A alfabetização midiática é a solução?
Se não formos cuidadosos, a “alfabetização midiática” e o “pensamento crítico” serão simplesmente implantados como uma afirmação de autoridade sobre a epistemologia.
Enquanto criança, a gente toma certas coisas como verdades. Isso acontece com todo mundo. Afirmações como: a democracia é boa; a guerra é ruim; todos os seres humanos são iguais; desde cedo são estabelecidas como senso comum.
Meu pai é professor e sempre me incentivou a questionar tudo. No entanto, aprendi rapidamente que algumas perguntas eram tabus. A democracia é realmente boa? As pessoas realmente são iguais? Deus existe? Logo, a gente vai aprendendo ao longo da vida que não existem verdades absolutas e que o conceito de verdade varia de acordo com o contexto em que você está inserido. No ano passado, eu me deparei com o termo alfabetização midiática e criei um respeito muito grande por sua idéia central. Como escreveu Renee Hobbs, a alfabetização midiática é a
“Pesquisa ativa e o pensamento crítico sobre as mensagens que recebemos e criamos”
O campo fala sobre o desenvolvimento de competências ou habilidades para ajudar as pessoas a analisar, avaliar e até criar meios de comunicação. Acredita-se que a alfabetização midiática é fortalecedora, permitindo que os indivíduos usem as ferramentas midiáticas para ajudar a criar uma sociedade democrática. Mas fundamentalmente, é uma forma de pensamento crítico que pede às pessoas que duvidam do que elas estejam vendo. E, de alguma forma, isso me deixa nervoso.
A maioria dos defensores da alfabetização midiática diz que a alfabetização midiática não existe nas escolas. E é verdade que a versão ideal que eles estão buscando definitivamente não existe. Mas pensa, quando os alunos são orientados a fazer uma pesquisa na internet, eles geralmente são orientados a não confiar na Wikipédia; ao invés disso, usar o Google e conferir em mais de uma fonte”.
A alfabetização midiática é regularmente proposta como a “solução” para o chamado problema das “notícias falsas”. Eu ouço isso de jornalistas, professores, empresas de mídia social e autoridades governamentais, tanto no Brasil quanto fora. Monica Bulger e Patrick Davison acabaram de divulgar um relatório sobre alfabetização midiática à luz de “notícias falsas” dadas as lacunas nas conversas atuais. Eu não sei qual versão da alfabetização midiática eles estão imaginando, mas tenho certeza que não é a versão da "não confie na Wikipedia". Eles freqüentemente argumentam pela necessidade de combater a propaganda, fazer os estudantes perguntarem de onde o dinheiro está vindo, perguntar quem está escrevendo as histórias para quais propósitos, saber como checar, etc. Eles falam sobre os mercadores ou sobre a InfoWars ou sobre os russos. Eles zombam de “fatos alternativos”. Embora eu me identifique como progressista, estou profundamente preocupado com a forma como as pessoas entendem esses diferentes fenômenos conservadores e o que eles vêem a alfabetização midiática como solução.
Eu entendo que muitas comunidades progressistas estão em pânico com a mídia conservadora, mas vivemos em uma sociedade polarizada e me preocupo com a forma como as pessoas julgam pessoas que não entendem ou respeitam. Parece-me também que a versão estreita da alfabetização midiática que ouço como a “solução” supostamente resolve magicamente nossa divisão política. Não vai.
No episódio de hoje pretendo interrogar algumas das bases sobre as quais a educação das pessoas sobre a paisagem da mídia depende. Em vez de partir disso do ponto de vista idealizado, estou tentando abordar isso da perspectiva de onde boas intenções podem dar errado, especialmente em um momento em que versões da alfabetização midiática e do pensamento crítico estão sendo propostas como a solução para as principais questões socioculturais. Quero examinar a instabilidade do nosso ecossistema midiático atual para, então, voltar à questão de: em que tipo de alfabetização midiática deveríamos estar trabalhando?
