“Música é uma experiência para a gente viver ao vivo, não só pela internet, não só pelo celular”: uma entrevista com Charles Gavin

adailton moura
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8 min readJun 7, 2018

_publicado em 24/04/2018 no SoundsandColours

Charles Gavin transmite tranquilidade. Seu tom de voz é ameno. Mas as palavras não deixam de ser combativas. “Aqui, a gente sofre porque a educação vem sendo desprezada há muito tempo. Eu estudei em escola pública, por isso eu sei o que aconteceu de lá pra cá. E sem uma base educacional boa e sólida, a gente compromete tudo”, diz o baterista, que já foi responsável pela cozinha do Ira!, RPM, Titãs, Cabine C. e Panamericana. Voraz colecionador de vinis, produtor musical, apresentador do “Som do Vinil”, que faz parte da programação do Canal Brasil, e (atualmente) idealizador da banda Primavera dos Dentes, Gavin acompanhou de perto o processo de desenvolvimento da indústria musical brasileira.

Acompanhado do Éliton Nascimento (rapper/produtor), conversei com Gavin, após ele participar de um painel sobre vinil, no DMX (Digital Music Expirience). O atual momento da música produzida no Brasil foi o tema central da “roda”, formada nos corredores do anfiteatro da Estácio, no Rio de Janeiro. Educação e cultura não ficaram de fora. “O conhecimento da música brasileira, seria uma consequência do conhecimento da nossa própria história, da própria origem do povo.”

Qual o futuro da música brasileira? Que rumo estamos tomando?

Pergunta difícil essa! Já passei por todas as fases, mas o que mais me preocupa hoje, com relação ao futuro da música brasileira, é que a gente garanta que a diversidade dela seja manifestada. Isso sim… é um dos pontos principais. O que de fato me preocupa é a monocultura que se estabeleceu em alguns veículos da mídia… rádios e canais da tv por assinatura, que só tocam um gênero de música… a gente tem que garantir espaço para todo tipo de música. Todas tem que ter um espaço para se expressar. Então, o futuro da música brasileira depende um pouco disso, porque se o músico independente não tiver um horizonte pela frente, se não tiver onde colocar a sua música e onde reproduzir sua obra, ele desiste. Conheço muita gente boa que desistiu ao longo do caminho… ao longo desses mais de 30 anos que eu vivo dentro da música, muita gente boa desistiu por falta de espaço.

Que tipo de espaço?

Os pequenos espaços são muito importantes para o artista mostrar a obra dele, uma obra autoral, desconhecida ainda, entendeu!? Eu acho isso muito importante para todos os seguimentos. Qualquer tipo de música precisa ter um espaço… espaços além da internet para as pessoas ver e ouvir. Música é uma experiência para a gente viver ao vivo, não só pela internet, não só pelo celular.

Até por que, não sei se você concorda, a questão da experiência foi o que fez a música ser o que ela é hoje.

Isso veio primeiro. Mas hoje está invertido. As pessoas valorizam mais a experiência da música nos headphones, no celular, do que ir num show e se relacionar com a pessoa que gosta, com aquela música que está sendo feita. Acho isso muito “perigoso”, porque essa falta de educação que a gente vive hoje faz com que as pessoas não tenham disponibilidade para irem a um show e ouvir uma música que não conhecem. Estão indo nos shows para ouvir uma repetição daquilo que já sabem que existe. Querem reviver uma emoção. Então, as pessoas estão se desacostumando de ir em um show para serem surpreendidas. Isso é muito “perigoso”, sobretudo em seguimentos que dependem de um mercado específico, que já tem público, mas que precisam conquistar uma outro público. Um exemplo é o hip hop. Tem seu público cativo e fiel, mas como é que faz para sair daquele seguimento. Como ele sai daquele nicho que só fala com o cara que se identifica com o hip hop? Passa por convencer as pessoas a ouvirem um artista que elas não conhecem. A maioria das pessoas só querem ver quem já conhece. Quem viu na internet ou na televisão. A gente precisa inverter esse quadro.

Há um culpado (ou culpados) por essa pasteurização musical nos grandes meios de comunicação?

O artista nunca é culpado. O artista é sempre vítima. Agora, todo mundo aqui é adulto. Cada um é responsável por suas escolhas. Eu acredito muito nisso. Porque tudo que acontece na sua vida é fruto das sua escolhas no passado. E isso passa pelo artista e pela música que ele faz. Mas, no caso, o artista que é um cara genericamente hábil para negociação (para saber os seus direitos e colocar sua música na rua), depende de outros profissionais. Eu falo por conhecimento de causa. Dessa forma, o artista é a figura mais fragilizada, sob esse ponto de vista. É bom na criação, mas na gestão do negócio sempre deixa a desejar. O dinheiro é um outro “problema” em questão, pois a gente vive uma época que lucrar indiscriminadamente se transformou no objetivo principal. Esse neo-capitalismo que a gente começou a viver a partir dos anos 2000 é voraz e se reinventa. Então, ele é capaz de transformar num produto, o trabalho de uma banda que está questionando os valores daquela cultura. O capitalismo faz isso. Não sou comunista, mas sou plenamente consciente dos prejuízos que esse capitalismo selvagem provoca na nossa vida. Tudo vira um produto. Uma empresa que começa bem, automaticamente recebe propostas para ser comprada por uma empresa maior. De certa forma, as gravadoras passaram por isso. Hoje os artistas também enfrentam esse problema, apesar da facilidade de gravar e colocar um disco na internet. Mas ainda existe uma dificuldade de aparecer na internet. O Spotify é um espaço, até certo ponto, democrático. Qualquer pessoa pode colocar a música lá. No entanto, como é que você consegue destaque no meio daquilo!?

