Para os primeiros dedos que tatearem a última onda abraçada na garrafa que levará essa carta: eu gostaria de informar que aqui é uma área preservada.
Sempre bom lembrar que toda memória é rodeada de uma fita preta e amarela.
Eu queria começar citando alguém que foi mais preciso com as palavras, com mais conhecimento e mais foco, que tenha sentido algo parecido ou igual e tenha escrito de uma maneira que eu jamais serei capaz de escrever por ser tão produto do meu tempo e das circunstâncias que não pude escolher, mas preferi escrever dessa forma mesmo que você lê: o registro do estático das pálpebras enquanto o castanho de olhos ordinários como os nossos encara o sangue jorrado no chão. Eu fui quem quebra propositadamente, por não suportar falsas transparências, uma janela de vidro e precisei contornar a humilhação dos pontos no punho e dos olhares assustados, enquanto prometi não ser um monstro e justifiquei ser uma pulsação distante que desvanece a cada ilusão.
Mas e você? Enquanto mancava no meio fio da calçada de casa, da janela eu te observava e o desprezava. Queria do mais fundo de mim que ali mesmo caísse e pudesse se ver no reflexo de pupilas curiosas no dia seguinte, mas por birra do acaso que nunca corresponde meus desejos, você sempre alcançava a porta de casa e eu era obrigada a fazer de seu despertar um espetáculo. Nunca me pesou os 2 litros de água gelada que eu carregava para despejar na sua cara. Como nunca te pesou minhas lágrimas.
Não estamos sozinhos. Somos parte de estatísticas, de algo grande. Está orgulhoso? Não há mesmo mais o que dizer, até os brutos são capazes de ver que a delicadeza pela qual buscamos foi pisoteada há muito, muito tempo pela imperdoável crueldade desenfreada nascida de ambos. E há muito, muito tempo convivemos com o fato, o aceitamos em nosso meio. Não há mais o que ser feito quando se assemelhar ao animalesco se torna o que somos, basta aguardar a morte vindo a galopes nas costas de seu predador natural.
A sensibilidade se tornou ultrapassada, não foi? Até mesmo ousar escrever que hoje eu senti culpa pelas formigas que matei e que encontrar morta, na beira da cama, a abelha desnorteada que bateu na tela do computador poucas horas atrás, me fez apalpar sua solidão porquê abelhas quando morrem é por usarem seu ferrão contra aquilo que lhe provocou medo… Até mesmo relatar isso é ingênuo, não é? Eu me pergunto se seria a sensibilidade a dona desse sangue que carregamos em nossas pegadas.
Porém, admito: nem tudo foi estrago e grito. Tivemos nossos momentos ou então não teríamos chegado a isso. Ainda me lembro de como você ajoelhou no chão de pedra daquela trilha para amarrar os cadarços do meu tênis, olhou para cima com o brilho de um astro no olho esquerdo e um inteiro buraco negro no direito, tão lindo de um jeito tão único, suspirou de uma maneira que só você sabe, um suspiro cantante e suave antes de perguntar “casa comigo?” Eu sei que você não planejou aquilo. Em uma trilha, com a pele dos joelhos sendo pressionada na mesma tensão daquele antigo castigo com milho, não tem como você ter planejado. Até porque para isso você precisaria ter combinado com meus cadarços quando eles precisariam desamarrar, mas mesmo se fosse o caso, ainda não tem como você ter planejado porque você não carregava consigo alianças ou sequer um anel de noivado. E eu amei tanto que você deixou sair a pergunta sem arquitetar como seria a performance da mesma. Eu diria sim mesmo se você tivesse programado, mas o fato de não ter me fez não só dizer como sentir, por todas as minhas células, a reverberação desse sim.
Com você sei que não fui um anjo, embora anjos na terra não sejam sinônimo de mansidão, porém é necessário explicitar isso porquê quem se atreve narrar sempre acaba saindo com uma espécie de auréola na história, e eu me recuso a aceitar. Não fui fácil de afagar, mesmo que tenha sido fácil de assombrar. Me perdoe por isso, mas você sabe que aquele meu jeito de andar foi herdado, andar com pressa quase correndo como as mulheres que me criaram. Você sempre reclamava, bradava puxando meu braço pela mão entrelaçada “do que tanto corre?” questionava e eu que queria dizer “de homens como você” dava um riso sem graça já que afinal, eu já havia sido capturada.
É verdade que, como os pombos, eu quis fugir enquanto fui treinada para aproximação. O que significa que minhas asas batiam em direção a um céu mais claro enquanto meus pensamentos ainda estavam emaranhados nas gotas do seu cérebro tempestuoso. Sim, eu quis voltar, mas vale lembrar que fui eu quem decidiu ir. Não dá para equilibrar. Eu sempre quero voltar e é justamente por isso que eu nunca volto. É um trato que tenho comigo pois eu sei que o desejo independe das circunstâncias, então a decisão precisa ser independente igualmente. E é por isso que não dou a esta carta um destino, para que sozinha ela encontre onde pousar.
Já que eu não esqueço muita coisa, brinco com o significado de rancor, mas eu te prometo que não há dor quando me lembro, tudo passou.
Quando me fazem querer recolher os morangos de época que ofereci, preciso me lembrar que dar beneficiou principalmente a mim. Não por estar necessariamente aguardando algum tipo de recompensa divina, e não sou a primeira a dizer, mas me sinto na obrigação de reforçar que há, mais do que nunca, a necessidade de uma força descomunal para se manter humano.
Vem cá, você acha que uma abelha sabe que no caso dela se defender implica morrer?
Pienso que un sueño parecido no volverá más
Y me pintaba las manos y la cara de azul
Y de improviso el viento rápido me llevó
Y me hizo volar en el cielo infinito
Domenico Modugno.