Guerra Epistemológica
Em 2017, a socióloga Francesca Tripodi tentava entender como as comunidades conservadoras davam sentido às palavras aparentemente contraditórias que saíam da boca do presidente dos EUA. Ao longo de seu percurso, ela encontrou pessoas falando sobre como entender a Palavra ao referenciar seus discursos. Ela começou a acompanhar as pessoas em seu estudo para seus grupos de estudos bíblicos. Então clicou. Treinados em interrogar criticamente textos bíblicos, as comunidades conservadoras evangélicas não estavam tomando as mensagens de Trump como texto literal. Eles estavam interpretando seus significados usando o mesmo referencial epistemológico que abordavam a Bíblia. Metáforas e construções importam mais do que a precisão das palavras.
Por que valorizamos a precisão na linguagem? As pessoas da elite se tornaram elite ao dominarem a linguagem marcada como elite. Acadêmicos, jornalistas, executivos de empresas, políticos tradicionais: todos eles dominam a arte da comunicação.Eu mesmo nunca esquecerei de ser acusado de falar como uma elite pelos meus colegas de escola quando sentei num boteco depois de um semestre na faculdade de jornalismo.
As habilidades lingüísticas e de comunicação não são universalmente valorizadas. Aqueles que não se definem através dessa habilidade detestam ouvir a parada interminável de pessoas ricas e poderosas, sugerindo que são estúpidos, atrasados e, de certo modo, menores. As pessoas que rejeitam “o establishment” ficam extremamente felizes em ver as elites tremerem sobre suas instituições sendo desmanteladas. É por isso que esta é uma guerra cultural.
Todos acreditam que fazem parte da resistência.
Mas o que está na raiz dessa guerra cultural? Cory Doctorow me fez pensar quando escreveu o seguinte:
Nós não estamos vivendo uma crise sobre o que é verdade, estamos vivendo uma crise sobre como sabemos se algo é verdade. Não estamos discordando dos fatos, estamos discordando da epistemologia. A versão “establishment” da epistemologia é: “Usamos evidências para chegar à verdade, verificadas por verificação independente (mas confie em nós quando lhes dizemos que tudo foi independentemente verificado por pessoas que eram corretamente céticas e não os amigos do peito da pessoas que deveriam ser checagem de fatos) ”.
O método epistemológico dos “fatos alternativos” é o seguinte: “Os especialistas independentes que deveriam estar verificando a verdade baseada em evidências estavam realmente na cama com as pessoas que deveriam estar checando os fatos. No final, tudo é uma questão de fé: você tem fé em que “seus” especialistas estão sendo sinceros ou tem fé de que somos. Pergunte ao seu instinto, qual versão parece mais verdadeira?
Sejamos honestos — a maioria de nós, educadores, está profundamente comprometida com uma maneira de saber que está enraizada na evidência, na razão e no fato. Mas quem decide o que constitui um fato? Nos círculos da filosofia, os construtivistas sociais desafiam princípios básicos como fato, verdade, razão e evidência. No entanto, não é necessário um doutorado em filosofia para desafiar o modo dominante de construir conhecimento. Há 75 anos, evidências sugerindo que os negros eram biologicamente inferiores eram usadas regularmente para justificar a discriminação. E isso foi chamado de ciência!
Em muitas comunidades indígenas, a experiência supera a ciência ocidental como a chave para o conhecimento. Essas comunidades têm uma maneira diferente de entender tópicos como clima ou medicina. A experiência também é usada nos círculos ativistas como uma forma de buscar a verdade e desafiar o status quo. As epistemologias baseadas em experiências também se baseiam em evidências, mas não no tipo de evidência que seria reconhecida ou aceita por aqueles nas comunidades científicas ocidentais.
Aqueles cuja visão de mundo está enraizada na fé religiosa, particularmente nas religiões abraâmicas, recorrem a diferentes tipos de informação para construir conhecimento. Conciliar o conhecimento científico e o conhecimento baseado na fé nunca foi fácil; essa tensão tem inúmeras ramificações políticas e sociais. Como resultado, a sociedade ocidental há muito dança em torno desse abismo e tenta encontrar soluções que pudessem agradar a todos. Mas você não consegue resolver diferenças epistemológicas fundamentais por meio de compromisso.
