Agarrei o sopro de fala, Nina

vitória gabriela
3 min readJun 5, 2023

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A fotografia captura mais de um momento da dança uma mulher que está usando um vestido branco de tamanho midi. A imagem está mexida. O vestido se mexe, o rosto, e os braços, como se tivesse sido capturada em um momento de rodopio.

Para: Eunice Kathleen Waymon aka Nina Simone.

Nina, Eu queria ser livre.

Livre do seu jeito, sem medo (ou do jeito que você também queria ser).

Eu perdi muito tempo tentando me enxergar em espelhos de papel, tentando entender e descobrir o lugar de onde vim e o que vai se tornar de mim. Eu investi tanto tempo procurando respostas que só eu poderia me dar que hoje estou no início da vida, mas me sinto no fim da mesma. Me distrai enquanto o verdadeiro ouro estava em minha volta, pois me tornei obcecada pelo oco da prata, e ninguém que me assistiu é capaz de reconhecer a energia que coloquei em dançar para enxergar afeto onde só havia a desgraçada da curiosidade. Sai mundo a dentro vestindo a chacota social porque eu não entendia que não era todo mundo (na verdade, quase ninguém) que estava interessado em saber como eu estava decepcionada, cansada e mesmo assim tentando. Nina, eu expus as minhas feridas poupando-os do trabalho de procurar por elas, dando de mão beijada meu sangue para beberem!

Eu acho que nunca vou entender porque as coisas me torturam, porque o sistema não foi pensado em mim, em nós, em nada do que eu sou, em nada do que você foi. E nem mesmo as individualidades me acolhem, pois são moldes da mesma pressão. Quando ele pensa em uma garota por quem se apaixonaria e entregaria seu coração: Eu não sou ela. Nunca fui ela. Nem física e muito menos espiritualmente. Sei que você entende esse sentimento.

Não sei quando deixei de medir o valor de algo pelo encantamento que me desperta como Manoel de Barros, e passei a adquirir esse modo vazio de medir por quão úteis podem ser. Por exemplo, não aguento mais rejeitar minhas lágrimas apenas porque elas não resolvem nada. São inúteis. Com ou sem elas, nada muda. Nada muda. E (também) por isso sinto que vou estar sempre machucada.

Minha arte é tudo que eu tenho não importa o que aconteça, mas as vezes tudo que eu queria era ser comum (apesar de eu não acreditar 100% que o comum exista). Porém, é impossível pra mim querer só o ir até o ponto, ir com o ônibus, voltar para casa com ele e ficar por isso. Eu preciso sentir minhas articulações esticarem, meus nervos e minha carne. O som dos ossos estralando é minha salvação, Nina. A mesma relação que você tinha com a música eu tenho com a dança. Preciso usar meu corpo para me expressar, ser ativa, me encher de vida. Mas eu não sei se suporto, me sinto tão avulsa. Provavelmente vou me forçar a ser como são, entender a beleza de outros tipos de ambições. Entretanto, essa carta é o registro do sentir que sou capaz de me pôr em uma situação tão vulnerável sendo tão corajosamente covarde como sou. Isso era pra ser sobre você, né? E é, você tá imortalizada cantando nos meus ouvidos enquanto escrevo isso. Obrigada.

Com carinho,

Maria — como a mãe de Jesus e todas as outras. Diretamente da Estranheza.

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vitória gabriela

cada vírgula é um ponto de depressão entre os vales das palavras, cada palavra após uma vírgula é a escalação desse ponto de depressão.