Mundos diferentes
Vivemos entre alienígenas. Nos perguntamos sobre a existência de vida fora do nosso planeta, mas a verdade é que já convivemos com criaturas humanóides de outras espécies aqui mesmo. Eu lembro bem de ter percebido que a diferença entre certos tipos de pessoas logo cedo; talvez não percebido, porque na verdade me mostraram mesmo. Eu não fui um adolescente lá dos mais populares — na verdade eu era um grande (talvez o maior!) alvo de bullying na minha escola e passei por muitas situações infelizes. Mas eu convivia diariamente com pessoas muito populares e bem ajustadas socialmente. A diferença entre eu e tais espécimes era tamanha que poderíamos tranquilamente ser naturais de planetas diferentes. Gente que estava tendo suas primeiras experiências sexuais quando nós estávamos na oitava série ou no primeiro ano do Ensino Médio. Ora, eu brincava de Dragon Ball Z na rua quando estava no primeiro ano. (Eu sempre era o Kuririn. Muita auto-estima desde sempre, claramente.)
Então, vejam vocês, eu não era da mesma espécie que aquele pessoal que estava se esgueirando pelos arredores da cidade pra… se danar. Eles eram alienígenas pra mim e a recíproca provavelmente é verdadeira. Hoje eu converso com colegas daquela época e eles mencionam histórias cabeludíssimas que eu nem imaginava — e depois outros vêm esclarecer que aquela versão que eu ouvi ainda era a de classificação 14 anos. Nada daquilo sequer registra na minha cabeça. Não que eu não tenha passado por experiências interessantes que também se encaixam na mesma categoria, mas pra mim esse tipo de coisa só veio acontecer muito, muito mais tarde. Vim beijar na boca pela primeira vez com dezenove (nas férias do sétimo semestre da faculdade! Foi esquisitíssimo.) e transar com vinte e dois (no segundo ano do mestrado! Foi esquisitíssimo). Simplesmente éramos (somos?) tipos diferentes de pessoas, como se vivêssemos em um sistema de castas. E é bem isso mesmo, são castas; a casta das pessoas bonitas, a casta das pessoas cuja aparência é OK, e a casta das pessoas feias.
Muito para o protesto dos meus amigos e amigas que eu considero bonitos, as situações que me fazem pensar dessa forma são as mais diversas. (Para o protesto da minha mãe também, que insiste que eu sou bonito. Eu acredito na sinceridade dela, mas também sei que é porque ela é obrigada contratualmente a ter essa opinião.) Modéstia à parte, eu fui uma criança muito bonita. Eu vejo minhas fotos de infância e as águas saem dos olhos. (Aí eu me olho no espelho hoje e mais águas saem dos olhos.) Mas fui vítima daquela máxima: ‘criança bonita, adulto feio’. Em algum momento da puberdade (a literatura sugere que logo ali no início) eu fiquei feio. Firmei meus pés com afinco no território da casta dos feios. Ou firmaram meus pés lá, talvez. Eu certamente não faria isso de propósito. Não sei se houve uma transição suave ou se foi algo repentino, mas em um determinado ponto chegou a ser perfeitamente normal alguém me chamar de ‘Sairo, feio!’ e ninguém estranhar aquilo. Tá tudo bem, não se sintam mal, cada um tem seu fardo.
Isso assegurou que eu não tivesse lá um adolescência à la American Pie, mas não me privou de ter uma experiência interessante também: a de observador alienígena. Afinal, quando você não é lindo, você precisa pelo menos ser legal, e eu consegui convencer (enganar) algumas pessoas com vidas interessantes a tornar-se minhas amigas. Então eu comecei a viver por meio das experiências delas. (Como ainda faço até hoje com metade das pessoas que eu sigo no Instagram.) Ah, as coisas que eu (não) vi… Muitas viagens, closes, romances, ficadas, namorados, discotecagens, fotos com celebridades, sexo casual com gente linda, drogas com aspirantes a hippie em acampamentos estudantis e uma quantidade adequada de rock ‘n roll. Ficava sabendo de tudo pelo MSN e me sentia como se estivesse vivendo tudo ali, com eles. Não tava lá, mas me empolgava como se estivesse e vivia pra ouvir (ler, né… Não existia TIM ilimitado na época.) aqueles relatos. Completamente sóbrio e só de cuequinha e camisa regata, minha pele oleosa refletindo na tela do computador amarelado, rindo baixinho e digitando devagar porque senão o barulho do teclado podia acordar a minha mãe. (Afinal, eles chegavam das baladas e aventuras tarde da madrugada e eu queria saber o quanto antes.) Aquilo era tudo inimaginável pra mim, coisa de filme.
Com o passar do tempo, porém, as coisas vão se amortizando. As diferenças diminuem e outras características vão se tornando mais importantes, até porque existem outras qualidades além da beleza. A gente escolhe uma carreira, estuda, consegue um sucesso razoável... A gente encontra um esporte, leva uma vida mais saudável e evita a barriga de chope, a calvície e o casamento forçado porque engravidou alguém por acidente. Ninguém faz assim um 180º, mas as divisões entre as categorias ficam menos claras. De repente a gente tá competindo com um bonitão de outrora ou comemorando que algum galã de outros tempos agora tá mais gordo que a gente. Afinal, não é isso mesmo que importa? Não, claro que não, mas não posso negar que fico um pouquinho feliz e vingado, sim. Devolvo a gentileza da inveja passada bem de leve. Mas é certo que milagre também não existe e as diferenças nas experiências continuam aparecendo e nunca vão deixar de me causar altos deja vus…