Quando outubro acabar
A Desvario reuniu nove poesias que precisavam ser lidas hoje, 31 de outubro de 2022, quando se encerra esse tempo em que vivemos por um fio.
Mulheres, somos meada.
A fatia de outubro
por Bia Chaves
Não sei se foram os olhos dos alunos
Ao fim da aula, esperançosos
E o desenrolar do futuro
Que enxerguei em cada rosto
Não sei se foi Carlos Drummond de Andrade
Falando sobre fatiar o tempo
Não sei se foi o ônibus lotado
E cada história de cada passageiro
Que imaginei antes de descer:
O menino que vendia empadas
A menina que segurou minha bolsa e me sorriu
E o adesivo de estrela vermelha no banco
E a noite que lentamente caiu
Se foi isso que me fez acreditar
Que essa fatia de tempo
Que se configurou em outubro
Talvez tivesse algo de transformador.
E que talvez Carlos Drummond estivesse certo
Quando disse que as fatias de tempo
Industrializaram a esperança.
Esperança que transfigurará
Quando o mês se encerrar
Na melhor fatia que já provei.
Vendaval
por Pâmela Rodrigues
passou uma ventania por mim. dessas que reviram a casa, levantam a saia, dificultam a caminhada e redecoram a contragosto a sala. foi daquelas ventanias persistentes, fez as portas e janelas cantarem, dando aquele arrepio na espinha. tirou tudo do lugar. aos poucos recolho os cacos do que era frágil demais e não resistiu à queda. lentamente reencontro conforto na disposição dos meus pedaços. devagar o caos vai se assentando e virando qualquer coisa parecida com normalidade. eventualmente volto a ser casa. o grito dá lugar à música. o vento perde intensidade e muda a direção, abrindo portas para novas necessidades e sentimentos. desabrocha um novo caminho. aos poucos a vida ganha tons de leveza, e se faz possível avançar. sorrateiramente o céu se abre e a luz penetra as janelas, e o peito. os ouvidos se atentam ao cantar dos pássaros, os olhos se preocupam com os desenhos das nuvens. as lágrimas secam. tudo passa, tudo tem que passar. é aos poucos que se cura.
Ouço
por Janaina Sales
Ouça a metade
para tudo
é tarde
O que está só
parte do que
não está aqui
e esteve já
Ouça a metade
que em tudo arde
O que já partiu
partiu-se
O que virá
já se virou
Cantará
sóbria
a noite
A esperança tem cor de sangue
por Gisele Rocha
o ano passou ligeiro
mas parece que se arrastou
sob meus pés de mármore
que tanto doem
outubro já finda
daqui a pouco já é natal
meu feriado favorito
mas não sei se o natal faz sentido
sem meu avô aqui
no momento, nada de mim importa
porque quando outubro acabar serei outra
talvez menos santa, menos puta, menos louca
não rasgarei mais vestidos imaginários
para deitar sob tua carne macia
descartarei todo o prazer e todo o amor
porque quando outubro acabar não amarei mais você
os remédios já terão feito efeito
eu seguirei a terapia à risca
melhorarei a minha alimentação e a ingestão de água
talvez até corra e realize meu sonho de vencer uma maratona
porque quando outubro acabar eu estarei mais próxima de ser saudável
não terei tantos picos de emoção
nem chorarei acuada debaixo da mesa da cozinha
muito menos arranharei meu corpo e puxarei meu cabelo
porque quando outubro acabar eu estarei mais estável
e, finalmente, poderei usar a camisa da seleção
assistir à copa do mundo com meus amigos
torcer veemente pelo meu Brasil
até xingar o juiz
porque quando outubro acabar a esperança reinará
vermelha: da cor de todos os cardíacos
que vibram uníssonos
por um futuro melhor.
O bicho
por Isabella Bettoni, do livro não tentar domar bicho selvagem
Um bicho enorme atravessa a rua no centro da cidade
Como se fosse tão cotidiano quanto o foto-na-hora-foto-vendo-ouro-compro-cabelo
um pouco maior do que o pirulito da praça sete,
faz uma sombra estranha no encontro das avenidas
e caminha lentamente ao lado daquela placa que diz
proibido virar à direita, proibido virar à direita
se o bicho não vira a direita, para onde ele vai? para onde é possível ir?
será que os carros param, será que o mundo se suspende, será que as pessoas interrompem a corrida e descem do ônibus pra ver?
será que ao acordar de repente com um susto assim as pessoas
param pra ver o que nunca foi visto
ver o que nunca foi visto
e para onde ele vai?
Nós
por Cidinha Oliveira
Não sou só eu nesse mundo
Por mais importante que eu me ache
E quanto mais eu me acho
Mais quero mostrar o achado às outras
Dessa nossa força
Dessa nossa resistência
Há de se contar histórias
De amor, de autoamor
De amor entre nós
Pela busca dos direitos
Pela luta contra a discriminação
Pelo fim do racismo
Que acelera e aperta o coração
Não quero deixar de acreditar em nós
Quero desatar esse nó
Que foi tão bem dado no nosso juízo
E juntas chamadas de loucas
Andarmos de mão dadas por aí
Pela rua
Dizendo que o amor existe
Dentro de nós
E isso é a mudança
Das ruínas ao embalo
por Brígida R.
joni mitchell disse
naquela música que não é sobre o natal parece ser de natal e na verdade é uma viagem de ida pro
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀fundo do poço
que ela queria ter um rio
por onde pudesse patinar
que ela queria ter uma grana
pra fugir desse lugar maluco
outubro se despede
e nesse dia insano
dessa semana terrível, interminável mesmo
a democracia está lutando contra o fascismo
e do lado de fora da janela, nessa rua
que amo,
mas que moram os pequenos ricos do manoel carlos
estão comemorando cada absurdo do pedófilo
da república.
o absurdo sempre tem um palco
só seu
e como é difícil
remar contra quem não quer escutar.
tudo foi longe demais
e nem sei
se há como voltar atrás
quando o sistema te adoece
e a força se vai
devagarinho devagarinho
e a doença te consome
mansinho mansinho
e quando você vê
te resta muito pouco
ainda assim
é preciso lutar.
Exílio
O café era amargo
e tudo foi aos poucos perdendo o sentido,
o rumo, o riso,
até o poema deixou de ser um caminho,
para ser escapismo.
De tantas fugas
planos
rotas que pareciam labirintos
cheguei a pensar que nunca sairia.
Deixei de lado os versos
e fui viver dia por dia.
De tudo que se foi a esperança foi a única a ficar
mais um pouco
só ela poderia ver o sol
nascer
de novo.
31 de outubro
por Vitória Vozniak
experienciar a chegada do verão pela falta do arrepio
olhar no fundo âmbar das lâmpadas crepitantes
de uma noite quente, transpirar os males para fora
ouvir a batida techno de uma fila que avança
rodopiar onde os mortos dançam
como se recebesse o abraço dos que se foram
fogo azul é sempre mais quente
de um fantasma familiar, ouvir os sussurros
chegar mais perto para ouvir “eu te amo”
finalmente,
respirar.