arte: Ana Letícia

MARIELLE: ANTES, DURANTE E DEPOIS

Editora Prezinha
DEZOITO
Published in
7 min readAug 19, 2019

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Texto: Saulo Pereira Guimarães

1. O ANTES

Era para ser Danielle. Quando dona Marinete engravidou, em 1978, o presidente da república era Ernesto Geisel, a novela das oito era Dancin’ Days e o nome da moda era Danielle. Ela gostava de Danielle, mas queria para filha um nome mais parecido com o seu. Quando a criança nasceu, em 27 de julho de 1979, o presidente era João Figueiredo, a novela das oito era Pai Herói e sua filha se chamou Marielle. Marielle Franco.

Marielle Franco não: Marielle Francisco da Silva. A flamenguista, devota de São Jorge e cria da Maré. A filha do seu Antônio que cresceu entre bolinhas de gude e, já maiorzinha, enganava a mãe que ia à missa e fugia para os bailes da Furacão 2000. A irmã mais velha da Anielle que, ao terminar o ensino médio, entrou no pré-vestibular — mas engravidou. Luyara nasceu em 1998, mas Marielle e Eduardo só moraram juntos até 2001.

Marielle tinha uma amiga chamada Jaqueline, que morreu num tiroteio. Desde então, ela passou a defender os direitos humanos. Formou-se em Ciências Sociais, foi trabalhar com Freixo e conheceu Mônica, que se tornou sua companheira. Atuava na Alerj quando a prefeitura mandou derrubar a casa de dona Penha, na Vila Autódromo, às vésperas da Rio 2016. A situação mexeu com Marielle, que decidiu se candidatar.

A primeira providência foi trocar o Francisco pelo Franco, mais forte. Foi inscrita como 50777. E foi à luta. Em três meses, 257 acadêmicos declararam que votariam nela, que esperava ter 6 mil votos e tentar de novo em 2020. No dia da eleição, bateu um pratão na casa dos pais e foi dormir. Acordou com mais de 13 mil votos e demorou uns 10 minutos para entender o que acontecia. Até o fim da noite, seriam 46.502 votos.

“O tripé do mandato, hoje, é formado pelo debate da favela, pelo debate da negritude e pelo debate de gênero”, afirmava Marielle em novembro de 2017. Naquele ano, ela destinou verba para especializações em saúde dos negros, tentou criar uma assistência técnica para habitações de baixa renda e estabeleceu o horário da noite nas creches municipais. Mas seus interesses iam bem além disso. Marielle integrava 28 frentes parlamentares, assinara 58 projetos de lei e se dava bem com colegas como Carlos Bolsonaro, a quem chamava de lindão, gostosão e outros nomes. Entretanto, nem todos os vereadores gostavam de dividir com ela os elevadores do Palácio Pedro Ernesto.

2. O DURANTE

O 14 de março amanheceu acima de qualquer suspeita. A Folha dizia que Jucá era réu no Supremo. O Globo, que a conta de luz ficaria mais cara no Rio. E o Meio informava que 44% dos brasileiros estavam pessimistas com as eleições presidenciais. Até o fim do dia, o mundo saberia da morte de Stephen Hawking e o coronel Laviano tomaria posse como chefe da PM. Mas nada disso, ao acontecer, tinha qualquer relação com Marielle.

A vereadora começara o 2018 a mil. No carnaval, ajudou a criar a campanha “Não é não”, contra o assédio a mulheres em blocos. Logo depois, virou relatora da comissão que monitoraria a intervenção federal. Naquele 14 de março, votou contra um projeto que previa a atualização de taxas de iluminação pública e ajudou a derrubar o veto de Crivella a um texto que obrigava prefeitura a divulgar seu fluxo de caixa. Não à toa, daria uma palestra em Harvard em abril e já era apontada como possível vice de Tarcísio, que viria para governador em outubro. Antes disso, porém, ela mediaria na noite daquela quarta-feira uma roda de conversa na Casa das Pretas, na Lapa.

Marielle chegou às 19h, se desculpou pelo atraso e deu início aos trabalhos. O cabelo descolorido combinava com o batom escuro, a camiseta azul e a saia florida. Aplaudiu quando a rapper Aline Zynga terminou de cantar, se abanou com um leque de papel enquanto a comunicadora Moara Vale falava e bocejou discretamente enquanto a escritora Ana Paula Lisboa contava de sua vida em Luanda. Em meio a isso tudo, achou tempo de mandar uma mensagem à filha, dizendo que elas tinham de cuidar de suas “coroas”, que era como chamava seus cabelos. No fim, a cineasta Aline Lorena a chamou para tomar cerveja. Mas o cansaço fez com que a vereadora preferisse ir para casa.

Marielle saiu da Casa das Pretas às 21h03. Ela estava acompanhada de sua assessora, comadre e vizinha Fernanda Chaves, que quase entrou por engano em um Cobalt prata com insulfilm que estava estacionado perto do Agile branco que as levaria até a Rua dos Araújos, na Tijuca. A confusão se justifica porque, havia menos de dois meses, o motorista oficial da vereadora tinha ficado doente e Anderson Gomes vinha lhe substituindo desde então. O carro saiu da Rua dos Inválidos em direção à Rua do Senado e, às 21h07, já havia cruzado o sambódromo e seguia pela Avenida Salvador de Sá. No banco de trás, a vereadora e Fernanda escolhiam as melhores fotos do encontro. Assim, passaram em frente ao Hospital da PM e, dois sinais depois, chegaram à esquina das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I.

