Olha o que você me fez fazer

Revista Desvario
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5 min readJul 22, 2024

uma poesia de Lili Baillargé

Foto colorida, ext, dia. Uma tábua velha azul e uma vermelha estão apoiadas sobre um tronco de árvore sobre areia. Nas tábuas, há pequenas lascas de madeiras horizontais e paralelas. Na parte superior da tábua azul, há uma pequena miniatura de boneca de plástico.
(Arte de Galvanda Galvão)

não gosto muito de praia
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ vivo em uma
⠀⠀⠀⠀quer dizer
não na areia
⠀⠀⠀⠀dá pra ver o mar
que parece tão tão lá no alto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀da janela do meu quarto

⠀⠀⠀⠀mas a gente
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ eu/ você/ mamãe/ as tias
⠀⠀minha mãe fala que são amigas
mas eu sei que não
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀desceu hoje pra praia

dorival não vai para o mar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀temos que aproveitar
⠀ela disse
⠀⠀⠀ disse mar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ lá no meio para pescar
⠀⠀⠀ no barco a vela

aqui você estava no mar também
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀só que com a água nos joelhos
em mim tava na cintura
⠀⠀⠀⠀tentava ver peixinhos

não gosto de praia
⠀⠀⠀⠀⠀não gosto de sol
mas gosto de peixe
⠀⠀⠀⠀⠀e hoje o céu está escuro
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀esse cinza chumbo
⠀⠀⠀⠀⠀também gosto de ver
as outras meninas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀de biquíni
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀queria usar biquíni

minha mãe me dizia
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀cuidado com o mar
lá debaixo do guarda-sol sem sentido
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀as nuvens já o tinham guardado
e agora escrevendo isso
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀eu me pergunto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ se de tanto estar em algo
⠀⠀⠀⠀⠀ a gente vira ele
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀pelo menos em parte
você também era mar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e eu também era dor
⠀porque as mães
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀dizem
sabem das coisas
⠀⠀⠀⠀⠀e eu queria ter cuidado
⠀ com o mar

⠀⠀⠀⠀era difícil ver os peixinhos
nas águas turbulentas
⠀⠀⠀e você me disse
⠀⠀⠀⠀⠀que tinha um lugar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ secreto/ sereno / fácil
de ver peixinhos

para onde vão
⠀⠀minha mãe gritou
eu tinha topado
⠀⠀⠀⠀eu amo mesmo peixinhos
ainda amo
⠀⠀então você gritou de volta
⠀⠀⠀⠀mostrar uns peixes para ele
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e apontou para a caverna
ele/ ele / ele / ele

dentro da caverna
⠀⠀⠀⠀tinha algumas poças
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a maré estava baixa
parte do mar furioso
⠀⠀⠀⠀ficava aprisionado de fato
naquela calmaria
⠀⠀⠀⠀⠀mini-mares
pouco tamanho
⠀⠀⠀⠀pouca raiva

me chamou a atenção
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀em um deles
⠀⠀um peixe ficou só
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀os outros estavam cheios
um festival de cores
⠀⠀⠀mas simpatizei com ele
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ que nem era colorido

acho que talvez
⠀porque também
⠀⠀fosse muito sozinha
e desbotada
⠀⠀⠀gostava do ébano da minha mãe
e das cores vivas de suas roupas
de ver nela
⠀mas não combinava comigo

era ébano também
⠀⠀⠀⠀⠀⠀a pedra da caverna
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀eu me deitei perto da poça
para ficar olhando o peixinho
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e você disse
eu prometi
⠀⠀⠀e se sentou por perto
eu olhava o peixe
⠀⠀⠀⠀⠀e você me olhava

⠀⠀⠀⠀com pouco tempo
⠀você rosnou
enquanto pôs a mão
⠀⠀⠀⠀⠀⠀na minha bunda
um tapa
⠀⠀fica quieto
quieto/ quieto / quieto
⠀⠀⠀⠀⠀puxou minha sunga
⠀⠀⠀e eu era tão pedra
⠀⠀⠀⠀quanto a pedra da caverna
hipnotizada pelo peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e pelo medo
⠀⠀⠀do mar

você me invadiu
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀como a faca invadia
⠀⠀⠀o peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀sobre a tábua de madeira
⠀⠀lá na cozinha
⠀⠀⠀⠀⠀⠀destruindo tudo
eu o peixe
⠀⠀a pedra a tábua
você a faca
⠀⠀⠀e eu com a cara
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀na tábua

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o grito
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀dentro
⠀⠀⠀de uma garganta
inoperante
⠀⠀⠀⠀⠀o olho
⠀⠀naquele peixe bonito
em círculos
⠀⠀na poça salgada
que me prometeu mostrar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e cumpriu

e mamãe tinha me dito
⠀⠀⠀⠀que você prometeu cuidar
⠀⠀⠀que prometeu proteger
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ que prometeu amar
⠀⠀como se fosse seu
filho
⠀assim mesmo com “o” no fim
que eu o aceitasse
⠀⠀e eu fiquei
⠀⠀⠀⠀⠀⠀então me aceite
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mãe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀me aceite

