Videogames: diversão, vício e consumo compulsivo

No ano passado, o mundo gastou mais de 100 bilhões de dólares em videogames. No entanto, alguns jogos também têm se mostrado extremamente viciantes, tornando-se um problema social gigantesco. Neste episódio, eu falo sobre alguns potenciais problemas com a indústria de jogos do século XXI

Victor Góis
digitalmente
9 min readJan 10, 2019

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Nesse fim de ano, eu resolvi tirar umas duas semanas de folga. Eu achei que ficar um pouco longe de livros e computador me fariam bem, e, olha, consegui fazer isso por alguns dias. Obviamente, depois de um tempo eu fiquei tão entediado que fui procurar alguma coisa nova pra fazer. O cansaço e desgaste acumulado de 2018 ainda falava mais alto, então descartei qualquer atividade séria.

“Que tal jogar um jogo?”, eu pensei. “Mas qual jogo?”.

Eu sou dono de um playstation 3 de 8 anos de idade que funciona aqui em casa mais como uma central multimídia que transforma a televisão em inteligente para eu e meus pais assistirmos netflix, do que um videogame mesmo. Sem falar no cabo hdmi com mau contato que deixa a tv sem som numa frequência considerável de vezes. Ok, ideia do videogame descartada. Logo, lembrei de um jogo que eu havia instalado ano passado e havia jogado muito pouco, o famoso League of Legends.

League of Legends

Eu sempre vi esses jogos, que hoje são conhecidos como e-sports, com uma visão um pouco preconceituosa, eu admito. Eu tive amigos que jogava DoTa, há, sei lá, 10, 15 anos atrás, e que lá na minha adolescência me apresentaram o jogo. Eu detestei. Achei um jogo complicado, e os jogadores tóxicos, nem um pouco receptivos. Então, voltando para as últimas semanas, diante da falta de opções e, depois de assistir a umas 2 partidas do mundial de lol no youtube, eu resolvi reinstalar o tal do league of legends. Surpreendentemente, eu me viciei e nas últimas duas semanas, eu joguei mais league of legends do que joguei todos os jogos que eu joguei no ano inteiro. Vou confessar que desde o fifa 16, e eu tô longe de ser um jogador sério de qualquer coisa, eu não tinha a experiência de jogar 5 horas seguidas de um jogo. E tanto quanto inesperado a experiência foi bastante interessante pra mim.

Então, quando eu me dei conta que eu precisava continuar o digitalmente e produzir um novo episódio, comecei a pesquisar sobre a relação entre jogos eletrônicos e jogadores.

Como os desenvolvedores de jogos fazem para manter o jogador jogando? Como eles fazem com que nós queiramos voltar a jogar? Como eles fazem para manter os jogadores pagando pelo jogo?

Essas perguntas começaram a aparecer na minha cabeça a medida que eu sentia mais vontade de começar uma partida nova.

Então, a partir dessas perguntas eu comecei a pesquisar e encontrei a seguinte estatística: no ano passado, o mundo gastou mais de cem bilhões de dólares em videogames. Isso é mais do que o dobro do que gastamos indo ao cinema. E isso só tem aumentado. Este será o século dos jogos. E isso significa que têm muita gente que está entrando nesse mercado de cabeça. Muitas pessoas estudando e desenvolvendo projetos, tornando-se artistas, programadores, designers e por aí vai. Contudo, essas profissões não são as mais promissoras dentro deste mercado. Quem realmente está ganhando dinheiro com a indústria de jogos, a atividade que ainda vai deixar muita gente milionária, é, para minha não-surpresa, quem trabalha com a análise de dados dos jogadores. Cientistas, engenheiros, pessoas aptas a modelar padrões de comportamento de dados, automatizar modelos. Cada interação que os jogadores fazem no jogo. Eles registram cada clique. Eles podem estudar motivações, como os humanos reagem aos desafios, às estratégias. Modelos matemáticos que adaptam videogames a jogadores individuais.

