esse texto dá conta de uma série de eventos ocorridos durante e após o mandato do ex-ex-prefeito marquinho

Revista Desvario
revistadesvario
Published in
5 min readMay 16, 2022

um conto? de Paula Gomes

(Ruína — ilustração de Priscilla Lima)

o bar funcionava dentro da antiga estação ferroviária. marquinho, o ex-ex-prefeito, reformou ela todinha, loteou o saguão em “zonas de exploração comercial” e abriu licitação para converter as zonas em bares. para marquinho, transformar aquele antigo pardieiro em um polo gastronômico era seu ticket para posteridade. “prefeito marquinho ficará para sempre marcado na história da cidade depois da conclusão dessa obra faraônica”, dizia para seus correligionários, que, encurralados pelas leis da diplomacia, sorriam.

para os empreendedores, um bar ao lado do outro era incorrer em competição desnecessária. ainda assim, cinco se mostraram interessados. a empolgação foi minguando e pelo fim da obra os cinco eram três: uma barraquinha de hot dog, uma de pastel e uma de batatas fritas cujo nome seria “só batatas”.

a obra se mostrou pouco ou nada alvissareira desde o princípio: enterraram uma urna com os projetos do engenheiro e jornal do dia embaixo da pedra fundamental — uma pedra qualquer — no gramado da frente. depois, descobriram que os cálculos do engenheiro estavam errados e foi preciso passar uma fundação bem onde estava a urna, arruinando a posteridade.

hoje, precisamente hoje, uma quarta-feira, só tem um estabelecimento funcionando. poderia pedir para vocês chutarem qual, mas perderíamos muito tempo nessa brincadeira. é o de hot dog. umas duas ou três mesinhas vazias na calçada e sete motos paradas. seus respectivos sete motociclistas esperando chamarem não seus nomes, mas os nomes dos clientes.

estavam lá, por ordem de chegada: wagner, rômulo, lincon, fernando, deílson, jonathan e vilmar. os apelidos: wagnão, russo, goela. nem todos tinham apelido.

sai um homem da cozinha e grita um endereço (para meu total desamparo. na condição de instância narrativa, minha expectativa era a de ouvir o nome de uma pessoa que pudesse ser reproduzido aqui em toda sua inteireza. juarez, maristela, plínio, desine e por aí vai).

— rua alexandria, 23.

fernando lança o corpo à frente dos demais com seu celular em riste. rua alexandria, 23 é dele. pega o saco plástico sem emoção e volta para a moto, estacionada ao lado da de wagner. enquanto espera sua vanessa (ou rua cônego barata, 1708) recostado na lateral da moto, wagner fala algo cuja entonação me escapa. pode muito bem ser uma pergunta ou uma afirmação:

— é o mesmo maluco de sempre.

— o mesmo.

wagner passa os próximos segundos absorto assistindo fernando acoplar o celular na moto, já com o mapinha guiando para a casa do maluco de sempre.

— até hoje não sei como esse seu celular não cai.

— vou te explicar o esquema aqui. tá vendo esse breguenaite? é ele que dá sustentação para a garrinha que prende o celular.

— você desfigurou toda a engenharia da moto.

— que nada, eu melhorei. quando caiu, foi aqui em cima, não no apoio.

— você falou que nunca caiu.

— é porque o zíper quebrou. agora está envelopado.

— ah tá. e desce o visor do capacete.

— por quê?

— porque é lei.

— vai se fuder.

o dois banheiros da antiga estação ferroviária, atual polo gastronômico, foram azulejados do pé à cabeça. não demorou muito para que quase todos os quadradinhos de porcelana abrigassem alguma assinatura, garrancho ininteligível ou recado telegráfico. os usuários esporádicos do banheiro nem imaginavam que existia ali um método, uma etiqueta, um código não escrito. se fosse preciso colocar no papel, sairia mais ou menos assim: pode rabiscar, só evita o rejunte. nenhuma perninha de N, M, R ou Z (de feliz) podia escapar das fronteiras de um quadradinho e ir parar no cinza esverdeado do rejunte. a ideia por trás da regra era simples: se um dia houvesse vontade e disposição para limpar tudo aquilo com um produto forte o suficiente (cuja existência era só um palpite, mas é ponto pacífico que todos nós temos plena fé na indústria química), tudo sairia, exceto o que estivesse no rejunte. na única e pequena pia do banheirão masculino, ficava uma garrafa de pinho sol em pleno desvio de sua função. era agora o receptáculo de um sabonete líquido verde vivo. um terço do seu conteúdo era o tal líquido verde, outro terço, uma camada de espuma esburacada e o terço final estava vazio. a tampa tinha um furo, feito com um prego aquecido com isqueiro, e idealmente era de lá que sairia o sabonete verde com destino às mãos das pessoas. uma das primeiras coisas que fernando disse para wagner quando se conheceram foi para não usar nunca o líquido quando fosse lavar as mãos, porque já tinha ouvido historias…

— que histórias?

— de maluco que ejaculou no pote pra depois a gente ficar com a porra dele na mão.

— bobagem. a polaridade do sêmen e do sabonete devem ser diferentes. ia ficar bifásico o negócio.

— e aquela espuma toda lá?

— o que tem a ver a espuma?

— acho que não era pra ter aquela espuma lá.

— quando você toma banho, o sabonete não faz espuma?

fernando, com as reservas de quem já viu muita maldade no mundo, disse que não ia arriscar. wagner respondeu que era mais perigoso ficar sem lavar a mão do que eventualmente entrar em contato com o sêmen de alguém que, é bom lembrar, sairia na água de qualquer jeito. fernando perguntou se ele pretendia usar o sabonete. wagner respondeu que, se precisasse, usaria sim. fernando, sem fazer contato ocular, disse que ele era maluco e emendou “já pensou se eles tivessem voltado com os trens na reforma que fizeram aqui?” e wagner: “ainda bem que não voltaram. aqui é pertinho de casa. acabando a última entrega, em três minutos eu tô em casa”.

Conheça o trabalho de Paula aqui, aqui e aqui. Assine Refrescos aqui.

Conheça o trabalho de Priscilla aqui

--

--

revistadesvario
revistadesvario

Published in revistadesvario

Publicação digital sem fins lucrativos voltada à difusão da literatura e da arte contemporânea criadas por mulheres

Revista Desvario
Revista Desvario

Written by Revista Desvario

Perfil editorial da Revista Desvario

Responses (1)