Saúde Mental LGBTQIA+

Henrique Barreto
Dafiti Group
Published in
10 min readOct 8, 2020

English version here

Em 1922, foi instituído pela Federação Mundial de Saúde Mental (World Federation for Mental Health) o Dia Mundial da Saúde Mental, que
é comemorado em 10 de outubro. A Organização Mundial da Saúde considera o tema como prioritário devido a grande incapacidade que
o transtorno mental pode causar. Para a OMS, saúde mental vai além da ausência de doenças psicossomáticas, pois se caracteriza por um bem-estar em que o indivíduo reconhece suas capacidades e limitação, tem senso de pertencimento à comunidade e conhece seu papel social.

Desde 2014, a ABP — Associação Brasileira de Psiquiatria — em parceria com a CFM — Conselho Federal de Medicina — realiza nacionalmente
o Setembro Amarelo. O dia 10 de setembro é, oficialmente, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Hoje, o Brasil registra cerca de 12 mil suicídios todos os anos, são mais de 1 milhão no mundo todo, principalmente entre
os jovens. 96,8% dos casos de suicídio estão relacionados a transtornos mentais, como depressão e transtorno bipolar e em seguida o abuso de substâncias.

A população LGBTQIA+ tem uma taxa altíssima de suicídio, pois também tem maiores chances de desenvolver problemas mentais de cunho dos humores — como depressão, síndrome do pânico, ansiedade, dentre outro — em decorrência do preconceito, lgbtfobia, segregação, marginalização e de sua existência constantemente negada, tanto nos aspectos do afeto quanto no desejo. Tudo isso ocorre dentro de uma cultura binária, ou seja, que só enxerga duas possibilidade de gênero — o masculino e o feminino — e que só aceita por padrão os relacionamentos heterossexuais de pessoas cis (que se identificam com o seu sexo designado no nascimento) e ignoram a existência de pessoas trans, intersexuais, não-binárias e com relacionamentos homoafetivos.

DFTalks - Trabalhamos juntos pelo bem comum

Para chamar atenção a este tema aqui na Dafiti, o DFT Pride — nosso grupo de afinidade LGBTQIA+ — convidou dois profissionais de psicologia, o Renan Santos e a Jeniffer Lopes, para um bate-papo sobre prevenção ao suicídio e saúde mental LGBTQIA+.

O Renan é psicólogo, escritor, produtor cultural e colunista e a Jeniffer atua como psicóloga clínica e colaboradora do ambulatório transdisciplinar de identidade de gênero e orientação sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo. Os dois, formados pela FMU, formaram um grupo universitário para debate e discussões sobre questões da sexualidade e dedicaram seu TCC para o estudo de caso de uma mulher trans de dezesseis anos, trazendo como pano de fundo a psicanálise e a transexualidade, comparando o que existe na literatura psiquiátrica sobre pessoas trans com a realidade vivida por elas.

Um pouco de História

Um dos maiores marcos da comunidade LGBTQIA+ foi a Revolta de Stonewall, em 1969. O evento foi uma série de manifestações em protesto
à perseguição e repressão da polícia contra travestis, homossexuais e drag queens no bar Stonewall Inn em Greenwith Village, Nova York. Até meados de 1962 qualquer prática homossexual era considerada crime em todos os estados americanos, o que incluía homens que se vestissem de mulher.

Para saber mais: Como a revolta de Stonewall, em 1969, empoderou o ativismo LGBT para sempre

Antes de existir um senso de comunidade, não existia o termo homossexualidade. O termo começou a ser utilizado quando a medicina passou a dar nome às pessoas que se relacionavam com pessoas do mesmo sexo, classificando a prática como homossexualismo. O sufixo “ismo”
é usado como conotação de doença, a homossexualidade era tratada clinicamente como transtorno mental entre o século XIX e início do
século XX.