Ao longo das décadas, a ascensão dos videogames atraiu muitas críticas. Muito disso se concentrou em como a violência nos jogos nos afeta a longo prazo. E, apesar de ser um tema polêmico e controverso, há estudos suficientes para afirmar que videogames violentos não estão diretamente associados a comportamentos violentos. Então, não existe esse tipo de evidência de que jogos violentos tornam crianças em adultos violentos. Na verdade, os críticos prestaram muito menos atenção a uma coisa muito mais importante com relação aos jogos.

A influência mais imediata dos jogos, em como eles afetam nosso comportamento imediatamente quando os estamos jogando. E essa pode ser a questão mais importante agora, porque nunca gastamos tanto tempo jogando jogos eletrônicos. Eles estão conosco o tempo todo. Os smartphones mudaram onde, como e com que frequência as pessoas jogam — e eles mudaram quem as está jogando. A visão clássica de um jogador típico é, você sabe, um cara entre 15 e 20 anos no seu quarto escuro, com um controle na mão na frente de uma TV, ou na frente de um computador de mesa, e isso simplesmente não é mais o caso.

Hoje, o jogador típico é mais provável se assemelhar a mãe do adolescente no quarto escuro. O maior grupo demográfico de jogadores nos EUA são mulheres adultas. E as pessoas deste grupo não se vêem como jogadores, eles se vêem jogando candy crush ou algum outro jogo casual. Você pode baixar e começar a jogar Bejeweled, Candy Crush ou Clash of Clans na maioria dos celulares e de graça. Muitos deles ganham dinheiro através de microtransações, vendendo coisas para você no jogo.

Quer melhorar a aparência ou as habilidades de seu personagem? Obter uma vida extra ou desbloquear novos recursos? Pague um real ou dois. E assim é o jogo. O maior jogo do planeta, Fortnite, é gratuito e está a caminho de fazer dois bilhões de dólares em 2018.

Em vez de pagar um valor fixo por um jogo, você paga essas pequenas quantias, 1, 5, 10 dólares por itens e recursos novos, o que faz com que as empresas ganham muito mais dinheiro nesse modelo de negócio do que já ganharam de outra forma. No entanto, o dinheiro gasto em muitos jogos não vem de jogadores casuais, vem de um grupo muito pequeno de grandes gastadores, conhecido na indústria por um nome especial: Whales. Uma Whale, no português baleia, é um jogador que gasta muito e joga muito. São jogadores que realmente amam aquele jogo.

Pensando na realidade norte americana, as maiores baleias gastam em torno de US$ 2.000 a US$ 3.000 por mês, em um único jogo. E mesmo as baleias contabilizando apenas uma pequena fração do total de jogadores elas podem gerar mais da metade da receita total de um jogo. O que significa que encontrar e nutrir potenciais baleias é o grande objetivo desse negócio. Agora, como as empresas fazem isso? Eles se voltam para pessoas que trabalham com a análise de dados de jogadores.

Para continuar com a nossa metáfora da vida marinha, você pode chamar jogadores não pagantes, camarões, e gastadores ocasionais “Golfinhos”. Nesse novo ecossistema, jogos são construídos desde o primeiro dia para mover os jogadores para cima da cadeia alimentar. Identificamos quem tem potencial para se tornar usuário pagante, e também aqueles usuários pagantes que têm um forte potencial para se tornar uma baleia.

Quando você usa o Google ou o Facebook, você está consciente que está sendo vigiado, que cada passo seu nas redes sociais é registrado. Mas, quando você está jogando, você pensa que está em seu próprio universo privado e seguro. Na verdade, nós entregamos tanta informação sobre nós enquanto estamos jogando quanto em qualquer ambiente virtual. Toda decisão que você faz em um jogo pode ser rastreada. Se você vira à direita em vez de virar à esquerda, se você pula em vez de abaixar, ou se você clica em um doce azul em vez de um verde, todas estas pequenas decisões, quando somadas, podem dizer muito sobre você.