Não importa a visão de mundo ou o modo de conhecer alguém que seja querido, eles sempre acreditam que estão se engajando no pensamento crítico ao desenvolver um senso do que é certo e errado, verdadeiro e falso, honesto e enganador. Mas muito do que eles concluem pode estar mais enraizado em sua maneira de conhecer do que qualquer fonte específica de informação.
Se não formos cuidadosos, a “alfabetização midiática” e o “pensamento crítico” serão simplesmente implantados como uma afirmação de autoridade sobre a epistemologia.
Neste momento, a conversa em torno da checagem de fatos já foi devolvida para sugerir que há apenas uma verdade. E temos que reconhecer que há muitos alunos que são ensinados que há apenas um modo legítimo de conhecer, uma visão de mundo aceita. Isso é particularmente complicado no nível universitário, onde os professores não sabem nada sobre como ensinar em várias epistemologias.
Pessoalmente, levei muito tempo para reconhecer os limites de meus professores. E eu ainda tive sorte. Fiz meu ensino médio em uma escola federal. E por isso mesmo, achava que meus professores deveriam ser melhores do que eram. Afinal, eu havia me esforçado muito e prestado uma prova para entrar naquela escola. Logo, eu devia ser ensinado pelas melhores mentes da minha cidade. Agora posso reconhecer que muitos daqueles professores estava simplesmente exaustos, mal pagos e esperando sua aposentadoria.
O cientista político Deen Freelon estava tentando dar sentido ao papel do pensamento crítico para lidar com “notícias falsas”. Ele acabou analisando uma campanha fascinante da Russian Today (conhecida como RT). Seu lema por um tempo foi “questionar mais”. Eles produziram uma série de anúncios como teasers para seu canal. Esses anúncios foram prontamente banidos nos EUA e no Reino Unido, resultando em anúncios adicionais sobre como eles foram banidos e recebendo uma grande cobertura da mídia sobre serem banidos. O que foi tão controverso? Veja um exemplo:
“Quão confiável é a evidência que sugere que a atividade humana impacta na mudança climática? A resposta nem sempre é clara. E só é possível fazer um julgamento equilibrado se você estiver mais bem informado. Ao desafiar a visão aceita, revelamos um lado das notícias que você normalmente não vê. Porque acreditamos que quanto mais você questiona, mais você sabe.
Se você não começar de um lugar onde tem certeza de que a mudança climática é real, isso parece bastante razoável. Por que você não quer mais informações? Por que você não deveria estar envolvido em um pensamento crítico? Não é isso que você é encorajado a fazer na escola? Então, por que isso está sendo um tabu? E para que você não pense que este é um momento para ser condescendente com os negadores das mudanças climáticas, deixe-me mostrar outro de seus anúncios.
“O terrorismo é cometido apenas por terroristas? A resposta nem sempre é clara. E só é possível fazer um julgamento equilibrado se você estiver mais bem informado. Ao desafiar a visão aceita, revelamos um lado das notícias que você normalmente não vê. Porque acreditamos que quanto mais você questiona, mais você sabe.
Muitos ativistas progressistas perguntam se o governo dos EUA comete ou não terrorismo em outros países. Todos os anúncios foram reduzidos porque eram muito políticos, mas o RT conseguiu o que queria: uma campanha publicitária eficaz. Eles não pareciam conservadores ou liberais, mas sim uma entidade de mídia que era “censurada” por fazer perguntas. Além disso, ao cobrir o fato de que eles estavam proibidos, a grande mídia legitimou sua estrutura sob a rubrica de “liberdade de expressão”. Supondo que todos deveriam ter o direito de saber e decidir por si mesmos.