Diante disto, inicia-se uma perseguição sobre as pessoas homossexuais, onde a polícia exercia força coercitiva sobre essas pessoas, levando elas para clínicas psiquiátricas para que a medicina e a psicologia pudessem tratar esse transtorno. Os tratamentos muitas vezes eram torturantes, com drogas, banhos quentes, tratamento de choque e até lobotomia, levando alguns “pacientes” ao óbito.

Enquanto a perseguição ocorria e dava-se nome à essas práticas, essas pessoas começam a se perceber enquanto comunidade e iguais. Na época sequer existia a noção de uma sigla LGBTQIA+, apesar dessas pessoas sempre terem existido, não existia definições claras e que as unissem debaixo de uma mesma bandeira.

A psicologia, nesse período, acaba reforçado o preconceito, homofobia e transfobia. A literatura médica só começa a entender melhor essas pessoas na década de 80 com pressão da comunidade. É nesse período que começam
a surgir as primeiras Paradas LGBTQIA+ pelo mundo e grupos como o Grupo Gay da Bahia, que se organizam na defesa dos direitos da população LGBTQIA+ e contribuem para o levantamento de dados estatísticos sobre
a lgbtfobia.

Saúde mental

A doença não está nas pessoas LGBTQIA+, mas na sociedade. Não
é doença do comportamento, da sexualidade ou do gênero, mas sim doenças derivas do preconceito, a depressão, a disforia, o suicídio. É importante falar sobre essa contextualização porque normalmente jogamos toda
a responsabilidade para o indivíduo que sofre do transtorno mental, dizemos que ele precisa procurar psicólogo, psiquiatra, tentar ficam bem, fazer reiki, yoga, meditação. Sim, o individuo deve buscar sua saúde mental, mas
a sociedade tem muito impacto sobre ela.

“A doença não está nas pessoas LGBTQIA+, e sim na sociedade.” Renan Santos

Alguns dados apontam que atitudes simples, de puro respeito, podem ajudar a melhorar a saúde mental dessas pessoas. Tratar um pessoa trans pelo pronome que ela se reconhece e pelo seu nome social diminui a taxa de suicídio em até 40%. O mesmo acontece entre homossexuais, lésbicas
e bissexuais jovens e adolescentes que tem uma família que dá suporte, que apoia e acolhe sua sexualidade, esses possuem até 60% menos chances de desenvolver uma doença mental, seja idealização suicida ou transtorno de humor e isso é apenas um pequeno recorte de como a sociedade é agente direta desses transtornos.

LGBTQIA+ são suscetíveis a criar um mundo interno muito fragilizado, pois as experiências que vivenciam no mundo externo são constantemente somadas e ficam marcadas em algum lugar dentro de cada um. O olhar do outro sobre essas existências, a repulsa e toda a angustia se manifestam em diversos momentos e nas mais variadas formas: ansiedade, tristeza, excesso ou falta de alimentação e etc.

Quadro O grito, de Edvard Munch

Criando lugares

A homossexualidade deixou de ser doença em 1990, mas
a transexualidade só foi despatologizada em 2019, entretanto, transexuais ainda são obrigadas a passar por 2 anos de terapia e contar com laudo psiquiátrico para serem validadas.

Devo salientar que travestis e transexuais são extremamente marginalizadas ainda hoje e por isso muitas vezes se encontram esgotadas psicologicamente, com feridas profundas. A expectativa de vida dessa população é de apenas 35 anos e precisamos constantemente nos questionar
a respeito do papel que nós enquanto sociedade desempenhamos para este dado.

“Não podemos mais aceitar que a expectativa de vida de um grupo em nossa sociedade seja de 35 anos!”. Jeniffer Lopes

Quando se pensa em saúde mental dentro de um contexto social, entende-se que saúde mental também é acolher, criar oportunidades, criar lugares
e proporcionar dignidade
. É falar sobre coisas básicas como o direito de usar um banheiro, de ter acesso à documentos coerentes com sua identidade de gênero. Precisamos desenvolver empatia e compreender que as dificuldades das pessoas LGBTQIA+, passam por realidades que podem ser bem diferentes das nossas.