Agora, isso é verdade para qualquer produto. A publicidade na TV funciona do mesmo jeito. O problema é que a indústria de jogos eletrônicos está operando um pouco mais perto do cérebro humano, trabalhando diretamente com as emoções dos usuários. Isso é algo que precisamos ter cuidado. Essa preocupação tem muito menos a ver com ligações obscuras entre a violência na tela e violência na vida real, e muito mais a ver com vício e os gastos compulsivos.

Então os jogos se tornam uma espécie de caça-níqueis prendendo os seus usuários dando pequenas recompensas de vez em quando mas com uma promessa de um grande pagamento.

A loot box é a metáfora perfeita do caça-níqueis presente em grande parte dos jogos gratuitos atualmente.

Estas são literalmente caixas que você compra com a moeda do jogo, ou com dinheiro real, sem saber o que tem dentro. É fácil ver como isso começa a parecer um problema de jogo. Dependendo do jogo, ela assume uma forma ou nome diferente mas a ideia é a mesma. Você paga, você abre e você ganha. Ou, o que acontece geralmente, você se ferra. A capacidade de sacar dinheiro das pessoas com esses tipo de método tornou-se tão avançado que em alguns países, como o Japão, o governo explicitamente proibiu certos tipos de game designs, porque é realmente injusto para os usuários. Japão, Coréia do Sul e China tomaram medidas para regular ou proibir jogos com loot boxes, que eles julgam enganosas.

No ano passado, a Bélgica proibiu qualquer jogo contendo loot box. Uma decisão que pode repercutir na Europa e possivelmente no mundo. A Apple também recentemente começou a exigir que os jogos com loot boxes divulguem as chances do jogador ganhar alguma coisa. No mínimo, qualquer pessoa que consome qualquer produto deve entender totalmente o que é e como funciona ele.

Ao contrário das máquinas caça-níqueis tradicionais, atualmente, esses jogos não têm restrições de idade e alguns deles são comercializados para crianças. E ao contrário de máquinas caça-níqueis, a próxima geração de jogos eletrônicos pode estar te estudando, como jogador, aprendendo o que é preciso para continuar te fazer jogando ou o que é preciso para manter você gastando. O que as empresas de jogos poderão fazer com suas informações e coisas que eles podem extrair dessas informações. Isso vai ser um problema real.

Eu não acho que há uma linha clara entre o que não é ético e o que é ético, ou o que é manipulativo e o que não é. Com qualquer nova tecnologia, sempre há reclamações e preocupações. Isso remonta a Sócrates, que estava preocupado que seus alunos estavam escrevendo em livros e que não se lembrariam mais do que estavam escrevendo por estarem escrevendo.

Os que estão na ponta da indústria, aqueles que investem dinheiro nesse mercado, dizem que os jogos estão se tornando mais sofisticados, imersivos e personalizados e isso é uma das principais razões pelas quais eles estão se tornando mais profundos. Jogos mais imersivos que nos dão melhores e mais significativas experiências. É um pouco como perguntar

“Por que devemos ter literatura melhor? Por que deveríamos ter escritores melhores?

Videogames são outro mundo. Você se muda para outro mundo. Vive outra vida.

Muito parecido com outros serviços digitais, como os aplicativos de relacionamento, que falamos no nosso primeiro episódio, redes sociais, serviços de streaming de conteúdo, todos esses mimos modernos fazem parte de um sistema que, cada vez mais, visa domesticar o usuário, deixá-lo passivo. Contudo, não há como escapar para um mundo natural, onde nada disso existia. A solução não está em se tornar um eremita, em uma caverna. Na minha opinião, só conseguiremos evoluir tecnologia, arte, juntamente com o entretenimento, tanto do ponto de vista mercadológico como humano, através da política, da discussão e da subversão. Mas, trataremos desses pontos em um outro episódio.

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Victor Góis
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Pesquiso e produzo sobre cultura digital. Me interesso pela convergência entre comunicação, filosofia, arte, política e tecnologia.