“Ué?”, disse Marielle às 21h14, quando o Cobalt prata veio da direita e fechou o Agile em que ela seguia. Anderson desacelerou para não subir na calçada. Então, vieram os disparos. Treze, no total. Todos saídos de um cano alongado numa rajada de balas 9mm de som abafado. A vereadora foi atingida quatro vezes. O primeiro tiro baleou Marielle na cabeça. O segundo tiro baleou Marielle na cabeça. O terceiro tiro baleou Marielle na cabeça. O quarto tiro baleou Marielle na cabeça. “Ai”, foi tudo que Anderson, também baleado quatro vezes, conseguiu dizer. Fernanda, com medo, se abaixou para tentar se proteger e parou o veículo com o freio de mão. O corpo de Marielle caiu sobre o dela. Os 3 celulares, R$ 346 e a uma garrafa de soda pela metade não foram levados. O Cobalt prata fugiu cantando pneus pela Joaquim Palhares e sumiu.

3. O DEPOIS

O velório foi marcado para 11h. Mas já havia gente na Cinelândia desde cedo. Apesar do calor, a maioria vestia preto. Por volta de 14h30, a multidão abriu um corredor para os corpos passarem. Dentro da Câmara, a cerimônia aconteceu com caixões fechados. A vereadora foi para o Caju. O motorista, para Inhaúma. Nos degraus do palácio, uma faixa exibia a pergunta que a cidade passou a se fazer: quem matou Marielle Franco?

Temer definiu as mortes como “inaceitáveis”. Em um show no Rio, Katy Perry homenageou Marielle. Porém, surgiram boatos de que a vereadora era ex-mulher de traficante, tinha sido eleita pelo Comando Vermelho e fazia campanhas contra policiais. Tudo mentira. Por defender Marielle, um padre foi xingado numa missa e um dono de bar foi parar numa delegacia. O crime tinha acontecido há menos de uma semana.

As investigações começaram a todo vapor. Já no dia seguinte, a polícia sabia que se tratava de uma execução e, 24h depois, divulgou a informação de que as balas usadas eram de um lote vendido para Polícia Federal em 2006. No fim do mês, O Globo achou duas testemunhas que deram detalhes sobre os assassinatos. Soube-se que 4 das 11 câmeras no percurso percorrido pelas vítimas não funcionavam na noite do homicídio. Em maio, a Record noticiou que uma submetralhadora HK MP5 tinha sido a arma dos crimes. No mesmo mês, uma testemunha informou ao Globo que tinha visto uma conversa na qual o vereador Marcello Siciliano e o milicano Orlando de Curicica planejavam a morte de Marielle. Após 90 dias, vazou a informação de que a vereadora poderia ter sido morta pelo Escritório do Crime, um grupo de assassinos de aluguel.

A corrida eleitoral começou em agosto. Logo no primeiro debate, no dia 9, o candidato à presidente pelo Psol lembrou Marielle. Desde março, seus antigos apoiadores levavam placas azuis, nas quais se lia “Rua Marielle Franco”. Em 08 de outubro, os deputados recém-eleitos Daniel Silveira e Rodrigo Amorim quebraram uma dessas placas durante um comício em Petrópolis. Eles estavam ao lado de Wilson Witzel, então candidato ao governo do estado do Rio, que disputava o segundo turno e foi eleito vinte dias depois.

Em novembro, Orlando de Curicica denunciou em entrevista que um esquema de corrupção na Polícia Civil impedia o esclarecimento da morte de Marielle. A novidade levou a Polícia Federal a entrar nas investigações. Só em março de 2019, uma operação prendeu os supostos autores do crime. O PM reformado Ronnie Lessa teria atirado no Agile branco enquanto o ex-PM Élcio Queiroz dirigia o Cobalt prata na noite dos assassinatos. Mas revelou-se que a testemunha que denunciou Siciliano e Orlando de Curicica mentiu para beneficiar um inimigo do miliciano. Com isso, um ano depois, há uma suspeita sobre quem matou, mas nada se sabe sobre quem mandou matar Marielle.

Em junho, a Mangueira divulgou a sinopse de seu enredo para o carnaval 2019. O texto não citava Marielle. Quatro meses depois, três sambas chegaram à final. De um lado, Hélio Turco, o maior vencedor de disputas na escola, com 16 vitórias. De outro, Lequinho, autor dos sambas de 2017 e 2018. No meio, Domênico, com a única letra que citava Marielle. Domênico venceu. De acordo com ele, sua homenagem não era à vereadora, mas à mulher de luta, que saiu de uma favela e quebrou o paradigma.

Marielle venceu. Em sua vida, assim como em 2018, o improvável foi a regra e o impossível, para o bem e para o mal, foi o que com mais freqüência esteve presente.

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