Olhando para o mercado de trabalho, quando uma empresa desenvolve um programa que visa atrair talentos LGBTQIA+ e sobretudo inserir pessoas trans no mercado de trabalho formal, é necessário estar atento às diversas particularidades que permeiam esse grupo, que vão desde a questões socioeconômicas, onde podemos citar o suporte para locomoção até o local de trabalho, preparação do ambiente para recebê-las — e aqui falo não só das pessoas da empresa empregadora, mas do condomínio que vai receber essa pessoa e pedir identificação — até o suporte com questões básicas de higiene, vestimenta e saúde.

Enfatizei pessoas transexuais, mas muitas vezes essa é uma realidade que se estende para outros protagonistas da sigla, pois se trata de uma população que muitas vezes não tiveram as mesmas oportunidades e foram expulsas cedo de casa, rejeitados por familiares, amigos e sociedade. São pessoas que durante os anos escolares eram hostilizadas por serem afeminadas demais ou masculinizadas demais — de acordo com o imaginário estético padrão da nossa cultura — pessoas que nem mesmo conseguiram ter acesso
à faculdade por que não conseguiram finalizar o estudo básico diante da opressão do ambiente escolar.

“Por mais que a gente esteja distante socialmente, a gente não está tão distante subjetivamente. A gente pode não ter sido expulso de casa, mas
a gente teve medo de ser. A gente pode não estar com depressão agora, mas
a gente já sentiu o impacto da rejeição, o impacto do medo, a paralisia que
o medo trás, o apavoramento e a gente não se esqueceu… a gente pode chegar em casa e ter uma crise de pânico.” Renan Santos

Impactos da Pandemia

Durante a pandemia da covid-19 diversos foram os impactos sobre a população em geral. Uma pesquisa realizada pelo coletivo #VoteLGBT+ em parceria com a BOX1824, em junho de 2020, aponta que mais de 42,72% dos mais de 10 mil LGBTQIA+ entrevistados destacam piora na saúde mental diante no período de quarentena, reclusão social e estabelecimento de novas regras de convívio.

Enquanto 5,8% da população brasileira sofre de depressão e 9,3% sofre com ansiedade, a pesquisa aponta que +28% dos LGBTQIA+ foram diagnosticados com depressão antes da quarentena e dentre eles, 47% foram classificados com o risco de depressão no nível mais elevado (levando à sérios riscos de suicídio).

“Acho que toda a situação que está acontecendo, ela nos abala de certa forma, cada um dentro das suas possibilidades, necessidades e modo de ser.
O emocional já não é o mesmo, pois o clima de tensão, luto e incerteza se faz presente diariamente e mesmo quando dizem que não nos atingiu diretamente, por não termos testado positivo, a pandemia já nos acertou em várias faces.” Mulher cis branca lésbica

Tanto o convívio social e o familiar foram afetados. O sentimento de solidão atinge + de 11% dos entrevistados que se viram afastados de sua rede de apoio. Aqueles que ainda vivem com a família que não os aceitam se viram confinados 24 horas por dia dentro de um ambiente em que sofrem diversas formas de violência (verbal, moral, psicológica e até física)

O estudo mostra que para entender porque os temas ligados à esfera social são apontados como o segundo maior impacto da pandemia para esta população, é preciso levar em consideração o quanto a exclusão e o isolamento já estão presentes na trajetória de vida de pessoas LGBTQIA+.

