Semana 10 — Aqui a história silencia

Laura M.
desleiturasemsérie
5 min readJan 14, 2017
Ilustração: Brett Helquist

Quando acabei O Fim uma sensação de vazio me ocupou. Eu passei os últimos dois meses e meio vivendo as desventuras dos Baudelaires quase todos os dias. Sempre que tinha um tempinho parava para dar uma adiantada na leitura. Agora parece até absurdo que não tenha mais um livro para ler, mais uma desventura para acompanhar. Inclusive, foi a nossa releitura que me fez sair de uma fase de leitura muito ruim. Estava empacada e tinha perdido completamente meu ritmo — qualquer ritmo, na verdade -, foi esse desafio meio maluco e maravilhoso que me trouxe de volta para o mundo da literatura. Acho que é por causa desse peso positivo que a série teve na minha vida que escrevo sobre os livros com uma certa ternura, a ponto de me sentir até um pouco incapaz de oferecer uma resenha crítica totalmente impessoal — não que essa seja minha intenção.

Essas leituras ditaram o fim do meu 2015 e o início de 2016, funcionando quase como o fechamento de um ciclo. Há alguns anos comecei a ler Grande Sertão: Veredas em um ano e terminei no terceiro dia de um outro ano, no fundo sabia que aquela leitura dizia muito pouco do que havia começado e muito mais do que tinha terminado. O mesmo aconteceu com Desventuras em Série. Fechado o ciclo de desventuras que foi 2016, acho que é agora que meu novo ano começa de fato.

Talvez seja por isso que esse último livro tenha sido meu preferido. Eu nunca tive muito problema com finais de séries (sejam literárias ou televisivas), tenho uma facilidade ridícula em aceitar o que o autor escolhe independente do meu gosto pessoal. Não me incomodei nem com o final de Lost nem com o final da série Divergente — ambos bastante criticados pelos fãs e pelos não-tão-fãs. Tento sempre entender o que o autor quis fazer, mesmo quando isso escapa do que eu mesma imaginava para a série. Sendo assim, não é de se admirar que eu tenha gostado muito de O Fim. E, pensando bem, acho que nesse caso, mesmo os mais críticos e céticos em relação a finais de histórias muito mirabolantes devem apreciar o final que nos foi dado.

Essa última história é um pouco diferente de tudo que vimos até aqui, a começar pelo fato de que dessa vez o maior perigo ou o clímax da perseguição não vem do Conde Olaf, mas de Ishmael, o facilitador da comunidade insular na qual os irmãos, junto com seu maior inimigo, chegam após um naufrágio. Mais do que essa quebra de expectativa, o que mais me agrada nesse livro é como o autor conclui o processo de complexificação dos personagens que vínhamos acompanhando há alguns livros.

A ideia de que alguém é completamente bom ou completamente pérfido é dispensada definitivamente. Embora muitos mistérios ainda permaneçam, a figura de Conde Olaf ganha contornos menos cruéis. Sabemos que ele também é órfão, suspeitamos inclusive que os pais Baudelaires tenham algo a ver com isso e, de repente, descobrimos que ele não é apenas um vilão monstruoso. Assim como grande parte dos voluntários da C.S.C., além das próprias crianças, também não são apenas heróis, mas pessoas que estão dispostas a cometer sua própria porção de perfídias a fim de garantir o que acreditam ser melhor para si mesmos e para o mundo. Quando escolhem não contar toda sua história para Ishmael ao chegarem na ilha os órfãos reconhecem que não são somente crianças que perderam os pais e caíram numa série de desventuras. São também os responsáveis por coisas que podem ser vistas como tão cruéis quanto as perfídias cometidas por Olaf.

Ao fim de todas essas desventuras muitas perguntas ficam sem respostas, continuamos, tal qual os Baudelaires, no escuro. Temos alguns lampejos de esclarecimentos, mas no final nós ainda sabemos muito pouco. Nós e talvez grande parte dos personagens. As mensagens enigmáticas, a comunicação truncada, a falta de informações objetivas, tudo parece característica central da C.S.C. antes e depois da cisão. Aprendemos ainda que existem coisas muito maiores (e mais assustadoras) do que a organização secreta que os Baudelaires, Snickets e o próprio Olaf participavam. Mesmo os adultos, aqueles que teoricamente representam a sabedoria acerca dos mistérios do mundo, estão perdidos. Os momentos em que temos uma massa desgovernada tomando posições sobre determinados assuntos, seja na Cidade Sinistra dos Corvos, seja no Hotel Desenlace, seja n’A ilha , são os que mais revelam o quanto estão todos perdidos, no escuro, diante não só dos grandes mistérios do mundo, mas também das questões mais banais. O vilão torna-se mocinho e o mocinho torna-se vilão com um simples jogo de palavras e uma boa dose de psicologia de massa. E isso principalmente porque a maior parte das pessoas não sabe ao certo o que está fazendo ali, quais são seus aliados e quais são seus inimigos. Acaba sendo tudo muito confuso, da mesma forma que a nossa própria vida às vezes é confusa.

Acho que o autor consegue muito bem criar uma narrativa interessante para adolescentes e jovens sem que isso signifique simplificar a história. Fiquei pensando muito na quantidade de referências a que somos apresentados. Quando li pela primeira vez, lembro de perguntar aos meus pais quem tinha sido Herman Melville. Acho que ao mesmo tempo em que perdi muitas referências, outras tantas me tocaram de alguma forma. Relendo mais velha e com muito mais conhecimento para captar essas referências, achei muito valioso que o autor ofereça isso para os seus leitores mais novos. É possível que uma pessoa se interesse por poesia, outra por invenções e uma terceira talvez até queira saber mais de culinária. O especial aqui é que eventualmente um jovem leitor pode encontrar nos livros muito mais do que a história dos Baudelaires. Da mesma forma o vocabulário do texto também enriquece muito a experiência desse leitor mais jovem. Eu esperava muito pouco dessa releitura, não sabia o que esperar na verdade, fiquei com medo de achar os livros muito infantis. Mas chegado o fim percebi que a série continua entregando exatamente aquilo que me interessou há tantos anos: uma boa história.

E assim chegamos ao fim da nossa maratona e ao começo de outra: a série estreou nesta sexta-feira (13/01) na Netflix! Espero que vocês tenham gostado de nos acompanhar nessas desleituras. Sabemos que o certo seria que nós nos afastássemos o máximo possível de qualquer desventura ou qualquer história envolvendo os órfãos Baudelaires. Talvez devêssemos assistir algum seriado sobre pôneis ou algo assim, mas quem queremos enganar? É evidente que não conseguimos resistir a uma desventura em série.

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