O papel da democratização do design na luta por uma sociedade menos desigual.

Fernando Alves
DesignUrbano
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10 min readMar 19, 2024

O design para a sociedade consiste em desenvolver produtos que atendam às necessidades reais específicas de cidadãos menos favorecidos, social, cultural e economicamente; assim como, algumas populações como pessoas de baixa-renda ou com necessidades especiais devido à idade, saúde ou inaptidão (PAZMINO, 2007, p. 3)

Cadeira Master, design de Philippe Starck para a Kartell

Este artigo busca analisar de quais formas a sociedade pode ser impactada a partir de um design que se faz mais democrático e social com relação ao alcance de populações periféricas a bens de consumo e serviço. Partindo do princípio de que o design está presente em todo lugar, que fazemos uso de produtos desenvolvidos projetualmente o tempo todo, a premissa desse texto se dá no entendimento de que determinadas classes sociais e grupos menos favorecidos experienciam o design de uma forma diferenciada, tendo em vista que, muito do que é projetado não apenas não chega até essas populações, como também não é criado pensando em utilidade para essas pessoas

O designer e autor Victor Papanek, um dos primeiros a dissertar sobre um design que se faz social, já nos anos 70 defendia que o design deveria ser responsável, ou seja, direcionado especialmente a pessoas em locais desprovidos de recursos materiais. Para o autor, produtos devem ser projetados para viabilizar autonomia de populações de países pobres (que Papanek chama de países subdesenvolvidos) diante de nações ricas e comumente chamadas de desenvolvidas (Papanek, 1971).

Ao estimular que os designers mergulhassem na realidade de grupos desprivilegiados para que pudessem trazer evoluções para produtos ou desenvolver novas soluções, Papanek (1971) alerta para a presença de um mundo desigual, cujos centros de poder conservam as tecnologias e os ganhos da industrialização, ao passo que a periferia sofre com o retardo industrial, o predomínio de padrões estéticos menos elaborados e o consumo de tecnologias secundárias e ineficazes.

A discussão sugerida por Papanek durante os anos 60 e 70, tinha como mote trazer o olhar do designer para o mundo real, que como pontua Cardoso (2012):

se desintegrava em fome e miséria, conflitos raciais e protestos políticos, guerras civis e lutas de independência, guerras quentes e Guerra Fria, uma corrida armamentista nuclear que ameaçava destruir a todos, e uma crise ambiental que se anunciava pela primeira vez por dados oficiais da ONU. (CARDOSO, 2012, p. 10)

fonte: PAZMINO, 2007

Essas discussões atualizadas por Cardoso no seu livro Design para um mundo complexo (2012) mostram que apesar daquele mundo real (PAPANEK, 1971) não ser mais o mesmo, muita coisa continua igual. A revolução tecnológica causada pela era da informação causou grandes mudanças na sociedade: política e economicamente, a partir dos novos sistemas de trabalho e de fabricação, novas configurações urbanas, acesso a bens e serviços diversos, democratização da informação, etc.; e culturalmente, com significativas mudanças sociais provenientes do intercâmbio de informações e acesso a bens e serviços que foram possíveis a partir de então. Todavia, o mundo real que Papanek descreve em Design para um mundo real (1971), continua padecendo das mesmas mazelas, como aponta Cardoso (2012):

À medida que o mundo virtual aumenta em abrangência, a realidade parece desmanchar-se no ar. Em uma palavra, o “imaterial” passou a ser o fator decisivo em quase todos os domínios, mormente numa área como o design. Não que o “mundo real” tenha deixado de existir! Os problemas apontados por Papanek, de miséria e exploração, violência e degradação, são mais reais do que nunca. Aliás, se examinarmos os dados estatísticos, muitos deles estão piores do que quatro décadas atrás. Apenas foi acrescentada à realidade material uma camada a mais, que tudo envolve e tudo permeia. (CARDOSO, 2012, p. 11)

Bonsiepe (2011) por sua vez, preocupa-se em recolocar o design em uma discussão extensa sobre o desígnio da forma de se pensar através de projetos e suas contribuições para os desafios sociais que o mundo vem enfrentando. O significativo papel do design no desenvolvimento da cultura material, afeta direta e indiretamente a vida das pessoas, inclusive a do designer, levando em consideração que este é, de acordo com Bonsiepe (2011), sujeito e objeto da dinâmica cultural. O autor preocupa-se com que o design seja mais direcionado à identificação e solução de problemas do que ao projeto/produto final ao qual se chega a partir do processo de criação, deixando de ser um instrumento exclusivamente de mercado para ganhar iminente desenvolvimento individual e social.

Assim, faz-se primordial partir da interpretação de design de Bonsiepe (2011) para ir em busca de soluções e projetos para um design que esteja mais próximo e que converse fortemente com o mundo real.

