Muito bem, filho! #devir43

Marcelo Maceo
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Published in
4 min readSep 6, 2018

“Mamãe, veja o que eu fiz.”

“Parabéns! Você fez certinho!”

“O André pegou meu lápis azul e eu chamei a professora pra dizer que ele roubou de mim.”

“Pai, lembra daquela minha namorada, a Aninha? Ela estava de mão dada com o Ricardo, eu fui lá e dei um empurrão nele e falei pra não chegar mais perto dela!”

“O René veio me abraçar, assim, do nada! Eu dei um chega pra lá nele! Coisa de viado!”

“O que aconteceu?”

“Eu acho que elas estavam rindo de mim, só pode ser por causa da prova de dança. Ninguém fica comigo mais no recreio…”

“Vai lá e dá um murro na cara do moleque mais forte daquele bando, você vai ver como vão te respeitar depois que o nariz dele começar a sangrar.”

“Enquanto você morar debaixo desse teto e comer da comida que eu compro, você vai me obedecer!”

“Mas eu preciso passar e entrar nessa faculdade, senão meus pais vão ficar muito decepcionados comigo.”

“Se eu não dormir com ele não vou crescer nessa empresa.”

“Esse cara vem me cumprimentar dando tapinhas nas costas e fica me queimando com o chefe?”

“Vou deixar esses idiotas acharem que estão ganhando pontos comigo, depois eu quero mais é que se fodam, não vou facilitar nada!”

“O homem é o lobo do homem.”

“Aqui é ferro e fogo, o mundo é um campo de batalha, fica esperto ou te comem vivo, mano!”

“Logo que acendi o cigarro, ela jogou aquele olhar de desprezo em mim.”

“Meu deus do céu, que nojo! Você está vendo como ele não para de fumar? Credo!”

“Se o cara não está no mínimo bem vestido, com alguma roupa de uma marca que preste, nem olho mais.”

“Meninas! Vejam as sacolas! Aqui tem 30 mil gastos no shopping, vamos brindar!”

– Chega, Horácio! Não aguento mais ouvir isso!

– Mas ouvimos isso todos os dias, toda hora.

– Ah… ouvimos sem ouvir.

– E replicamos sem pensar, sentimos sem perceber…

– Nossos filhos, não!

– Inclusive. Será que vamos manter esta cultura que “não aguentamos mais ouvir” em nosso filhos? Veja o quanto já reproduzem este mesmo emocionar sem saber.

– Concordo. No fim, Horácio, você tem razão. Eu não quero que eles entendem que o mundo é uma guerra, que temos que competir e vencer a qualquer custo, muito menos suportaria ver o Bruninho dando uma de machão com as meninas ou batendo em todo mundo. E a gente fala, fala, e de nada adianta.

– Nada mesmo. Se falar adiantasse toda campanha de saúde daria certo. A informação, o conteúdo, não é relevante pra nada aqui. Nós e nossos filhos apenas replicam comportamentos. Não dizem que só comportamentos mudam comportamentos?

– É. Mas não acho que é só isso não. Eu sinto que deve haver um sentido nas coisas que você faz. Junto com um comportamento, ou antes dele, temos que sentir ou ter uma emoção compatível para aquilo ser percebido pelo outro.

– Sim! Concordo! E, inclusive, não acho que devemos reforçar positivamente com um elogio, por exemplo, quando o comportamento é adequado.

– Como assim? Por que não? Um elogio não é um estímulo para a criança saber que está no caminho correto?

– É, e não é esse tipo de estímulo que estamos replicando e que também faz parte desta cultura patriarcal? Veja, a criança, ou melhor, qualquer pessoa, deve ser incentivada a criar qualquer novo mundo social que deseje. E eu acho que reforçar algo que vêm de encontro com um mundo que não foi criado por ele, mas o qual ele interpretou corretamente, é uma desumanidade.

– Pensando bem, tem sentido. Esta cultura passada de geração em geração se mantém somente na escassez. É como dizer que só existe um mundo, uma realidade, uma forma correta de ver as coisas, de interpretar, e nós reforçamos isso toda vez, ao invés de incentivar a invenção de novas possibilidades, de outros mundos possíveis.

– Isso! Quando uma criança se mostra capaz de fazer todas as interpretações que percebe de forma adequada — e adequado sempre na visão de alguém superior, mais sábio, ou experiente — e nós revalidamos isso, ela se conforma com aquela descrição, e se conforta em um mundo único possível.

– É justamente aí que formatamos as pessoas para reproduzir um modo-de-vida que nos acostumamos chamar de “a sociedade”. Não estamos criando humanos, e sim, sócios desse mundo.

– Sócios? Que ideia boa essa Fê! É isso mesmo. E essa empresa é uma fábrica de ilusões. Se pensar, a vida diária não é real, tal como acreditamos que seja. A realidade ou o mundo que todos compartilhamos é apenas uma descrição. E desde o momento que uma criança nasce, isso é inculcado nela.

– Horácio, pensa bem. Todos que passam na vida de uma criança é um chefe. Talvez, melhor ainda, são professores ou mestres. Pessoas que lhe descrevem o mundo sem cessar, e não param de fazê-lo e de corrigir até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo conforme descrito. Aí, pronto! Temos um novo sócio! Ela começa a interpretar o mundo conforme a descrição que fizeram durante toda vida, e passamos a dar nosso ok sempre que estiver correto.

– Por isso, voltando ao nosso papo do início, temos que criar emoções que possibilitem sempre o surgimento de outras interpretações. Ou fica como é com 99% das pessoas, raramente os fatos são postos em dúvida ou indagados. Esta sociedade pode trazer tudo isso que falamos aqui, mas ao fim ela é, principalmente, uma sociedade de obedientes.

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