Nós vivemos em um mundo hoje onde nós igualamos a liberdade de expressão com o direito de ser amplificado. Todos têm o direito de serem amplificados? As mídias sociais nos deram essa infra-estrutura sob a falsa imaginação de que, se todos estivéssemos reunidos em um só lugar, encontraríamos um terreno comum e eliminaríamos o conflito. Nós já vimos essa lógica antes. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo pensou que conectar o globo através da interdependência financeira impediria a Terceira Guerra Mundial. Não está claro que essa lógica continua válida.
Para melhor e pior, conectando o mundo através das mídias sociais e permitindo que qualquer pessoa seja amplificada, a informação pode se espalhar em uma velocidade recorde. Não há curadoria verdadeira ou controle editorial. O ônus é do público em interpretar o que vêem e o que ouvem. Como vivemos em uma sociedade neoliberal que prioriza a agência individual, dobramos a alfabetização midiática como a “solução” para a desinformação. Cabe a cada um de nós como indivíduos decidir por nós mesmos se o que estamos obtendo é verdade ou não.
No entanto, se você conversar com alguém que posta desinformação e compartilha notícias inquestionavelmente falsas com frequência, essas pessoas sabem que as informações que compartilham são falsas. Ou eles não se importam se é verdade ou não. Por que eles postam então? Porque eles estão fazendo uma declaração.
As pessoas que postaram este meme (figura 1) não se preocuparam em verificar essa afirmação. Eles não se importaram. O que eles queriam sinalizar alto e claro é que eles odiavam Fernando Haddad e o PT. E essa mensagem foi de fato ouvida alta e clara. Como resultado, eles ficam muito ofendidos quando você diz que eles foram enganados para espalhar propaganda. Eles não acreditam em você por um segundo.
A desinformação é contextual. A maioria das pessoas acredita que as pessoas que eles conhecem são crédulas de informações falsas, mas que elas mesmas estão equipadas para separar o joio do trigo. Há um sentimento generalizado de que podemos verificar e moderar nossa saída desse enigma. Isso irá falhar. Não se esqueça de que, para muitas pessoas neste país, tanto a educação quanto a mídia são vistas como inimigas — duas instituições que estão tentando ter poder sobre como as pessoas pensam. Duas instituições que estão tentando afirmar a autoridade sobre a epistemologia.
Encontrando a pílula vermelha
Em seu livro, The Ambivalent Internet, os estudiosos da mídia Whitney Phillips e Ryan Milner destacam como um segmento da sociedade se tornou tão bem versado em comunicações digitais — memes, GIFs, vídeos, etc. — que eles podem usar essas ferramentas de comunicação para desestabilizar fundamentalmente as estruturas de comunicação e visões de mundo dos outros. É difícil dizer o que é real e o que é ficção, o que é cruel e o que é uma piada. Mas esse é o ponto. É assim que a ironia e a ambiguidade podem ser armadas. E, para alguns, o objetivo é simples: desmantelar os próprios fundamentos das estruturas epistemológicas de elite que estão profundamente enraizadas em fatos e evidências.
Muitas pessoas, especialmente jovens, recorrem a comunidades on-line para entender o mundo ao seu redor. Eles querem fazer perguntas desconfortáveis, interrogar suposições e fazer furos em coisas que ouviram. Bem vindo a juventude. Há algumas perguntas inaceitáveis para serem perguntadas em público e elas aprenderam isso. Mas em muitos fóruns online, nenhuma questão ou exploração intelectual é vista como inaceitável. Restringir a liberdade de pensamento é censurar. E assim surgiram todos os tipos de comunidades para as pessoas explorarem questões de raça e gênero e outros tópicos das formas mais extremas possíveis. E essas comunidades se tornaram escorregadias. Aqueles que estão tendo tais visões odiosas são reais? Ou eles estão sendo irônicos?