Fonte: #VOTELGBT

Veja o estudo completo clicando aqui: https://www.votelgbt.org/pesquisas

Não existe uma fórmula

Quando questionados sobre como podemos auxiliar e apoiar quem está enfrentando uma depressão ou desenvolvendo sentimentos suicidas, o Renan e a Jeniffer rebatem que não existe uma fórmula mágica, uma técnica, mas que a escuta pode ser importante, buscando as próprias referências
e acolhendo, mas também entendendo qual o nosso limite, seja ele financeiro ou emocional, questionar-se sobre estar preparado para receber aquele tipo de conteúdo que a pessoa vai trazer. É importante respeitar esse limite e ser honesto e honestidade (com afeito e carinho) é algo que ela está procurando.

Fonte: Instituto Palaguás

Na impossibilidade de poder ajudar de maneira mais ativa, oferecer um auxílio para procurar uma ajuda médica especializada sempre é bem-vindo. No mercado existem profissionais e núcleos de apoio psicológico voltados para atender a população LGBTQIA+, e além de alguns profissionais realizarem atendimento social, também existe atendimento gratuito em faculdades de psicologia.

“Escutar é uma calar-se: uma atitude onde você cala a sua realidade e escuta a realidade do outro e tenta ouvir o sofrimento que está por trás.” Renan Santos

A Jeniffer ainda faz um alerta: “Está tudo bem tomar remédio”. A psicóloga desmistifica a crença de que remédios psiquiátricos são para “doidos”, o corpo e a mente muitas vezes precisarão de auxílio químico para se reestabelecer.

Quer saber mais sobre o assunto ou precisa de ajuda psicológica profissional para você ou um amigo? Procure o Renan ou a Jeniffer nas redes sociais:

Renan S. — Instagram: @renan.img; Whatasapp: +55 11 9 8497–9721
Jeniffer L. — Instagram: @psi_jenifferlopes; Whatsapp: +55 11 9 4845–6744

Este evento foi realizado no dia 24 de setembro de 2020, remotamente via Zoom e transmitido ao vivo no Workplace para os colaboradores da Dafiti Brasil, respeitando os protocolos de isolamento e distanciamento social da pandemia do covid-19.

Links recomendados:

Mental Health Foundation: <https://www.mentalhealth.org.uk/publications>

Campanha Setembro Amarelo: <https://www.setembroamarelo.com/>

Grupo Gay da Bahia — GGB: <https://grupogaydabahia.com.br/>

#VOTELGBT. Disgnóstico LGBT+ na pandemia. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www.votelgbt.org/pesquisas>.

CARDOSO, Michelle Rodrigues; FERRO, Luís Felipe. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Paraná, 2012. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932012000300003>

MELO, Dayana Souza de; SILVA, Bianca Luna da; MELLO, Rosâne. A sintomatologia depressiva entre lésbicas, gays e transexuais: um olhar para a saúde mental. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <file:///C:/Users/henrique.barreto/Downloads/41942–155454–1-PB%20(1).pdf>

BRANQUINHO, Bruno. Opressão da sociedade potencializa impactos na saúde mental. In: Carta Capital. São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/saudelgbt/opressao-da-sociedade-potencializa-impactos-na-saude-mental-de-lgbts/>

GERMANO, Carlos. Estudo da UFPB avalia impactos do isolamento na saúde mental da comunidade LGBTTQI+. In: Universidade Federal da Paraíba — UFPB. João Pessoa, 2020. Disponível em: <https://www.ufpb.br/ufpb/contents/noticias/estudo-da-ufpb-avalia-impactos-do-isolamento-na-saude-mental-da-comunidade-lgbttqi>

PAIVA, Vitor. Como a revolta de Stonewall, em 1969, empoderou o ativismo LGBT para sempre. In: Hypennes. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2018/06/como-as-revoltas-de-stonewall-na-ny-de-1969-empoderou-o-ativismo-lgbt-para-sempre/>

CALFAT, Elie Leal de Barros. Dia Mundial da Saúde Mental. In: Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Disponível em: <https://www.santacasasp.org.br/portal/site/pub/12928/dia-mundial-da-saude-mental>

#VamosJuntes

--

--