vitória gabriela
4 min readAug 22, 2023

Vigésimo primeiro dia de março, em algum momento entre 3 e 4 a.m, do ano de 2023.

Me desculpa por não ter te escrito em vida, me perdoa por repetir a mania do despertar com a partida.

Eu ainda não sabia que você havia morrido quando minha mãe ligou para meus primos, seus filhos. Eu entrava pro banho antes de ir ao seu encontro enquanto o mais novo dizia que havia aprendido a escrever o próprio primeiro nome, e eu planejei te contar isso já que outro dia meu tio pensou que tinha te visto chorar. Então, se eu sussurrasse bem pertinho de você, talvez você pudesse entender e ficaria feliz, sei que ficaria, pensei que pudesse chorar de alegria.

Agora estou com um lindo vestido azul guardado para você e daqui uma hora estarei ao encontro do seu corpo, vou te reconhecer. Este azul que irá te vestindo foi a mais velha que escolheu e eu... achei lindo. Há uma foto minha com um conjuntinho azul no antigo sofá-cama da minha avó, e você estava no dia, há você nas fotos. Eu disse hoje para minha outra tia que não me lembro de existir sem te conhecer, sempre houve você.

Fiz as contas e quando nasci você tinha vinte e cinco, estava beirando a completa formação do cérebro, embora eu tenha te visto mudar essa formação várias vezes (e me orgulho disso). Você sempre foi gentil comigo, ignorando seus demônios para que não fossem vistos. Eu não, errei muito, fui distante muito. O desconforto, medo, o mundo, meus deslizes... Sei que não foram apresentados, mas estavam ali, não deixam de estar só por não serem anunciados. Queria ter sido melhor. A gente sempre quer.

Jamais serei a mesma. A moça da recepção não conseguia me olhar nos olhos!!! E eu precisava te ver. Odeio a frieza de hospitais com seus corredores opressores escancarando as coisas como são, me fazendo questionar se a vida é isso: enxergar essas coisas, essas listras no chão, esse âmago preso à mão que álcool em gel não mata, não tira, e ele sobe pelos braços, chega na barriga com a entrada pelo umbigo, escala até a garganta num vômito entupido, e então o que farão com isso? há alguma solução? ... A moça não me olhou porque algo acontecia e eu não sabia, algo aconteceu e ela sabia. Quando eu enchi o peito de ar e fui perguntar "por que não posso subir?" daí ela me olhou, mas sem me ver e disse o mesmo sobre esperar.

Após a pequena eternidade até que nos liberassem, quando subimos, lá estava um médico mais baixo do que eu, de pele branca, cabelo preto em processo de embraquecimento, dizendo que você já não pertencia mais a este mundo do diabo. Embora eu saiba que a morte não devia ser triste como é, eu não posso deixar de pensar que você é a primeira pessoa próxima a me deixar. A primeira desde que eu adquiri certa consciência, certa consistência nos joelhos (mas não para permanecer de pé enquanto a enfermeira justifica não ter entrado em contato antes) Eu simplesmente não aceito. O menino mal passou do primeiro terço de duas décadas, eu nem sei se ele sabe o que é a morte e a primeira perda dele: você — A mãe.

E sabe, eu me sinto covarde. Meu tio, seu marido, me ligou enquanto o médico ainda dizia algo (eu não ouvi uma única palavra do que ele
comunicava, eu. só. chorava. como choro agora) mas eu não tive capacidade de atender e simplesmente dizer. O “chamada perdida” me atordoará o resto da vida.

Então, no fim do dia, enquanto dentro de um carro cinco pessoas teciam o lado burocrático, eu e minha cunhada ficamos com as crianças das 18h ás 0h (e pouco). Houve um momento em que el(l)a, a mais velha, se escondeu para chorar e eu fui atrás apenas para que tivéssemos a conversa mais íntima que tivemos em todos esses anos. O menino veio, eu disse que ele não podia entrar porque era um "papo de meninas"

e era:
uma menina-mulher
uma mulher-menina
chorando a falta de uma mulher-partida.

O que eu mais tento no mundo é transformar minha fé-muda em árvore com raízes e galhos impossíveis de serem ignorados, mas as vezes eu apareço em miniatura rodando pelo meu próprio corpo com essa pequena mudinha ocupando meu braços. Planto e troco de lugar, esqueço de cuidar, volto e cuido tanto que afogo. Mas talvez ela já seja enorme na sua pequenez, pois é dela que vem o que eu sei: eu sei que nos veremos.

Na última vez que nos vimos, você fez um esforço enorme para andar até mim, eu me senti mal por você ter se sentido na necessidade de vim, comentou sobre meu novo tom de cabelo e eu fiquei feliz que você havia reparado, mas na volta pra casa eu escrevi, assustada, sobre o sentimento atolado em meu peito desejando que minha própria mão o alcançasse ao dizê-lo.

Sei que nos veremos.

vitória gabriela

cada vírgula é um ponto de depressão entre os vales das palavras, cada palavra após uma vírgula é a escalação desse ponto de depressão.