Allen Ginsberg at City Lights Bookstore in 1959, photographed by Joe Rosenthal.

“Improviso em São Paulo” versão de Fabiano Calixto para o poema “Improvisation in Beijing” de Allen Ginsberg

Marcos Oliveira
deus ex machina
Published in
4 min readJan 23, 2017

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“Improviso em São Paulo”:

Eu escrevo poesia porque a palavra portuguesa inspiração vem do latim inspiratio, sopro, e eu quero respirar livremente.
Escrevo poesia porque Sousândrade deu ao mundo a permissão de falar com ternura.
Escrevo poesia porque Sousândrade deu ao verso a regência da respiração.
Escrevo poesia porque Haroldo de Campos mirou uma torre de marfim e apostou no cavalo errado e deu aos poetas a autorização de escrever a língua lácio-falada.
Escrevo poesia porque Haroldo indicou aos jovens poetas sul- americanos que observassem os chineses desenhando a
semântica.
Escrevo poesia porque Mário de Andrade, da Lopes Chaves, escreveu semanadeartemodernamente “Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!…”, para logo se perguntar: como posso medi-
lo em alexandrino?
Escrevo poesia porque meu pai era poeta e minha mãe, anarquista, vive no mundo da lua.
Escrevo poesia porque meu jovem amigo Ricardo Domeneck sentou-se para examinar seus pensamentos como parte de um fenômeno ético/estético/histórico — numa leitura de 2006.
Escrevo poesia porque eu sofro pra caralho: natimorto, pedras nos rins, spleen, pressão alta, amor em falta — todo mundo se fode.
Escrevo poesia porque, não sabendo o plano alheio, eu me despenteio.
Escrevo poesia porque ela pode revelar meus pensamentos e curar minha neurose — assim como a dos outros.
Escrevo poesia porque minha mente vadia à toa meditando sobre sexo, estética e São Francisco de Assis.
Escrevo poesia para juntar, com toda precisão, os cacos da minha cuca.
Escrevo poesia porque entendi as parábolas de Cristo: chegará o filho de seu par e ele colherá tudo que seja escândalo e sândalo, e lançará à cama de ouro, e ali haverá lágrima e ternura; então haverá um humano. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça: a luz da mente é infinita.
Escrevo poesia porque nesta manhã acordei tremendo de pavor. Que mais eu poderia sentir em São Paulo?
Escrevo poesia porque os poetas Torquato Neto e Ana Cristina Cesar se mataram e alguém tem que falar.
Escrevo poesia porque meu pai um dia recitou uma coleção de poemas populares e deu um caminho — do vento só herdamos o carinho.
Escrevo poesia porque putaria é prato do dia nos Estados Unidos do Brasil.
Escrevo poesia porque os milionários cruzam o país em seus Hyundai, e os fodidos deixam seus dentes nas sopas filantrópicas.
Escrevo poesia porque meus genes e cromossomos só sentem tesão por ninfas e dríades.
Escrevo poesia porque hoje, graças ao acaso, não tenho mais nada a ver com isso.
Escrevo poesia porque sou habitante da solidão e, de repente, falar com as pessoas pode ser divertido.
Escrevo poesia para papear com Bolaño; para que pobres-diabos,
daqui a cem anos, fofoquem com suas velhas tias e patéticos tios que ainda vivam em São Paulo.
Escrevo poesia porque em 1979 escutava Luiz Gonzaga e Roberto Carlos nas rádios de São Paulo.
Escrevo poesia porque ouvi The Long and Winding Road dos Beatles — os que nunca acabam, pois estão longe. E longe é uma geografia
repleta de saudades intransponíveis.
Escrevo poesia porque uma noite, em meu sonho, Chuang-tzu não sabia se havia sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta que havia sonhado que era Chuang-tzu. Outro chinês, o tal Lao-tzu, disse que a água flui como uma estrutura que rui; e Confúcio disse honre os mestres. E eu desejo honrar a Sousândrade.
Escrevo poesia porque o excesso de tirania, coronelismo e dinheirolatria
consome o mundo e cria desertos na carne e na mente.
Escrevo poesia usando um Mad Rats vermelho.
Escrevo poesia porque “o simples é o certo”, sempre.
Escrevo poesia porque as idéias não são compreensíveis a não ser quando expressas com as mínimas minúcias: “Isto não é um cachimbo”.
Escrevo poesia porque um fauno de calça Lee escreveu: “A vida é curta pra ser pequena.”
Escrevo poesia porque os jornais dizem que um buraco negro nos engolirá — e somos livres para não estar nem aí.
Escrevo poesia porque as duas Grandes Guerras não nos ensinaram nada, nem uma linha sequer, e a Terceira, que tanto almejamos, que venha fatal e corrija o erro da Criação.
Escrevo poesia porque meu poema, “A falta que ela me faz” foi apreendido e torturado pela polícia-piada-pronta das letras nacionais.
Escrevo poesia porque meu primeiro poema extenso, At Infernum — Livro de Gravuras, honra minha sobrevivência, da minha Garota e da minha Velha, neste mundo babaca.
Escrevo poesia porque os EUA patrocinaram todas as ditaduras na América Latina, assassinando milhares de sul-americanos. E eu sou sul-americano!
Escrevo poesia porque, de Moscou, sabemos que Stálin mandou 20 milhões de judeus e intelectuais para a Sibéria. 15 milhões jamais tiveram a oportunidade de tomar um café no inverno de São Petersburgo.
Escrevo poesia porque canto quando estou sozinho.
Escrevo poesia porque Sousândrade disse:
“– O Lord! God! Almighty Policeman!
O mundo é ladrão, beberrão,
Burglar e o vil vândalo
Escândalo
Freelove… e ‘í vem tudo ao sermão!”
Escrevo poesia porque sou contraditório; agora estou em São
Paulo e daqui a pouco em Guadalajara.
Escrevo poesia porque em meu pensamento habitam infinitos perfumes.
Escrevo poesia sem razão nem por quê.
Escrevo poesia porque é a melhor maneira de dizer tudo em seis minutos.
Ou numa vida.

Fabiano Calixto em tradução livre de Allen Ginsberg

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