2 de outubro, 2018

Dayanne Dockhorn
Deveria ter dito
Published in
2 min readMar 23, 2023

Guardo poucas lembranças daquele dia. Apesar do inverno estar longe de outubro, lembro do frio que fazia em Missoula, uma cidadezinha no meio das montanhas de Montana. Lembro de ver pequenos cervos na nossa rua e chorar quando um deles me olhou nos olhos, porque aquilo era melhor do que qualquer coisa até ali, e eu sabia. O dia anterior fora meu aniversário de 25 anos, e não comemoramos, mas pegamos o ônibus gratuito da cidade para ir ao cinema, onde pedimos aquele aparelho esquisito de legendas para ter certeza de entender o filme. Durante aqueles dias, planejamos nossa ida ao Glacier National Park, fazendo listas do que levar — de barras de cereal a spray anti-ursos. Mesmo que o encontro com um urso parecesse algo tão fora da nossa realidade, lá, num cenário selvagem, seríamos nós e eles.

Mas antes que isso pudesse se concretizar, o telefonema trouxe a notícia. Era fim de noite e eu escrevia um ensaio no computador enquanto você trabalhava no sofá. Ainda hoje sinto como se houvesse uma neblina cobrindo meus olhos quando penso nisso. Se esta fosse uma história de ficção, o telefonema seria o que chamamos de start do livro, o gatilho ou incidente excitante — a partir dele nossa vida seria tirada do eixo.

A notícia foi a pior e nunca vimos o Glacier e a neve e o inverno no hemisfério norte. Quando Valeria me contou que o pai tinha falecido na ambulância a caminho de Montevidéu, me pediu para que contasse a você. Mas eu nunca fiz isso. Paralisei e te passei o telefone. Não sabia como ser o receptáculo da notícia. Depois que desligamos o telefone, não sabia muito bem o que fazer a não ser pensar na vida imediata. Era hora de jantar e eu fiz uma comida rápida na frigideira, depois preparei um banho fervente para espantar alguma coisa — o frio ou a morte.

--

--