Risco moral

Daniel Pereira
Devaneios Literários
5 min readSep 28, 2016

A teoria econômica de Adam Smith descreve que o comércio deve ser livre, sofrendo o mínimo de interferência do governo. Neste modelo as pessoas agem a partir do seu próprio interesse, visando maximizar seus ganhos. Como existem várias pessoas dispostas a obter lucro a “mão invisível” do mercado entra em ação: se um comerciante tentar obter um lucro muito grande com a venda de um produto logo irá aparecer outro oferecendo um preço menor, o que ajustará o preço à sua realidade. Neste cenário os preços são controlados pela relação entre oferta e demanda e todo mundo obtém o cenário ideal: o consumidor paga o preço mínimo, o funcionário recebe o salário apropriado às suas habilidades e o empregador consegue o lucro adequado. Claro que na prática as coisas não são tão simples.

Smith reconheceu a importância de tratar certas brechas que esse sistema econômico traria como é o caso dos monopólios e carteis. Outras particularidades foram encontradas conforme o passar do tempo, sendo uma delas o risco moral. Mas afinal, o que é o risco moral?

Risco moral nada mais é do que a mudança de atitude, seja de uma instituição ou de uma pessoa, ao se relacionar com o risco quando o impacto causado por este é redirecionado para o outro agente envolvido na negociação. Kenneth Arrow foi o economista pioneiro neste tema, esclarecendo que nem sempre todos possuem as mesmas informações em uma negociação, como tinha previsto Smith. Arrow argumenta que o estabelecimento de um contrato entre ambas as partes não garante que ele será cumprido na sua íntegra. Se uma das partes não tiver conhecimento para assegurar o que foi combinado a outra parte pode deixar de cumprir algo previamente estabelecido. Isso abre a possibilidade para que um dos lados assuma riscos que são amparados pela outra parte sem que ela tenha consciência disso.

Funcionários que passam a produzir menos quando não estão sendo supervisionados de maneira mais intensiva são um exemplo desse caso. A empresa assume o risco de ter sua produtividade reduzida, algo que não era esperado pelos gestores no planejamento. A atitude do funcionário acaba sendo absorvida pela empresa pela falta de conhecimento sobre a situação. O mesmo vale para um funcionário recém-contratado: a empresa não terá todas as informações sobre ele no momento da entrevista e descobrirá elas apenas com o passar do tempo. Isso permite que pessoas que não se encaixem no perfil da vaga sejam contratadas, pelo simples fato de um processo seletivo não repassar todo o conhecimento sobre o candidato à vaga.

Outro caso comum, provavelmente o mais comum de todos quando o assunto é risco moral, são as apólices de seguro. Para entender melhor essa questão, vamos conhecer o João:

João, todo feliz com seu carro novo

João conseguiu juntar uma grana e comprar um carro 0 km. Quanta alegria! Mas essa alegria logo se tornou em apreensão. João morava em uma metrópole e sabia dos riscos de ter seu carro novo furtado. Toda vez que ele saía do carro checava se as portas estavam trancadas. Pra garantir, checava uma segunda vez (sabe como é, tecnologia é algo que costuma falhar). Só deixava o carro em estacionamentos pagos ou em locais que tivessem garagem coberta, para não dar chance para o azar. Quando tinha que deixar o carro em algum lugar público sempre tentava resolver as coisas o mais rápido possível. Na hora de dirigir então, nem se fala: só de pensar no prejuízo de bater seu carro já fazia com que ele diminuísse a velocidade e redobrasse a atenção.

Cansado dessa vida de preocupações João decide então pagar um seguro. Furtaram o carro? Aconteceu uma batida? Sem problemas, o seguro cobre. Isso fez com que o João ficasse mais tranquilo em relação as suas preocupações iniciais: agora ele deixa o carro em locais públicos numa boa, passou até a esquecer de trancar o carro em algumas ocasiões. Seu comportamento no trânsito também já não é mais o que fora antigamente. A menos que ele bater em um carro tão caro quanto uma BMW ele está coberto pelo seguro, então não tem porque ser tão cuidadoso assim.

A proteção garantida pela seguradora fez com que João assumisse um risco maior em relação ao seu patrimônio, um risco que ele não estava disposto a correr antes e que, se concretizado, será amparado pela seguradora. Essa disposição do João a correr mais risco com seu carro depois de fazer o seguro é o chamado risco moral. A seguradora não tinha como saber de antemão se João iria mudar sua atitude antes de fazer o contrato, configurando assim o risco descrito.

Essa atitude aventureira pode parecer um tanto inocente pra quem olha de fora, mas ela já trouxe complicações globais sérias para a economia. Em 2008 vários bancos acabaram comprando títulos de devedores que não possuíam renda ou garantias adequadas (os tão falados sub-primes da crise de 2008) visando aumentar seus lucros. Esse risco era interessante pelas grandes comissões que eram geradas, então a garantia de crédito foi negligenciada na hora de tomar a decisão. Existia uma confiança dos banqueiros que o governo não deixaria eles quebrarem em uma situação desfavorável devido a sua importância na economia, o que os levou a arriscar com mais intensidade na compra desses títulos. Alguns bancos acabaram descobrindo que na prática a história era um pouco diferente, como foi o caso do Lehman Brothers, e faliram quando as dívidas de alto risco não foram honradas e o governo norte-americano decidiu não intervir para salvá-los.

O risco moral é algo a ser levado em consideração em negociações, sempre buscando uma mitigação do problema quando possível. As seguradoras fazem isso cobrando valores maiores e impondo condições em seus contratos, como a utilização de GPS, alarmes, entre outros, buscando assim diminuir possíveis negligências do segurado. No Brasil, empresas e funcionários tem 3 meses de experiência para decidir se o que foi combinado na contratação continua compatível no dia-a-dia, o que é um período bem maior do que o processo seletivo para uma vaga.

Como um dos principais causadores do risco moral é a sensação de segurança de que os riscos serão absorvidos por outro agente, criar mecanismos para eliminar a zona de conforto de quem busca o risco é o grande desafio a ser superado. Conseguindo atingir esse objetivo, muitos riscos que não deveriam ter sido tomados em primeiro lugar podem ser eliminados, trazendo um contraponto à falta de informação que uma das partes envolvidas na negociação possui sobre a outra.

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