Yoga e palavras

Allana Dilene
3 min readFeb 21, 2019

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Era pra ter sido uma conversa curta. Hora e meia, no mais tardar duas horas. Todas elas tinham compromissos diversos no dia seguinte, uns mais importantes que outros. A maioria deles não vale a pena listar aqui, pois são tão mundanos que todo mundo se vê na obrigação de fazer, como bater ponto na firma, esperar horas na fila de um médico pra uma consulta de 15 minutos, essas coisas. Outros, porém, eram certamente mais importantes, como ir à feira, jantar entre amigos, escrever um pouco e partilhar da companhia de seus filhos.

A conversa, por sua vez, começou como qualquer conversa. Meio tímida, como quem chega a uma festa na casa dos outros, levando um vinho sem rolha na tentativa de soar descolada e interessante. E como todas as boas conversas, depois de algum tempo foi se assentando, ficando mais à vontade, chegando ao ponto de as mulheres pedirem que ela mantivesse seus modos, porque colocar os pés em cima da mesa era algo que só se fazia na própria casa, francamente.

E quando a conversa estava muito bem acomodada com seu vinho em copo de plástico, um barulho se fez soar ao longe. Todas elas reconheceram, mas inicialmente resolveram ignorar. Talvez se não desse atenção, como choro de manha de criança, ele fosse embora. O veículo que produzia determinado som poderia não vir naquela direção, vai que. O ruído, porém, começou seu crescendo, enquanto o veículo, como um assassino slasher, passou por suas vítimas naquela velocidade de caramujo determinado.

Elas suspenderam as falas, ainda pacientes. Dona-da-casa devolveu a vez à primeira convidada, que pediu desculpas sem necessidade, e seguiu com seu raciocínio. Então os sons de outro veículo de duas rodas se fez ecoar na vizinhança, outra parte da conversa, distraída como ela era, se perdeu. Era difícil manter a atenção com tantos barulhos ininterruptos ao redor, afinal.

Um latido acompanhou um terceiro veículo, e todas conseguiram identificar aquele como sendo o momento em que as coisas saíram do controle. Como os uivos de uma alcateia, os sons foram chamando uns aos outros: três motocicletas viraram cinco, dez! Duas delas vinham acompanhadas de buzinas, como se buscassem se diferenciar das outras, digladiando-se pela posição de alfa. A motocicleta que calasse mais vozes seria a líder do bando que só crescia. A conversa, folgada que tinha ficado, já passava das três horas, já tinha comido todos os docinhos e as castanhas da semana inteira, já tinha saído para se juntar à algazarra de motocicletas, cães e até um papagaio de alguma vizinha que julgou aquele bloco de carnaval interessante por demais para se perder.

Aquilo era demais para Dona-da-casa. Ergueu sua trincheira de livros antigos de enciclopédia, que com o advento do computador perderam seu uso mas que eram muito bonitos quando enfileirados na estante, instruiu as outras a levantarem cabanas com retalhos de patchwork, embainhou seu tapete de yoga e saiu, exibindo seu estandarte e arremessando livros menores, porém certeiros.

As motocicletas rosnaram em resposta, mas não tardou para que saíssem ganindo em pânico e terror. A visão do ser endiabrado, com uma aura de cabelos louros emaranhados, brandindo uma peça de TNT roxo e trajando calças que traziam a visão do Universo era por demais aterradora. Entre os círculos de veículos automotor, muitos anos depois, correria a lenda de Dona-de-Casa que enfrentou um exército, armada de yoga e palavras.

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Allana Dilene

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.