Carbono Alterado: o verdadeiro inimigo é o capitalismo

Victor Góis
digitalmente
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4 min readMar 3, 2020
Takeshi Kovacs — Sam Wilson

Eu acabei de assistir a segunda temporada de Carbono Alterado, série de ficção científica da Netflix baseada no livro homônimo, do autor Richard Morgan. Para quem não está familiarizado com a história, ela se passa no remoto século XXV, no qual a humanidade conseguiu prosperar para outros planetas, que vivem sob o governo do protetorado, entidade descendente das nações unidas. Apesar de não ficar claro na série, no Fandom de Carbono é dito que o protetorado é uma república constitucional de democracia representativa, muito parecida com as nações ocidentais contemporâneas. É curioso imaginar uma democracia interestelar 500 anos a frente de nós, enquanto a nossa própria tem balançado tanto.

Bom, no mundo de Carbono Alterado, a morte é, na falta de palavra melhor, algo barato. A mente humana é digitalizada em um chip transferível chamado de “stack”, capaz de ser movido de corpo em corpo, ou de capa em capa, como o corpo é chamado na série. Essa transferência é realizada conforme necessário — ou, se você tiver dinheiro, conforme desejado. Os corpos tornaram-se cada vez mais desacoplados das consciências que os ocupam. O futuro de Carbono Alterado, é aquele em que “carne” é apenas outro tipo de economia. Ou seja, a humanidade alcançou a imortalidade, mas essa imortalidade não é para todo mundo. Aliás, apenas as pessoas mais ricas conseguem reencapar com frequência em corpos de sua escolha. Essas pessoas são chamadas de Matusas, em referência ao personagem bíblico Matusalém, aquele que teria vivido quase 1000 anos. Os Matusas, como esperado, ocupam as posições de maior poder dentro da sociedade. São governadores, donos de conglomerados, mega empresários (piada).

Diferentemente de outras ficções científicas, cujo temas centrais giram em torno de questões metafísicas, como o paradigma do simulacro e da simulação e do real versus artificial, Carbono segue outra linha. Apesar de se apoiar em tecnologia e questões filosóficas, como toda bom sci-fi faz, essa é uma história sobre algo muito mais terreno. Essa é uma história sobre luta de classes.

No início do primeiro episódio da série, em uma instalação para reencapamento- o processo de ressuscitar em um novo corpo — dois pais se reúnem com a filha de sete anos assassinada. Só há apenas um problema: a garota agora está no corpo de uma senhora. Nós, como espectadores, nos indignamos com a situação.

Uma jovem em um corpo pelo qual está profundamente despreparada, com pais que não têm recurso, a não ser tentar comprar uma capa que não podem pagar, ou colocar a filha de volta no sono.

Agora imagine uma outra cena. Um hospital. Pai e mãe com uma filha doente. Eles não tem recurso, a não ser hipotecar sua casa para financiar um tratamento para sua filha que não podem pagar, ou colocar a sua filha em sono permanente. Qualquer semelhança com o sistema capitalista neoliberal e o sistema político-econômico de Carbono não é mera coincidência.

Quellcrist Falconer — (Renee Elise Goldsberry)

A luta de classes não está apenas no plano de fundo da trama de Carbono Alterado. Um dos momentos mais importantes da história, onde os dois protagonistas se encontram e se apaixonam, é literalmente um acampamento revolucionário. E o que querem esses revolucionários? Bom, em nenhum momento da história, o autor coloca na boca de seus personagens as palavras capitalismo e comunismo. De maneira sagaz, Morgan evita o que seria um tiro em seu próprio pé. No entanto, os revolucionários, aqui chamados de Quellistas, em referência a sua líder Quellcrist Falconer, lutam para que a vida humana volte a ter uma duração de cerca 100 anos. Com isso, eles buscam um re-equilíbrio entre as classes sociais. O Quellismo, de fato, é algo que está entre uma religião, um movimento político e militar, e todas essas motivações fazem com que esse movimento seja extremamente poderoso e cativante.

Um fenômeno cultural global

Se outros produtos culturais de sucesso atuais como os ganhadores do último Oscar, ‘Parasita’ e ‘Indústria Americana’ criticam exatamente a sociedade capitalista e chamam as pessoas a reconsiderar a frase clássica de Karl Marx não fazem atoa.

“trabalhadores do mundo, uni-vos”

Se a agenda neoliberal se espalha no mundo na velocidade da luz, se aliando a discursos do momento (mostra algumas imagens rápidas), há hoje um fenômeno cultural internacional de oposição a essa agenda. Com Carbono Alterado, o gênero da ficção científica, sempre contestador da realidade e dos dogmas, ganha um representante neste fenômeno cultural de oposição política. A contribuição da obra que Richard Morgan é justamente extrapolar a luta de classes para um contexto muito mais visceral e opressor do que ainda vivemos no planeta Terra e, dessa forma, nos mostrar o quão baixo e fundo a sociedade humana pode chegar.

Se no futuro viveremos para sempre, eu não faço ideia. Talvez a tecnologia não avance até lá e nosso planeta não aguente o que estamos fazendo com ele. Talvez alguns Matusas consigam se salvar e a maioria do povo se foda. Eu prefiro pensar que ainda há um projeto de igualdade no qual vale a pena sonhar e lutar. Um projeto no qual a tecnologia é utilizada para libertação e não para controle. Um contexto diferente, onde conseguimos deixar para trás as antigas e modernas ideologias e superar algumas das questões humanas pelo qual matamos e morremos ao longo dos séculos. (E não, esse projeto não é o anarco-capitalismo)

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Victor Góis
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Pesquiso e produzo sobre cultura digital. Me interesso pela convergência entre comunicação, filosofia, arte, política e tecnologia.