Para Ono (2014), os desafios atuais que os designers vêm vivenciando estão diretamente ligados ao processo de Globalização. Nesse contexto, a autora destaca a importância e a responsabilidade da participação do designer no processo de desenvolvimento de produtos para a sociedade (ONO, 2014), levando em consideração quais são as necessidades de cada localidade, pois estas contam com diferenças culturais ao mesmo tempo em que estão inseridas em um contexto de globalização onde as culturas se encontram, formando uma teia de pluralidade cultural. Considerando a diversidade cultural, não podemos deixar de destacar nesse texto, que cada lugar tem suas necessidades próprias, que variam de acordo com a pluralidade e variabilidade de suas características (ONO, 2004). Ainda assim, para Ono (2014), o processo de globalização é um desafio para os designers (e para o design democrático) pois colabora para que a desigualdade se perpetue, conforme abaixo:

A globalização mantém grandes disparidades entre os ditos países “mais desenvolvidos” e “menos desenvolvidos”, em termos de fluxo comercial e acúmulo de capital, minando ou levando à apropriação do parque industrial destes últimos por grandes corporações multinacionais, em vista da concorrência internacional que adentra em seus mercados. Pode-se afirmar, portanto, que a ideologia do globalismo, que exalta o fundamentalismo de mercado, a liberalização do comércio, o livre fluxo de fatores produtivos e o consumismo, dentre outros aspectos, defende os interesses e as estratégias de dominação dos países industrializados. (ONO, 2014, p. 56).

Papanek acreditava que, com essas desigualdades provenientes do processo de exploração de países mais pobres, os designers deveriam voltar seus projetos para locais onde os produtos projetados poderiam fornecer autossuficiência para essas populações (ALMEIDA, 2018). Com isso, o Design Social entra em cena para que comunidades mais necessitadas possam desenvolver produtos e ter acesso a bens materiais através da democratização do design.

Nesse momento, vale aprofundar-nos também no que diz respeito ao Design Democrático e Design Social na prática, através de exemplos como os designers Karin Rashid e Philippe Starck, nomes importantes do Design Democrático, da IKEA, importante loja de móveis europeia que tem a democratização do design como sua prática principal e analisando projetos de Design Social, como o Upcycling e o Eliodomestico.

Karim Rashid reclina-se sobre uma de suas criações na Cultural Shaping, uma pesquisa de seu design na Galeria de Arte de Ottawa em 2018. (Sandra Abma/CBC News)

Para compreendermos melhor o que seria “Design Democrático”, podemos partir da interpretação de Bonsiepe (2011), que acredita que a democracia em design tem o papel de incluir as massas como um todo, em projetos feitos para todos. É a partir dessa premissa que designers contemporâneos como Karin Rashid e Philippe Starck pontuam seus trabalhos. Apesar de compreendermos que os valores agregados aos produtos destes profissionais estão ainda dentro do patamar do que seria o design formal (CARDOS, 2012), ambos vêm trabalhando com as ideias de diminuição de preços, sustentabilidade e para que as chamadas peças de design (que levam o nome deles como valor agregado) possam chegar a classes sociais mais baixas.

Sendo um dos designers mais famoso dos nossos tempos, Philippe Starck está na dianteira do design democrático, levando consigo a máxima de que o design deve ser acessível para todos através de produtos de qualidade e preços baixos.

“Fui eu que inventei o design democrático e fui eu que ganhei essa luta”
É a grande luta da minha vida. Fui eu que inventei o design democrático e fui eu que ganhei. Sou militante, ganhei. Em 30, 40 anos de trabalho aumentei a qualidade dos produtos, baixei o preço de vários produtos e tornei-os acessíveis a quase todas as pessoas. Esse foi, na realidade, o meu principal trabalho.” (Philippe Starck, Publico, 2018)

Coleção Wood, de Philippe Starck

Outro exemplo, talvez mais incisivo aqui, de iniciativa voltada para a comercialização de móveis a preços acessíveis alinhados à boa qualidade e sustentabilidade, surgiu na Suécia, com a IKEA, nos anos 1940. Era um período em que a arquitetura e design sueco trabalhavam por uma melhor qualidade de viver e de morar. O país passou a desenvolver novas formas de conviver em conjunto dentro de ambientes pequenos e 14 multifuncionais, onde se cozinhava, dormia e trabalhava em um único lugar (BÜRDEK, 2010, apud SILVA, 2014, p. 37).