No filme de 1999 The Matrix, Morpheus diz a Neo: “Você toma a pílula azul, a história termina. Você acorda na sua cama e acredita no que quiser. Você toma a pílula vermelha, fica no País das Maravilhas e eu mostro a profundidade do buraco do coelho”. A maioria dos jovens não está interessada em acordar em sua cama e acreditar no que quiser, mesmo que a fé cega seja um modo de vida muito tranqüilizador. Eles querem ter acesso ao que é inacessível, saber o que é um tabu e dizer o que é politicamente incorreto. Então, quem não gostaria de tomar a pílula vermelha?
Em algumas comunidades on-line, tomar a pílula vermelha refere-se à ideia de acordar para a maneira como a educação e a mídia são projetadas para enganá-lo na propaganda progressista. Nestes ambientes, os visitantes são convidados a questionar mais. Eles são convidados a se livrar de suas algemas politicamente corretas. Há uma universidade on-line inteira projetada para desfazer ideias aceitas sobre diversidade, clima e história. Provavelmente você já ouviu falar em Olavo de Carvalho e Nando Moura, dois dos formadores de opinião indicados por Jair Bolsonaro como fontes seguras de informação. Se nunca ouviu falar desses caras, sugiro assistir os vídeos abaixo:
Em quem você confia?
A maioria dos brasileiros não confia na mídia. O maior conglomerado midiático brasileiro, as empresas Globo, sempre foram rechaçados pela esquerda, e agora, pela direita. Eu mesmo cresci ouvindo da minha mãe que não deve-se confiar no jornalismo da Globo, muito pelo fato de terem apoiado o golpe militar de 1964. Há muitas explicações para isso — perda de notícias locais, incentivos financeiros, difícil de distinguir entre opinião e reportagem, etc. Mas o que significa encorajar as pessoas a criticarem as narrativas da mídia quando já estão predispostas contra a mídia?
Talvez você queira encorajar as pessoas a pensar criticamente sobre como a informação é construída, quem está pagando por ela e o que está sendo deixado de fora. No entanto, entre aqueles cujo prior é não confiar em uma instituição da mídia, entre aqueles que veem a Globo como “golpista” ou “marxista”, eles já estão lá. Eles estão procurando por falhas. Não é difícil encontrá-los. Afinal, o setor de notícias é formado por pessoas em instituições de uma sociedade. Então, quando os jovens são encorajados a criticar os meios de comunicação, eles saem pensando que a mídia está mentindo. Dependendo do prior de alguém, eles podem até mesmo aceitar o que aprendem como prova de que a mídia está participando da conspiração. É aí que as coisas ficam muito perigosas.
Muitas das minhas mídias digitais e colegas de aprendizado incentivam as pessoas a criar mídia para ajudar a entender como a informação é produzida. Realisticamente, muitos jovens aprenderam essas habilidades fora da sala de aula, à medida que procuram se representar no Instagram, animar seus amigos ou ganhar seguidores no YouTube. Muitos são bastante habilidosos em usar a mídia, mas para que fim? Todos os dias, vejo adolescentes produzirem conteúdo misógino usando as mesmas ferramentas que os ativistas usam para combater o preconceito. É notável que muitos daqueles que defendem pontos de vista extremos sejam extraordinariamente habilidosos no uso da mídia. Os neonazistas de hoje são uma máquina de propaganda digital. Desenvolver habilidades de criação de mídia não garante que alguém as use para o bem.
A maioria de meus colegas acha que, se mais pessoas forem qualificadas e mais pessoas fizerem perguntas difíceis, a bondade verá a luz. Ao falar sobre os mal-entendidos da Primeira Emenda, Nabiha Syed, do Buzzfeed, destaca que a estrutura do “marketplace of ideas” parece ótima, mas é extremamente ingênua. Reduzir o investimento em indivíduos como solução para um abuso sistêmico de poder é muito americano. Mas as melhores ideias nem sempre aparecem no topo. Nervosamente, muitos de nós que acompanham a manipulação da mídia estão começando a pensar que as mensagens adversárias têm mais probabilidade de aparecer do que as bem intencionadas.