⠀falou quando foi
⠀⠀⠀me apresentar a ti
e mandou
⠀⠀⠀eu ir cortar o cabelo lá na eliane
que ela gosta de mim
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e corta de graça
que homem é bonito
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de cabelo curto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas eu não era homem
também não era mulher
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀tinha apenas onze anos
eu era só uma menina
pensei

⠀e aquilo não era amor
⠀⠀⠀⠀⠀e aquilo não era cuidado
e aquilo não era proteger
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e a única promessa cumprida
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀foi essa do peixe
⠀⠀que fez olhando nos meus olhos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀talvez as outras promessas
fossem para este filho hipotético

e você saiu de mim
⠀⠀⠀⠀⠀e se jogou na pedra como eu estava
⠀eu chorando
⠀⠀⠀⠀⠀ você rindo
⠀⠀e ofegava
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e dizia
caralho
⠀⠀⠀olha o que você me fez fazer
e não deu nenhum gemido
⠀⠀⠀⠀⠀viadinho
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀não conta pra ninguém

⠀⠀⠀e a caverna sugava o segredo
para o mais fundo que tinha
⠀⠀⠀⠀⠀⠀com a ajuda do vento
e com olho vermelho
⠀⠀⠀⠀voltávamos para onde mamãe
⠀estava com minhas tias
⠀⠀⠀⠀⠀⠀e eu olhava para aquele céu escuro
anunciando tempestade
⠀⠀⠀⠀⠀⠀e desejava que um raio nos partisse
⠀acharia ele até gentil
⠀⠀⠀⠀⠀⠀nesse negócio de partir

⠀⠀⠀⠀⠀minha mãe perguntou
⠀⠀se o peixe era bonito
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e depois o que houve com meus olhos
⠀eu disse que sim
⠀⠀⠀⠀⠀o peixe era lindo
⠀⠀pois o peixe me parecia
a única coisa
⠀⠀⠀⠀bonita da vida
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀naquele instante
e dizem para dar valor as coisas bonitas dela
⠀⠀⠀⠀⠀fiquei quieta
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀deixei o negócio dos olhos pra lá
e ela deve ter deduzido que foi só a água
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀do mar
o mar/o mar/ o mar

⠀⠀então a partir dali
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀virou hábito
você abria um peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e me abria
abria um peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀e me abria
e a faca sempre me pareceu ali
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀menos violenta que seu pinto
⠀⠀⠀⠀por isso
um dia
⠀⠀exausta eu a peguei
você deixou os peixes abertos
⠀⠀a faca e as tripas
dentro da bacia
⠀⠀⠀e saiu para falar com alguém
quando ouvi os tons de despedida
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e os passos de volta
entendi como ordem de largada
⠀⠀⠀⠀⠀de uma corrida que não sabia onde ia dar

⠀⠀⠀corri com toda velocidade
que podia ter com minhas pernas gordas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀me atirei sobre você
com todo peso que eu tinha
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀apesar de tão pequena
a faca
⠀⠀⠀que era menos violenta
entre nós
⠀⠀⠀⠀a velocidade
a levou para o fundo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ali onde a costela se encerrava
e nada te protegia
⠀⠀⠀eu não tinha osso algum
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀nada me protegeu
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀eu sem largá-la
⠀⠀⠀⠀⠀⠀com meu peso
a levei para baixo
⠀⠀⠀⠀⠀até perto do teu pinto

você como peixe
⠀⠀⠀⠀⠀com cheiro de peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀se debatendo como peixe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀então com o olhar perdido do peixe
quando a faca
⠀⠀⠀⠀⠀transpassa o ventre
e libera o mar
⠀⠀⠀⠀⠀de sangue e vísceras
e eu sorria
⠀⠀⠀⠀a faca em ti
no meu olho só a imagem
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀daquele solitário
⠀⠀e bonito peixe na poça
sorriso no rosto
⠀⠀⠀olha o que você me fez fazer
eu não falo palavrão

LILI BAILLARGÉ é escritora travesti, nascida no Ceará em 1997. Criadora do “Isso Não é Uma Revista” disponível no Medium e do Leia Mulheres Vivas, perfil no Instagram, resistente há três anos, dedicado a falar de literatura feita hoje em diversas partes do mundo, representativas quanto à sexualidade, gênero e etnia dos personagens e de quem escreve, fomentando debates sobre inclusão e o conhecimento da realidade de grupos com pouca visibilidade.

Conheça o trabalho de Lili aqui

GalvandA Galvão colagista, videoartista, escritora de Treliça poesia&cOLAgEM 2023 — edições chimichurri e uxi. Cão, um lance de dentes — poesia, 2017 e 2019 reedificação- Ed. Escriba & uxi. Cão e o livro ensaio AmeninaAnolimoc, 2013 — uxi.Cão .

Conheça o trabalho de Galvanda aqui

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