vitória gabriela
Deveria ter dito
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3 min readJul 17, 2023

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Photo by Gabriel Martins on Unsplash

Não vou relatar sobre os nós que chegaram à formar meu cordão umbilical para que eu pudesse aqui estar a relatar sobre os nós que nos ligam; duas mulheres estranhas que nem imaginavam que a outra existir(i)a.

Maria, eu nunca havia escutado esse nome na linhagem de nomes atípicos da qual eu venho. Você foi a primeira. Maria, eu não sabia que esse nome também nos pertencia.

O que eu sei sobre você é parte dilacerante e parte encantadora, como o que eu sei sobre o mundo. Eu sequer sei se esse foi o nome lhe dado ao nascer, mas saber esses detalhes simplórios seria a última das últimas coisas que eu procuraria saber, se agora eu pudesse te ver.

Maria, seu neto do qual eu venho é um homem muito complicado para dizer o mínimo e não carrega toda a culpa por ter sido quem foi, por ser quem é, para dizer o máximo. Só que mesmo assim, ele nos ligou. Sendo como é, seja lá como for. Após soltar uma de suas charadas, sendo eu a única presente capaz de desvendá-la, ao me olhar nos olhos, foi de você que ele lembrou. Disse que foi você a quem eu puxei. E então te procurei em tudo que eu alcancei, principalmente na voz daquela que ele esperou no altar, mas que você não pôde ver pois, lá na serra, se ocupava morrendo.

Maria, eu gostei de tudo que ouvi sobre ti. Mesmo sem ter como provar, mesmo sem ter como te procurar, te caçar, além de em dentro desses corações que pulsam apesar do chagas. Eu te coloquei no meu pseudônimo junto à jovem do altar que hoje vive enquanto completa em vida sua oitava década. Maria, sei que com minha idade você já fazia muito mais do que eu faço. Por vontade própria ou não, e eu meu Deus, como eu queria poder voltar no tempo para te conhecer, te dar a chance de escolher como viver. Eu gosto de pensar que fostes feliz, mas sei que essa ideia só se faz possível porque não há como saber o contrário. E sei que é um tanto ilusória dado as circunstâncias, mas eu digo feliz ao seu modo, um singelo e pequeno modo que talvez só você compreendesse. Gosto de pensar que você viveu com uma fogueirinha quentinha aquecendo estômago e coração, blindando contra a frieza dos dias. Das coisas, das pessoas.

O que me agarra aqui, mulher estranha e antiga é que, ao me falarem sobre suas ideias de mundo, previsões para os dias, conselhos que doava e nunca vendia, e te citarem como a velha sábia Maria, eu sempre acabo na mesma densa perdição, eu sempre me pergunto se você tivesse a minha idade hoje, se tivesse conhecido o alfabeto, também escreveria? Você insistiria? Maria, você insistiria?

Sou injusta ao manter a teimosia em procurar em um figura desconhecida uma tocha à ser passada e carregada, me dê essa tocha, Maria. Me ensina a viver em poesia, como fizestes. Apesar de tudo que ninguém quer narrar. É que eu sou fraca e não tenho sido nada, porque me sinto estacionada, mas ligada, muito ligada. Meu motor ronca, só que eu tenho medo do trânsito, dos faróis, das placas... Quem poderia me culpar por estar com medo, mas quem poderia compreender meu medo?

E eu amo os dias, as pessoas, a escrita, como as plantas amam a chuva, mas sempre que expostas tempo demais são machucadas pela mesma coisa que as mantém vivas, Maria. Pela mesma coisa que as mantém vivas. Os excessos são mortais, fatais, assassinos farsantes.

Eu penso em você correndo em campos, conhecendo a linguagem do vento, e no gosto doce de frutas que consumias que eu sequer conheço. Penso em mim, criança de olhos castanhos e cabelo pesado, com a boca aberta sentindo o gosto do palito adocicado desses médicos de convênios que nunca te alcançaram.

Penso em nós duas, sendo estupidamente jovens e saudáveis com uma natureza feroz de tão bela, vendo o mundo nascer no momento em que se abre os olhos, sendo um novo mundo à cada manhã, vivendo um pouco na serra, um pouco na cidade, mas não na minha cidade porque São Paulo não é nem possibilidade, Maria. Em sonhos? Nem possibilidade.

Penso em nós duas juntas e vivas com nossas fogueirinhas, e tradutores ágeis de charadas para conversar com pessoas adaptadas em outras áreas.

Eu vou te esperar,
Maria.

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vitória gabriela
Deveria ter dito

cada vírgula é um ponto de depressão entre os vales das palavras, cada palavra após uma vírgula é a escalação desse ponto de depressão.