Isso não quer dizer que não devamos tentar educar as pessoas. Ou que produzir pensadores críticos é inerentemente uma coisa ruim. Eu não quero um mundo cheio de gente que só segue. Mas eu também não quero ingenuamente assumir o que a alfabetização midiática poderia fazer em resposta a uma guerra cultural que já está em andamento. Eu quero que nós lidemos com a realidade, não apenas com os ideais que imaginamos que um dia poderíamos construir.
Uma coisa é falar sobre interrogar suposições quando uma pessoa pode manter distância emocional do objeto de estudo. É totalmente diferente falar sobre esses assuntos quando o próprio ato de fazer perguntas é o que está sendo armado. Esta não é uma propaganda histórica distribuída pela mídia de massa. Ou um exercício de compreensão do poder do estado. Trata-se de dar sentido a um cenário informacional em que as próprias ferramentas que as pessoas usam para dar sentido ao mundo ao seu redor foram estrategicamente pervertidas por outras pessoas que acreditam estar resistindo aos mesmos atores poderosos que normalmente procuramos criticar.
Dê uma olhada no gráfico acima. Você consegue adivinhar qual termo de pesquisa é esse? Esta é a consulta de pesquisa para “crisis actors”, atores de crise, em uma tradução literal. Esse conceito surgiu como uma teoria da conspiração depois do episódio de Sandy Hook, um tiroteio em uma escola primária nos EUA, em 2012. As comunidades on-line trabalharam arduamente para conseguir que isso acontecesse com a grande mídia após cada tiroteio. Com Parkland, eles finalmente conseguiram. Todas as principais agências de notícias falaram sobre atores de crise, como se fosse uma coisa real ou algo a ser desmascarado. Quando as testemunhas adolescentes do tiroteio em massa em Parkland falam aos jornalistas hoje em dia, eles têm agora que dizer que não são atores de crise. Eles devem negar uma teoria da conspiração que foi criada para dispensá-los. Uma teoria da conspiração que prejudica sua mensagem desde o início. E por causa disso, muitas pessoas recorreram ao Google e Bing para perguntar o que é um ator de crise. Eles rapidamente chegam à página Snopes. Snopes fornece uma explicação clara de por que isso é uma conspiração. Mas agora você está convidado a não pensar em uma coisa que acabou de conhecer.
Você pode simplesmente ignorar isso como uma loucura, mas ter essa narrativa na mídia ajudou a radicalizar mais pessoas. Algumas pessoas continuarão pesquisando, tentando entender o que é o rebuliço. Eles encontrarão fóruns on-line discutindo as imagens de uma mulher morena e se perguntando se pode ser a mesma pessoa. Eles vão tentar entender a luta entre David Hogg e Infowars ou questionar por que o Infowars está sendo restringido pelo YouTube. Eles podem pensar que isso é censura. Sementes de dúvida começarão a se formar. E eles perguntarão se alguma das pessoas articuladas que eles veem na TV pode, na verdade, ser agentes de crise. Esse é o poder das narrativas armadas.
Um dos principais objetivos para aqueles que estão tentando manipular a mídia é perverter o pensamento do público. É chamado de "gaslighting", iluminação a gás, em tradução literal. Você confia no que é real? Uma das melhores maneiras de iluminar o público é vasculhar a mídia. Ao fazer com que a mídia jornalística seja forçada a negar quadros, eles podem confiar no fato de que as pessoas que desconfiam da mídia muitas vezes respondem por auto-investigação. Este é o poder do efeito bumerangue. E tem uma história. Afinal, o CDC percebeu que, quanto mais os meios de comunicação negavam a conexão entre o autismo e a vacinação, mais o público acreditava que havia algo real ali.
