A epiderme é a passarela dos líquidos

Revista Desvario
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5 min readJul 15, 2024

um conto de Giovana Rossi

Colagem analógica colorida. Uma mulher de cabelos cacheados tem o rosto recortado e, em seu lugar, há um céu azul com nuvens. Ela usa um blazer azul escuro e se apoia, em proporção maior, sobre a silhueta de uma cidade grande, com diversos prédios sobre fundo amarelo.
(colagem analógica — Lucilene Santos)

Era trinta de novembro. O sol já escaldava as calçadas às dez da manhã, dando um sentimento de amortecimento nos pés que calçam qualquer coisa, naquele dia chinelos de borracha, que carregam uma fama desproporcional em todo o mundo frente à qualidade do produto. Ela voltava com sacolas do supermercado. Havia saído uma ou duas horas atrás para comprar verduras e frutas e colocá-las na geladeira, como se isso fosse lhe refrescar por dentro vez ou outra ao longo do dia. Saiu apressada de manhã já prevendo que o sol quando atinge o centro do céu se torna insuportável, impertinente para todo mundo que necessita sentar a bunda em uma cadeira e ignorar por completo que se vive em uma ilha e se poderia estar pulando ondas e olhando a areia embaixo dos pés, e isso só custava sair correndo para qualquer um dos quatro cantos para poder chegar até lá. Tinha muita sorte em ter uma sacada, pensava enquanto subia as escadas com o corpo todo eriçado e seco da pequena caminhada até a feira. “O trabalho remoto é meu maior privilégio”, falou ao abrir a porta, corrigindo imediatamente o erro histórico e social ao olhar para a própria mão segurando a chave e vendo-a vermelha, pois muito branca para encarar qualquer sol. Largou as coisas na bancada de pedra fria. Só podia ouvir os barulhos distantes da rua, os pássaros que parecem não se abalar por nada e estão sempre pipipi uns com os outros. As chaves também faziam barulho balançando na porta de um lado para o outro. Demoraram alguns minutos até acalmarem as batidas junto ao chaveiro ridículo em formato de botijão de gás que ganhou da última vez que teve que pegar o telefone, como faziam antes do uso desenfreado dos aplicativos online de conversa, e ligou para a tele-entrega: “Oi, bom dia, queria pedir um gás? isso! Ah, tem promoção? sim, vou querer, obrigada”. Assim ganhou o chaveiro. Sempre quis ter um, agora ela tinha. Colocou as coisas na geladeira, guardou as sacolas dentro de outra sacola, pegou uma garrafa de água e bebeu no bico. Derrubou sobre o peito alguns pingos d’água, sentiu um arrepio delicioso dos pingos gelados escorrendo por entre os seios. Sorriu maliciosa com o pecado do desejo. Depois desmentiu o próprio pensamento porque isso de pecado não tem nada. Trocou a blusa por um biquíni, ficou com a saia leve que estava. Sentou na varanda com a garrafa já pela metade, tirou as calcinhas porque no meio das pernas também faz calor, levantou os pés na cadeira e ficou ali sabe-se lá quantas horas até sentir fome. Só sentindo o vento nas bochechas, nas axilas, nos pés descalços, no umbigo suado, na vagina desnuda. Ficou ali naquele barulho absurdo que é o silêncio da cidade. O céu não tinha uma mísera nuvem, e mesmo assim lá estava o halo solar denunciando a umidade. Ela não se sentia assim, ninguém sentia úmido aquele clima seco do dia trinta de novembro. Significa que o tempo passou depressa, o sol esfriou e aqueceu em onze meses, muita coisa permanece no papel. Significa que vão começar a falar para “escrever as novas resoluções”, pensar a mudança, programar a nova rotina. Significa olhar para o céu e ver fogos de artifício barulhentos que deram vida a toda pólvora que existe no mundo, mas mesmo assim pensar: “que lindo, que lindo”. Ela ficou ali na sacada até secar todos os pingos. Tinha um desejo insaciado que o calor parecia denunciar. “Olhem todos, Olhem todos, trinta de dezembro e a mulher sentada na varanda com os pés para cima, Olhem; Olhem todos, o desejo insaciado na pele” diziam as folhas no topo das árvores brilhantes de sol e trêmulas de vento raso. Pensava em abortar o Ano Novo e esta vez não chorar às 00:00 do dia trinta e um de dezembro. Fatalmente sempre chorava, escorriam grossas as lágrimas como fazia quando criança. As pessoas próximas nem vinham mais consolar a morte do ano, porque já era o 26° ano que chorava copiosamente naquele instante. Pensava sobre isso e o desejo insaciado que não se ganha de homem-criança nem se castra com alimentos refinados. Pensava que queria abrir a boca e deixar a baba escorrer pelo canto dos lábios e depois anunciar que se sentiu como um animal selvagem e que a contagem tal qual fazemos dos anos, molesta principalmente as mulheres. Agora de fato não sei se pensava sobre isso, ou só sentava ali naquela cadeira com os pés pra cima, sem calcinha com o umbigo suado num céu sem nuvens depois de ir a feira. De súbito encolheu o joelho esquerdo e abriu um pouco mais as pernas, deixando tudo muito amostra num conforto completo. Balançou o pescoço estirando os traumas dos músculos. Passou os dedos lentos nos joelhos e sentiu os pêlos crescendo, estes sim, incansáveis, dada as incontáveis vezes que são arrancados. Recolheu um pouco o nariz, diminuiu os olhos, reprimiu a boca. Expressão de desgosto, ou de desprezo sarcástico. Pensava que se tivesse uma banheira, uma piscina, uma casa na beira do mar, iria estirar-se ora sim, ora não na água e deixar tudo escorrer pela epiderme clara. Apesar de ser completamente contra as praias privativas, se jogaria na água. A mulher, depois de algum tempo, tinha que trabalhar. Inclusive, trabalhar pelas horas que foi a feira e sentou na varanda. Trabalharia no barulho silencioso da cidade, na varanda, sem calcinha, com as coisas escorrendo sobre a sua pele sem possibilidade de interrompê-las. Talvez no banho tornassem a escorrer menos, deixando apenas a água rolar até o ralo, deixando resquícios de hidratação a todo custo pelos vãos, laterais, curvas, sinais em relevo que toda montanha que é a epiderme têm. Deitaria na cama com o ventilador vrumvrumvrum rodando nos pés, o lençol pesado demais frente ao calor, suando as costas no colchão e pensaria que tem um desejo insaciado e que é trinta de , quase meia-noite. Na quarta-feira já é dezembro e não há jeito de se projetar anseios que supram os desejos insaciados da pele das mulheres nesse verão. Assim, foi rolando pela cama de casal, até as pálpebras derreterem pelos olhos, e a Mulher dormir em mil líquidos que escorrem distintos frente a densidade nos sonhos dos desejos que sabe muito bem saciáveis.

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Esse conto faz parte do livro E as plantas fosforescentes no fundo do mar, que você pode adquirir aqui

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GIOVANA ROSSI é historiadora e escritora. Nasceu em Vacaria — RS em 1995, viveu em Florianópolis- SC por boa parte de sua juventude, e agora reside em Berlim. Em suas literaturas do cotidiano, observa os movimentos das coisas para os estados da mente, desde o detalhe da experiência até o universo dos sentimentos e dos sentidos. Caminha pelo mundo em busca de estar cara a cara com realismo mágico que todas nós experienciamos cotidianamente em pensamento.

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LUCILENE SANTOS é amante das colagens analógicas e as utiliza para tornar seu mundo mais colorido e poético.

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