, mais eficiência.

O que há de contraditório no texto de Byrne é que ele finaliza sua fala da seguinte forma:

“'We' do not exist as isolated individuals. We, as individuals, are inhabitants of networks; we are relationships. That is how we prosper and thrive"

Nada mais elucidativo da condição humana de estar no mundo, não fosse a insistência em determinar que essas relações são especificamente humanas. Não, não são. Nossa capacidade de evoluir cooperativamente não é uma característica estrita de nossa humanidade, mas algo que só foi possível por estarmos sempre articulados a outras entidades não humanas, que cooperam simetricamente conosco para mediar isso que chamamos de realidade. Não vamos deixar de interagir, somente vamos passar a interagir de modos diferentes dos que interagimos hoje. Tudo bem, não há nenhum mal nisso.

O que podemos, e aliás devemos, é debater melhor como isso será feito. A partir de que modelos tecnológicos? Com base em quais interesses? A quem irá servir, de fato, os resultados de nossas produções tecnopolíticas?

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Doug Cavendish :)
Researcher & Service Designer @ Livework Brazil

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