O termo “gaslighting” se origina no contexto da violência doméstica. O termo remete a um filme de 1944 chamado Gas Light, no qual uma mulher é manipulada pelo marido de uma maneira que a deixa pensando que é louca. É uma técnica muito eficaz de controle. Isso torna alguém submisso e desorientado, incapaz de responder a um relacionamento produtivo. Enquanto muitos ativistas contra a violência doméstica argumentam que o primeiro passo é entender que a iluminação a gás existe, a “solução” é não lutar contra a pessoa que faz a iluminação a gás. Em vez disso, é sair. Além disso, especialistas em violência doméstica argumentam que a recuperação do gaslighting é um processo longo e árduo, requerendo terapia. Eles reconhecem que, uma vez instilados, a insegurança é difícil de superar.
Embora tenhamos muitos problemas em nosso cenário de mídia, o mais perigoso é como ele está sendo armado para "gaslight" as pessoas. Em outras palavras, estamos sendo controlados a nível psicológico
E, ao contrário do contexto da violência doméstica, não há “sair” que seja realmente possível em um ecossistema de mídia. Claro, podemos falar sobre parar de consumir televisão e sair das mídias sociais, mas quantos de nós consegue fazer isso para essa medida realmente ter algum impacto na sociedade?
Puxando para fora
Então, que papel os educadores desempenham na luta com o panorama da mídia contemporânea? Que tipo de alfabetização mediática faz sentido? Para ser sincero, não sei. Mas é injusto terminar uma conversa como essa sem oferecer algum caminho adiante, então vou fazer um palpite.
Acredito que precisamos desenvolver anticorpos para ajudar as pessoas a não serem enganadas.
Isso é muito complicado, porque a maioria das pessoas gosta de seguir o intestino mais do que a mente. Ninguém quer ouvir que eles estão sendo enganados. Ainda assim, acho que pode haver algum valor em ajudar as pessoas a entenderem sua própria psicologia.
Considere o poder das personalidades do youtube ou da podosfera brasileira. Se você trouxer o Jovem Nerd, a Juliana Wallauer ou qualquer outro anfitrião para sua casa, começará a apreciar como eles pensam. Você pode não concordar com eles, mas constrói um modelo cognitivo de suas palavras, de modo que eles tenham uma lógica coerente para eles. Eles se tornam reais para você, mesmo que não saibam quem você é. Isso é o que os estudiosos chamam de “interação parasocial”. E o engraçado da psicologia humana é que confiamos em pessoas que investimos nossas energias em compreensão. É por isso que a diferença de ponte requer a humanização das pessoas em todos os pontos de vista.
A empatia é uma emoção poderosa, que a maioria dos educadores deseja encorajar. Mas quando você começa a ter empatia com visões de mundo que são tóxicas, é muito difícil ser imparcial. Requer força cognitiva profunda. Estudiosos que passam muito tempo tentando entender visões de mundo perigosas trabalham duro para manter sua distância emocional. Uma tática muito básica é separar os diferentes sinais. Basta ler o texto em vez de consumir a apresentação multimídia dele. Limite o escopo. Tirar as coisas ativamente do contexto pode ser útil para a análise, precisamente porque cria uma desconexão cognitiva. Isso é o oposto de como a maioria das pessoas incentiva a análise cotidiana da mídia, onde o objetivo é apreciar o contexto primeiro. Claro, o truque aqui é querer manter essa distância emocional. A maioria das pessoas não está procurando por isso.
Também acredito que é importante ajudar os alunos a apreciar verdadeiramente as diferenças epistemológicas. Em outras palavras, por que pessoas de diferentes visões de mundo interpretam o mesmo conteúdo de maneira diferente? Em vez de pensar sobre a intenção por trás da produção, vamos analisar as contradições na interpretação. Isso requer um forte senso de como os outros pensam e onde estão as diferenças de perspectiva. De um ponto de vista educacional, isso significa construir a capacidade de realmente ouvir e abraçar a perspectiva de outra pessoa e ensinar as pessoas a entender a visão de outra pessoa, mantendo a visão firme. É um trabalho árduo, uma extensão da empatia em uma prática comum entre os etnógrafos. É também uma habilidade que é aperfeiçoada em muitos clubes de debate. O objetivo é entender as múltiplas maneiras de entender o mundo e usá-lo para interpretar a mídia. É claro que apreciar a visão de alguém que é profundamente tóxico nem sempre é psicologicamente estável.
