Madame das tesouras

Revista Desvario
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6 min readJul 29, 2024

um conto de Marcela Fassy

(colagem de Grazi Oliver)

Querida, gosto muito de você e sou-lhe grata por ainda não ter me dado motivos para querer te matar. Para expressar minha gratidão, darei a você os motivos necessários para me odiar, o quanto antes. Espero que compreenda esse meu gesto — por ora apenas pressentido, tal qual a pluma que adivinha o sopro e prepara o voo com o ar ainda estático — como prova da grande estima que lhe tenho. Só às criaturas passíveis de merecer o meu amor é que ofereço, como um brinde de festa paroquial, o privilégio de me odiarem.

O meu amor, você bem faz por merecê-lo: com o açúcar da sua voz, com seu sorriso recortado em vermelho, com seu corpo que a música torna leve e etéreo, com sua inclinação para as palavras certas nas horas apropriadas (coisas que você distribui aos seres como se tudo fosse digno da sua atenção, o que desperta em mim ternura e também algum ressentimento — fui treinada a demonstrar meu amor pelo mundo por meio do desdém).

E tem também essa sua habilidade assombrosa de recortar bichinhos e bonecas em folhas de papel colorido e fazer sorrir as crianças: seus dedos ágeis e claros picotam o papel numa velocidade alucinante, como se a tesoura fosse uma extensão deles ou como se você tivesse nascido com uma tesoura entre os dedos, rasgando com ela o útero da sua pobre mãe (a tesoura à mão teria ainda facilitado o corte do cordão umbilical, embora sua mãe, sendo costureira, tivesse provavelmente uma profusão de tesouras à mão). Mas resumindo, seus dedos ágeis e claros picotam o papel como se nada fosse, e de repente surgem aquelas bonequinhas de mãos dadas, casas, bichos, passarinhos, tudo muito solar, cândido e adorável, tudo muito mágico, real e singelo, como se aquelas formas que você cria com a tesoura fossem coisas que tivessem sempre existido e não coisas que tivessem sido criadas por você, como se, com a sua tesoura, você tivesse o poder de, num instante, retirar do papel um universo luminoso que se ocultava naquela superfície.

Mas não nos esqueçamos — e eu me sinto compelida a lhe fazer essa advertência, para que mais tarde você não se sinta tentada a deixar de lado este pormenor — , uma tesoura é um objeto de corte, e recortar bonecas no papel produz vazios, produz retalhos, sulcos e fissuras. Um objeto de corte é um instrumento que está próximo da ferida, da carne e da cicatriz. Com a sua arte de bonecas de papel, você procura subverter a tesoura, fazendo com que ela produza esses artefatos suaves e puros, mas é muito importante que não nos enganemos a respeito da natureza das tesouras (a sua mãe, sendo costureira, tinha uma profusão de tesouras à mão e conhecia muito bem a natureza delas; com a tesoura, ela cortava tecidos para as calças do seu pai e também para os vestidos das amantes dele, você me contou; cortava tecidos com tesoura e com ódio, os dedos gelados de ódio corriam sobre a tesoura, ansiando por tecidos outros, que não os de fibra vegetal).

Você procura subverter a natureza da tesoura com a sua arte de bonecas de papel — talvez, suspeito, para honrar e subverter a arte de sua mãe — mas, quando olho você cortando com seus dedos desenvoltos e ar blasé as bonecas no papel, sinto um arrepio, porque penso que, por trás da mulher que corta bonecas de papel, existe a mulher que não é estranha à perversidade, a mulher áspera, a que é capaz de perfurar superfícies com o aço frio da tesoura. O açúcar da sua voz e o seu sorriso recortado em vermelho que você distribui ao mundo me parecem, então, artifícios para ocultar a cruel madame das tesouras, como o papel pode ocultar bonecas e casas e bichinhos e potencialmente pode ocultar também coisas menos inocentes.

