Semana 2 — Pós-modernidade infantil

Marco Rigobelli
desleiturasemsérie
4 min readNov 17, 2016
Casa de Josephine Anwhistle (Fonte: http://snicket.wikia.com/wiki/Josephine_Anwhistle's_house)

Não tive contato com Desventuras em série durante a infância ou adolescência. A série chegou em mim já depois dos vinte anos, uma época em que provavelmente torceria o nariz para literatura infantil porque eu não achava legal o bastante. E eu era um idiota, como parece claro. Por isso não lembro o que me convenceu a começar Desventuras mesmo sem ainda ter visto a primeira adaptação, mas o resultado se tornou bem mais importante do que isso: fui apresentado à literatura pós-moderna por um livro infantil.

A pós-modernidade é, na falta de termo melhor, um ‘movimento’ artístico que surgiu na segunda metade do século vinte como uma espécie de quebra das amarras de estilo criadas pelo modernismo no início do mesmo século. De certa maneira, o pós-moderno procura desconstruir tudo (o que pode parecer familiar para quem usa internet), então ele transgride as regras do próprio modernismo recuperando ideias e estéticas clássicas e exagera os conceitos modernistas, absorvendo a cultura pop que tomava forma após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Uma das características mais fáceis de notar na literatura pós-moderna é a de manter o leitor sempre ciente de que está lendo ficção através de uma série de técnicas narrativas e de linguagem. Situações absurdas, quebras da realidade que são tratadas com naturalidade pelo universo dentro da história e o próprio narrador lembrando que aquilo nas mãos de quem lê é um livro, não a realidade. Lembra alguma coisa, não?

Lemony Snicket é, acima da história lamentável dos Baudelaire, o que há de mais especial nesses livros. E como uma espécie de introdução, os dois primeiros romances que a Laura Mollo resenhou semana passada não têm tanta intromissão do narrador quanto acontece depois. Você percebe que ele é diferente e em alguns momentos o lê falando sobre como faz parte do mesmo universo que os irmãos, e seu dever de contar a história deles ao mundo; mas é a partir de O lago das sanguessugas, o terceiro livro, que ganhamos intimidade com o narrador e personagem. Lemony Snicket parece mais envolvido com as histórias do que nunca, passa longos parágrafos dissertando sobre narrativa, ciência, o futuro dos órfãos e o próprio processo de pesquisa pelo qual ele passou enquanto escrevia aquelas histórias, coisa que nos dois primeiros livros estava reservada às cartas publicadas no final.

Brinca-se que no pós-moderno tudo ganha aspas. A ficção é construída com referências e citações, e conceitos como “realidade”, “verdade” e “humanidade” não podem mais ser vistas como algo sólido ou literal, mas de forma cínica, duvidando e procurando outras definições, numa relação promíscua com a intertextualidade. E Desventuras em série abusa disso quando Snicket decide dar outras definições para palavras, explicando seus significados usando o contexto e não o conhecimento comum. O mesmo acontece quando em Serraria baixo-astral o narrador passa boa parte do primeiro capítulo debruçado sobre a importância das primeiras sentenças em livros, então finalmente apresenta a primeira sentença desse e a repete outras duas vezes. Ainda na intertextualidade, a Doutora Orwell é o tipo de referência que nos acostumamos a ver em obras pós-modernas, mesmo quando elas não têm a intenção de se encaixar no “gênero”.

Personagens planos é outra característica pós-moderna introduzida no terceiro livro. Diferente dos personagens redondos, eles não têm profundidade, parecem pastiches de pessoas e estereótipos. Vivem fixados pelas mesmas ideias, muitas vezes parecem repetir bordões durante toda a história e não cumprem mais do que uma função no enredo. Esses personagens, ainda tão mal vistos, são importantes em histórias como essas porque foram pensados para fazê-las funcionar (e como falei antes, a ideia aqui não é oferecer imersão ao leitor, mas sempre lembrá-lo de que está lendo um livro). Tia Josephine é, claro, o primeiro caso. A personagem nem precisou entrar fisicamente na história para já ter a maior parte de seus traços expostos aos leitores: ela tem medo de qualquer coisa. Sua obsessão por gramática vem depois que Lemony Snicket a introduz e, dessa forma, temos tudo o que é necessário para que a história do terceiro livro se desenrole. E isso não faz dela uma personagem menos importante ou marcante, muito pelo contrário. Ela é exagerada porque o leitor precisa se incomodar, criar antipatia e sentir ainda mais pena dos miseráveis órfãos Baudelaire.

Phil no quarto livro tem um papel semelhante, é tão plano quanto Josephine, mas completamente secundário. Ele é um otimista irremediável que não tem outra função além de ser irritante e desviar o foco na situação deplorável dos irmãos. Mas sem seu otimismo irreal, Phil não seria capaz de oferecer aos Baudelaire uma das únicas figuras amigáveis em todo aquele ambiente opressor.

Fui pego desprevenido quando comecei a ler Desventuras em série anos atrás, porque não esperamos aprender tanto a respeito de literatura com livros infantis quando já passava dos vinte. Mas o que aconteceu foi receber treze aulas, cada uma com treze capítulos, que traziam como figuras uma série de histórias deprimentes sobre três órfãos que tinham todo o azar do mundo e um nêmesis incansável.

Pelo nosso cronograma, ontem (16) iniciamos a leitura dos livros cinco, Inferno no Colégio Interno, e seis, O Elevador Ersatz. Semana que vem teremos texto do Sofia Soter sobre a leitura desses livros. Em tempos tão difíceis, em que as desventuras dessas crianças parecem brincadeira perto da nossa realidade, vamos nos unir nessas leituras para tentar segurar as barras de se viver nesse mundão.

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