Outra coisa que recomendo é ajudar os alunos a ver como eles preenchem as lacunas quando as informações apresentadas a eles são escassas e como é difícil superar as prioridades anteriores. As conversas sobre o viés de confirmação são importantes aqui porque é importante entender quais informações são aceitas e quais informações rejeitamos. A atenção seletiva é outra ferramenta, mais conhecida pelos alunos através do “experimento do gorila”. Se você não estiver familiarizado com esse experimento, isso envolve mostrar um vídeo de basquete e se concentrar em contar passes feitos por pessoas de uma camisa colorida e perguntar se eles viram o gorila. Muitas pessoas não. Invertendo esses exercícios de ciência cognitiva, pedir aos alunos que considerem uma fan fiction diferente que preenche as lacunas de uma história com explicações divergentes é outra maneira de treinar alguém para reconhecer como seu cérebro preenche as lacunas.
O que é comum sobre as diferentes abordagens que estou sugerindo é que elas são projetadas para serem exercícios de fortalecimento cognitivo, para ajudar os alunos a reconhecer suas próprias falhas e contradições, não as falhas do panorama da mídia ao seu redor. Eu posso imaginar que isso também pode ser chamado de alfabetização midiática e se você quiser dobrar sua definição dessa maneira, eu aceito isso. Mas a chave é perceber a humanidade em nós mesmos e nos outros. Não podemos e não devemos afirmar a autoridade sobre a epistemologia, mas podemos incentivar nossos alunos a serem mais conscientes de como a interpretação é socialmente construída. E entender como isso pode ser manipulado. Claro, só porque você sabe que está sendo manipulado não significa que você pode resistir. E é aí que minha proposta começa a ficar instável.
Sejamos honestos: nosso cenário de informações ficará cada vez mais complexo. Os educadores têm um papel fundamental a desempenhar ajudando os indivíduos e as sociedades a navegar pelo que encontramos. Mas o caminho a seguir não consiste em dobrar o que constitui um fato ou ensinar as pessoas a avaliar as fontes. Reconstruir a confiança em instituições e intermediários de informações é importante, mas não podemos supor que a resposta esteja ensinando os alunos a confiar nesses sinais. A primeira onda de alfabetização midiática estava respondendo à propaganda em um contexto de mídia de massa. Nós vivemos em um mundo de redes agora. Precisamos entender como essas redes estão interligadas e como a informação que se propaga através de encontros diádicos — mesmo que assimétricos — é entendida e experimentada de maneira diferente daquela produzida e disseminada através da mídia de massa.
Acima de tudo, precisamos reconhecer que a informação pode, é e será armada de novas maneiras. Nos últimos 15 anos, um conjunto de jovens aprendeu a hackear a economia da atenção em um esforço para ter poder e status nesse novo ecossistema de informações. Não são apenas jovens. Eles são jovens desprivilegiados, que sentem que as informações que estão recebendo não são satisfatórias, que lutam para se sentirem poderosos. Eles estão tentando dar sentido a um mundo instável e tentando responder a ele de uma maneira pessoalmente satisfatória. A maioria dos jovens está envolvida em atividades revigorantes. Outros estão fazendo as mesmas coisas que os jovens sempre fizeram. Mas há jovens por aí que se sentem alienados e desprivilegiados, que desconfiam do sistema e querem ver tudo desmoronar. Às vezes, essa frustração leva a fins produtivos. Muitas vezes isso não acontece. Mas até começarmos a entender sua resposta à nossa sociedade de mídia, não seremos capazes de produzir intervenções responsáveis. Então, eu diria que precisamos começar a desenvolver uma resposta em rede para esse cenário de rede. E começa por entender diferentes formas de construir conhecimento.
Este texto é uma adaptação de You Think You Want Media Literacy… Do You?