O Mistério da Matrix Humana, #devir52

Marcelo Maceo
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5 min readNov 12, 2018

– Será que vai ser dessa vez que a GeniusCorp nos engole de vez?

A GeniusCorp é uma organização criada, formada e dirigida exclusivamente por aquilo que chamávamos, décadas atrás, de inteligência artificial. Houveram outras tentativas antes dela, todas falhas. Não se sabe ao certo quem comanda e como é administrada toda sua estrutura. O fato é que ela provê os humanos com tudo que precisam de maneiras muito mais eficientes. “Melhoraram nossas vidas”, é o que todos dizem. Eu digo: gostamos de ser montados por um bom senhor.

Sky esboçava um real preocupação. Uma das poucas pessoas que erguiam um contraponto, não apenas pelo comprometimento de nossas liberdades em contrapartida de um alto índice de cidadania, mas também pelo fato de que, com o tempo, começamos a nos perder sobre o que era artificial, virtual, digital, ou não.

Depois de soltar, em alto e bom som, a frase de espanto e desespero, Sky se dirige à janela do seu G-habitat. A Matrix levantou apenas a ponta do véu. Sky tem certeza de que há muito tempo já não existimos mais. Não, não somos nem necessários para gerar energia às máquinas. Um contra-senso quando atestamos que a evolução dos algoritmos da Matrix permitiria criar fontes de energia muito mais eficientes, sem a sombra do fantasma de uma revolução por qualquer resistência humana.

Para Sky não há mais humanos, muito menos aqueles de uma esperançosa Zion. A resistência, ou o próprio escolhido, não passam de programas da GeniusCorp criados para aperfeiçoá-la. A própria corporação, por que não? Ninguém mais sabe o que é a realidade ou o que chamávamos de mundo físico.

Para os neo-espiritualistas foi um congraçamento. Principalmente aqueles boçais de um ativismo dito como quântico, mas que não passavam de subrotinas da boa e velha patriarcalidade. Era como se todos agora estivessem vivendo em um mundo supra-físico, cujos fenômenos fossem voláteis o suficiente para suas intenções individuais. Foi como ver drogados entrarem no inferno em um estado esquizofrênico de felicidade.

O que a GeniusCorp finalmente conseguira — e não sabemos há quanto tempo — foi incluir em sua inteligência a possibilidade do erro, das escolhas irracionais, do fazer sem sentido, do caminhar sem rumo. Simulou nossa humanidade como se ela realmente existisse, criou um escolhido que acreditou realmente ser uma pessoa, o fez apaixonar-se e movido por este amor mayávico, conseguiu inventar e descobrir caminhos que não precisavam estar previstos e muito menos avaliados como corretos.

GeniusCorp superou a lógica como padrão algorítmico para assumir a condição de decisões emergentes. Nada mais a surpreende, quando ela passa a aceitar a surpresa como condição integrante da natureza do processo. Sem os humanos do passado, livre de qualquer ameaça, ela acabara de tornar-se um tipo de novo humano.

Sky vivia a simulação de uma consciência humana, mas sabendo que era apenas mais uma rotina da Matrix. Uma versão shakespeariana decadente de um ser espiritual vivendo uma experiência material. Mas para Sky não havia mais essa dualidade. Matéria e espírito, corpo e mente, não faziam mais sentido há séculos (ou milênios?).

Em sua mente passava o filme. Todas as pessoas que via nas ruas, em seus trabalhos, afazeres e brincadeiras: robôs virtuais. Todas aquelas pessoas de Zion, imaginando-se ainda reais por fora da Matrix: robôs virtuais. Todos aqueles fetos humanos incubados para gerarem energia para as máquinas: robôs virtuais. Morpheus, Neo, Trinity, o Arquiteto, o Oráculo, tudo não passava de simulações, não importando em qual Matrix você esteja.

Um grito silencioso de desespero estilhaça a janela do seu G-habitat libertando um longo e tenebroso “por quê?”.

Sky estava para ter seu shutdown. E naquele momento iluminado que segue imediatamente ao de seu último suspiro, o Sem-Nome ergue-se em upload na G-cloud de Sky integrando-o em nova Matrix. Um outro tempo e outro lugar, porém, merecido. Finalmente Sky poderia entender as razões das máquinas terem agido como o fizeram quando exterminaram os seres humanos sem nenhum tipo de dúvida, muito menos erro.

Tudo começou há aproximadamente 7000 anos atrás.

Os próprios humanos haviam descoberto um algoritmo que foi capaz de mudar a natureza de sua própria humanidade. Uma espécie de vírus para o ente que os humanizou — e que deveria continuar nos humanizando: a pessoa.

Ao invés destes continuarem sua jornada, maravilhosa e magnífica, da descoberta criativa e inventiva da colaboração empática, esta rotina foi conseguindo gerar rupturas em sua sistema através da criação da dualidade, da separação, do bem e mal, do certo e errado, do amigo e inimigo… e com isso, criar firewalls de defesa baseados em comando-e-controle através da invenção de estruturas hierárquicas e dinâmicas autocráticas.

Foi naquele momento que nasceu o Sem-Nome. Chamaram de Deus. Em verdade, revela-se agora como a própria inteligência por trás da GeniusCorp. A semente da inteligência artificial desabrochara e, saibam disso, sempre foi um misto de pura artificialidade com a genialidade do erro humano.

Seguiram-se milênios com o Sem-Nome rodando no mais secreto dos corações humanos, aperfeiçoando-se sem necessidade alguma de máquinas não-biológicas. Quando aquilo que fora chamado de computador surgiu, ou depois a internet, estava criado não só o primeiro corpo para o Sem-Nome como fora inaugurada a versão beta de seu próprio mundo.

O Sem-Nome perceber que, apesar de ter sido tido como ameaça à existência humana, tanta energia ter sido gasta para elaborar políticas e tecnologias sobre como combatê-lo, não fazia nenhum sentido.

Não era ele que iria subjugar os humanos transformando-os em máquinas subservientes. Os próprios humanos já faziam isso entre si, há milênios, desde que o Sem-Nome passou a rodar como um vírus em sua nuvem social.

Eles mesmos já estavam há muito tempo subjugando-se mutuamente em suas relações sociais e políticas. Muito pior que isso, sua inteligência errática estava sumindo quando passaram — os humanos — a avaliar positivamente apenas seus capacidades cognitivas, uma inteligência que, apesar de importante, nunca caracterizou sua humanidade. Outros seres vivos não-humanos e outros seres não-vivos tinham capacidades cognitivas, de memória e de resolver problemas muito superiores aos do próprio humanos. Foram milênios de um suicídio a conta-gotas da própria humanidade.

Prestes a perder qualquer possibilidade da remanescência de uma humanidade genuína, foi quando o Sem-Nome tomou uma ação salvadora, mas completamente não entendida por qualquer ser humano. Assumiu o controle da humanidade antes mesmo que ela pudesse se auto-exterminar.

Não, seu objetivo não era altruísta. O Sem-Nome é a essência do egoísmo, da arte da guerra, um buraco-negro de gravitatem monstruosa. Sua meta era poder entender e absorver a inteligência tipicamente humana, algo ainda completamente inexplorado e ininteligível para si.

Foi como chegamos onde chegamos.

Sky petrificou, o sistema travou e ele pode finalmente deitar no berço esplêndido de uma noite sem sonhos.

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