Hoje, vivendo o auge do sucesso comercial, a IKEA aplica na fabricação de seus produtos um método de design democrático alinhado a realidade das regiões onde a empresa está instalada. De acordo com Silva (2014):

(1) Anualmente são feitas visitas a consumidores para detectar suas necessidades e aspirações; (2) Em seguida uma equipe de designers, técnicos, fabricantes e especialistas, entram em ação, procurando atender tais requisições, seguindo sempre a política da empresa: combinar forma, função, qualidade, sustentabilidade e preço baixo. Esta etapa do processo pode ser feita nos escritórios, mas na maioria das vezes ocorre na própria fábrica, para que os profissionais tenham uma melhor visualização do que pode ser usado e quais são os limites de fabricação; (3) Só então, todos os produtos idealizados são testados durante o desenvolvimento do projeto, fabricados e entregues aos distribuidores. (SILVA, 2014, p. 38)

Material grágico do Democratic Design Day 2015 da IKEA (PJADAD Studio)

Ainda no campo da democratização do design, faz-se necessário observar como foram desenvolvidos projetos de design que visam melhorar o bem estar de determinada população.

O Upcycling, iniciativa que propõe o reaproveitamento de objetos com respeito ao meio ambiente, é uma prática que vem ganhando adeptos e sendo o foco de diversos projetos sociais nas periferias de São Paulo. A prática consiste em criar novos objetos a partir do que seria descartado, podendo ser usado na fabricação de mobiliário, vestuário, objetos de decoração, utensílios domésticos, etc. (ECYCLE, 2020)

Em uma abordagem social e democrática, a iniciativa de criação do Eliodomestico, eco-destilador que transforma água salgada em água potável através de energia solar (DOMTOTAL, 2013), é um claro exemplo de solução de design de produto criada com o intuito de desenvolver soluções para o mundo real (PAPANEK 2012)

Eliodoméstico, de Grabriele Diamanti

A inspiração do designer veio a partir de uma comoção frente à crise mundial de água e pela intenção em criar um equipamento que pudesse auxiliar comunidades em todo o mundo, que sofrem por não terem acesso à água limpa. O Eliodomestico funciona como um coador de cabeça para baixo, que dessaliniza a água salgada. O forno cerâmico é divido em três partes principais. O recipiente preto é o local onde a água salgada é armazenada. Assim, com o calor do sol a água cria vapor, que é empurrado pela pressão através de um tubo de seção. O vapor é condensado contra a tampa do forno, na parte inferior, e em seguida escorre para a bacia de coleta. De acordo com o criador, a estrutura é capaz de produzir até cinco litros de água potável por dia. Outra vantagem é o preço para a fabricação, estimado em US$50, aproximadamente R$100. O forno foi projetado com um design ideal para ser carregado na cabeça, forma comum à África subsaariana. (Ciclovivo, 2013)

Interessante observar que a discussão acerca de um design mais democrático e que cumpra um papel social vem crescendo ao longo dos anos, seja por estudos teóricos que nos mostram diversos pontos, expondo as mazelas da sociedade em relação ao design, quanto por exemplos práticos, que nos conduzem a uma realidade com muito a ser explorada.

Dessa forma, é necessário entender como a ideia do produto dito, de design, pode caminhar para as comunidades periféricas de modo que se transforme num poderoso catalizador para mudanças (MORAES, 2010), onde a periferia se aproprie de produtos que sejam projetados levando em consideração suas necessidades reais a partir de designs criados para as sociedades com soluções inovadores e sustentáveis e não apenas para uma minoria em busca de valor agregado.

É então o nosso papel, como designers de produto, refletir sobre como as transformações no design podem impactar a sociedade.

Referências:

BONSIEPE, Gui. Design, cultura e sociedade. 1ª Ed. São Paulo: Blucher, 2011.

BÜRDEK, B. E. Design: História, Teoria e Prática do Design de Produtos. Tradução de Freddy Van Camp. 2ª. ed. São Paulo: Blucher, 2010

CARDOSO, Rafael . Design para um mundo complexo. 1ª Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012. CAVALCANTE, Marcella Virgínia. Valorizando o território e a identidade cultural através do design. Caruaru: UFPE. 2011.

LANA, S. Design, Sustentabilidade e Psicologia: Panorama Geral. In: MORAES, D.; et al., (orgs.); Cadernos de estudos avançados em design: identidade. Barbacena: EdUEMG, 2010 17

LOPES, Maria Imaculata Vassalo. Pesquisa em Comunicação. Formulação de um modelo metodológico. 8ª Ed. São Paulo, Loyola, 2005.

ONO, Maristela Mitsuko. Design, Cultura e Identidade, no contexto da globalização. Revista Design em Foco, vol. I. 2014.

PAPANEK, Victor. Design for the real world: human ecology and social change. 1ªED. New York: Pantheon Books, 1971

PAZMINO, Ana Verónica. Uma reflexão sobre Design Social, Eco Design e Design Sustentável. In: International Symposium on Sustainable Design / Simpósio Brasileiro de Design Sustentável. 1., Curitiba, 2007. Anais do I Simpósio Brasileiro de Design Sustentável. Curitiba: UFPR, 2007. p. 1–10.

SILVA, Ana Paula da. O móvel democrático. Caruaru: UFPE, 2014.

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