A sua tesoura me dá medo, porque, repito, recortar bonecas no papel produz vazios, produz retalhos, sulcos e fissuras. Enquanto você recorta o papel com seus dedos ágeis, e o papel e as figuras radiantes das quais você o liberta são tudo o que parece existir para você, os retalhos e os vazios e as contraformas das figuras que você tão habilmente produz passam também a existir, com a mesma concretude das suas bonecas e bichinhos e casinhas de papel. Os retalhos e os vazios existem na concretude das coisas desprezadas, das coisas que pairam no ar por um instante e depois se espalham pelo chão, para serem pisadas, repudiadas, descartadas. E eu me pergunto: quem, além de mim, se interessará pelos seus vazios? Pelas suas contraformas, pelos seus retalhos, pelos seus avessos? Quem ficará para varrer os rastros que você tiver deixado?

Para dizer de outro modo: recortar é produzir faltas. Você jamais se perguntou que falta fazem ao papel as figuras que você recorta dele. Você apenas retira do papel o que lhe interessa e permite que os vazios se acumulem pelo chão, abandonados, rejeitados. Pois eu lhe digo que há algo de abominável e de terrível na sua displicência, oh, minha doce madame das tesouras.

Você dorme ao meu lado, sua respiração é suave. Nossos lençóis estão quentes e sujos de alguma umidade. A sua tesoura repousa sobre a cômoda, parecendo conter algo do seu hálito na madrugada — essa simbiose que se produz entre seres muito íntimos. As bonecas sobre a cômoda estão adormecidas, estreitadas e unidas por suas mãos de papel, por sua inocência de bonecas de papel. Tudo é cálido, suave e quieto, tudo dorme. Você dorme. Você é uma boneca de papel.

Então eu pego a tesoura — ela parece protestar do fundo de seu sonho — e corto, num movimento ágil e preciso, o pequeno pedaço de papel que une uma boneca à outra. Repito o gesto metodicamente, até que todas as bonecas estejam desatadas. Você dorme profundamente e não suspeita de nada. Seus cabelos se esparramam sobre o travesseiro; são tão lindos os seus cabelos, formam cachos que embaraçam com os meus quando você se deita sobre mim, cachos dos quais você não gostava quando era criança… Aquele dia, você pegou a tesoura de costura da sua mãe e cortou todos os seus cachos, ela ficou furiosa, você se lembra? Então, com movimentos precisos, corto os seus cachos um a um. Ouço o gemido que emana da sua tesoura e deixo que os cachos se acumulem sobre o chão, sobre as bonecas de papel desatado. Recorto em seguida a sua orelha esquerda, depois a direita, depois o nariz. Recorto por fim o vermelho do seu sorriso. Você dorme profundamente e não sabe que é uma boneca de papel, não sabe que sobre o carpete se acumulam bonecas e cachos e orelhas e nariz e o seu vermelho sorriso de papel.

Ao vê-la assim tão despedaçada, sinto aumentarem a minha ternura e o meu amor. Eles crescem, se espalham pelo quarto, criam continuidades entre os objetos. Tudo está de mãos dadas, tudo está novamente inteiro, irmanado. Bonecas recortadas em papel, de mãos dadas, giram e cantam em ciranda ao redor do quarto. Eu também sou uma boneca de papel, eu também danço de mãos dadas. Dançamos, giramos, eu, você, as bonecas, o quarto. Tudo gira, tudo é ciranda, tudo é bom e feliz, tudo está unido, tudo é uma coisa só.

Agora diga-me, minha adorada dama das tesouras: você já é capaz de me odiar?

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Esse conto integra o livro As Putas Escrevem (Editora Urutau, 2024), que pode ser adquirido aqui ou diretamente com a autora aqui

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MARCELA FASSY nasceu em Belo Horizonte, em 1984. É escritora, historiadora e arte-educadora. Seu livro de contos As Putas Escrevem (Urutau, 2024) recebeu menção honrosa no Concurso Nacional de Literatura da UBE/PB. Também é autora de Oniros (Urutau, 2022) e Animais Cinzentos (Viseu, 2021). Foi finalista do 4º Prêmio Internacional Pena de Ouro, na categoria conto. Tem textos publicados em revistas e antologias diversas.

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GRAZI OLIVER tornou-sei colagista de maneira autodidata há mais de 3 anos. Suas artes são elaboradas de forma intuitiva e grande parte das composições são exploratórias com materiais reciclados e folhagem seca. Sua colagem fez parte de um livro Cartoneiro (artesanalmente de papelão) com o tema de um coletivo chamado Quilindo Sertão. Além disso, faz parte de outros coletivos que exploram técnicas de colagem.

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