O Ciborgue e o vestido

Donna Haraway e seu manifesto ciborgue: feminismo e marxismo incorporados ao século XXI

Victor Góis
digitalmente
3 min readMar 15, 2018

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Buzzfeed/Reprodução

Eu vou ser sincero com vocês. Eu nunca fui fã de moda. Lembro de ser criança e ver aqueles desfiles pomposos na televisão e me perguntava quem usava aquelas roupas. E se você também é ou era assim, não se culpe. Tem desfiles que realmente são tão fora da nossa realidade que fica difícil até de entender o que estão vestindo. Sério, tem uns desfiles que são muito esquisitos.

Foi só mais tarde que eu consegui entender a relevância de grifes, desfiles e a indústria da moda dentro do contexto da nossa cultura. Quando você entende o poder que um estilista tem de se manifestar culturalmente através de algo que supostamente tem somente a função de vestir, você entende qual é o real potencial disso que chamamos de moda.

Hoje em dia, temos uma oferta virtualmente infinita de estilos de peças de roupa. Mas esse fenômeno é bastante recente. Basta voltarmos há meio século atrás aqui no Brasil. Costureiras e alfaiates eram profissões comuns. A minha avó era costureira. Pessoas compravam peças de pano e encomendavam peças de roupa personalizadas. Até que nos Estados Unidos da década de 50 e no Brasil em 60, surgiu um novo conceito de produção em grande escala, o ready to wear. Ou seja, a partir do processo de industrialização do mundo, nasce também uma indústria indumentária. E no topo dessa indústria está a moda fashion, a alta costura e as grandes grifes.

Contudo, meu propósito neste ensaio não é abordar a história da alta costura e nem da indústria da moda. Eu quero falar sobre um evento que aconteceu recentemente. O desfile outono/inverno da grife italiana Gucci que aconteceu em Milão na última semana me chamou a atenção não somente pelas roupas em si, mas pelo conceito que trazia consigo. Aos desinformados, a grife parecia ter embarcado numa onda fantástica ou estar fazendo uma campanha com um novo filme de ficção distópico. Não poderiam estar mais enganados os que pensaram assim. Há uma base intelectual neste desfile e não é exatamente do tipo ficção científica. A grife usou como base o manifesto ciborgue, ensaio da bióloga e filósofa Donna Haraway, de 1984.

Ciborgue, no conceito de Donna, vale dizer, não é exatamente um robô. Segundo palavras da própria autora:

“Meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades”.

Donna Haraway. monoskop.org/Reprodução

O texto de Donna deve ser lido e entendido em seu contexto: fala de política e de feminismo. Questiona as identidades e defende rupturas nesse sentido, intuindo que elas nos aprisionam de diferentes maneiras. A influência da autora do manifesto no responsável pelo desfile, Alessandro Michele é evidente. Ambos desafiam barreiras e vislumbram a possiblidade de outro mundo, de uma outra relação social. Em um trecho do manifesto, Donna diz

“A imagem do ciborgue pode sugerir uma forma de saída do labirinto dos dualismos por meio dos quais temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos para nós mesmas. Trata-se do sonho não de uma linguagem comum, mas de uma poderosa e herética heteroglossia”.

Os modelos andrógenos e a convivência com o fantástico, presente no desfile, representa a heterogeneidade entre humanos e o artificial. Mais do que isso, com a evolução da tecnologia, a fusão entre real e virtual acaba com o conceito de natural. Portanto, dualismos como Homem/Mulher já não farão mais sentido.

Se Roland Barthes e Pierre Bordieu, nos anos 70, investigavam a relação do consumo de moda com o processo de criação de individualidade, no que é visto no estudo da semiologia, a Gucci este ano mostrou o que a indústria da moda tem de melhor: o potencial de nos fazer sonhar sobre o que é de verdade isto que chamamos de identidade.

Esse texto está disponível na forma de vídeo ensaio em https://youtu.be/KnNn7QNbL9w

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Victor Góis
digitalmente

Pesquiso e produzo sobre cultura digital. Me interesso pela convergência entre comunicação, filosofia, arte, política e tecnologia.