Vocês está num mar de cabeças. Quem é que vai conseguir colocar a cabeça pra fora?

Meio corpo né!?

Exato!!

Acho muito difícil, porque você precisa de estratégias. É um mundo que ainda está sendo construído, então ainda é muito difícil. Eu vim do mundo do disco (vinil). Nesta época, algumas regras eram ruins, mas muito claras. O jabá sempre existiu. E continua existindo. Então, você aceitava ou não. Quando a gente lançou os nossos discos nos anos 80, o rádio era uma coisa extremamente diversificada. E o rádio é muito importante para a música brasileira. E naquele tempo, havia uma vontade política no rádio que não dependia tanto do lucro naquele momento. É fato que se lucrava, mas não precisava ser muito. E hoje, todo mundo busca por resultados. Uma coisa que coloca o projeto lá em cima ou joga lá me baixo. Antes havia uma disposição para ouvir uma música diferente da outra. E hoje, eu insisto, a gente está caminhando cada vez mais para a monocultura. Acho isso extremamente perigoso, para um país culturalmente tão rico quanto o nosso. O Brasil é um país único, porque aqui temos uma combinação da cultura indígena, da cultura que veio da África e da cultura que veio da Europa, que não existe em nenhum outro lugar do planeta. A música brasileira é simplesmente a manifestação desse nosso traço cultural. Eu me preocupo com isso e sinto orgulho dessa nossa diversidade. Eu defendo isso com unhas e dentes nos programas que tenho no rádio (Globo) e na TV (Canal Brasil).

Precisamos conhecer as raízes da nossa música e, principalmente, a nossa história?

Sem dúvida nenhuma. Veja você: eu tenho duas filhas, de 12 e 15 anos, na escola. Elas estudam a história da Europa. Aí eu pergunto: por que a gente não sabe a história da África nem a história da América do Sul?

Seria a falta de material ou total desinteresse?

Não tem documentário?? Tem! A história dos nossos países vizinhos não é ensinada nas escolas brasileiras. Ninguém conhece a história da Argentina, da Colômbia, do Chile, do Uruguai (do Uruguai e do Paraguai é um pouco por causa da guerra). Muito menos dos países africanos. Por que a gente só sabe a história da Europa? Qual a razão disso? O conhecimento da música brasileira seria uma consequência do conhecimento da nossa própria história, da própria origem do povo. Nós temos grandes pensadores: Roberto Freire, Darcy Ribeiro. Eu me pergunto: esses caras são estudados nas escolas? Grande pensador, Roberto Freire (pernambucano) tem uma visão sobre o Brasil, sobre a escravidão, sobre a matança dos povos indígenas. Isso é debatido, falado ou discutido em sala de aula? Não necessariamente, né!? Eu acho uma pena. Por isso, é nossa obrigação (dos agentes culturais, de quem tem consciência) de batalhar, lutar contra isso.

Muitas vezes, a música brasileira primeiramente estoura lá fora para depois ser valorizada aqui.

Por que isso acontece? Isso é muito estranho. Primeiro, o artista é reconhecido na Inglaterra, no Japão…

Os japoneses consomem muito a música brasileira…

Já estive no Japão estudando isso. É um caso bem complexo de entender… por quê os japoneses gostam tanto da música brasileira? E não é só de bossa-nova. Eles gostam da nossa música como um todo. Eu estive lá em 2014. Os japoneses são extremamente educados e curiosos… eles estão atentos em tudo que acontece no mundo. No nosso caso, pelas dimensões territoriais do Brasil (somos um país gigante, praticamente continental), isso faz com que a gente se interesse pouco pelos nossos vizinhos, por exemplo. Pela música latino-americana. Então, numa boa, a gente está a serviço de uma farta dominação cultural norte-americana e de alguma coisa que vem da Europa. O Japão também tem essas questões. Os americanos dominam bastante. Mas lá, tem bases educacionais muito sólidas. Aqui a gente sofre, porque a educação vem sendo desprezada há muito tempo. Eu estudei em escola pública, por isso eu sei o que aconteceu de lá pra cá. E sem uma base educacional boa e sólida, a gente compromete tudo. Por exemplo: fala-se muito em como combater o tráfego, como combater a criminalidade. Mas o fato é: a conta chegou. A sociedade brasileira fez vista grossa a uma parcela da população que não tinha como estudar, não tinha como educar seus filhos. A classe política e a sociedade civil, sobretudo no Rio de Janeiro, deu uma “banana” às pessoas que tinham menos condições de ter uma educação de qualidade sólida. Agora, a conta chegou. E não só a música brasileira, mas a cultura brasileira em geral passa por uma educação, tem que ter educação. Essa é a luta em questão… que o hip hop transmite tão bem. É a música mais politizada do Brasil, sem dúvida nenhuma.

E mesmo assim, você chamou a atenção, precisa ter um cuidado real para que não vire algo pasteurizado. Porque com o crescimento do consumo tem saber ter equilíbrio. Tem que ter maturidade. E também tem a questão dos números… principalmente no digital, quanto mais números melhor e às vezes muito se perdem.

Essa é uma questão muito complexa. Eu sou apenas um músico, entendeu!? Eu não sou sociólogo, não sou antropólogo….

(faz uma pausa e reclama do alto volume do som ambiente)

… mas eu assisti esse desmonte da educação pública. E já sabia que ia dar errado. Tanto é que deu mesmo. Exemplo: eu conheci o Sabotage (rapper brasileiro)… e sei por que ele foi assassinado. Então, eu falo: como é que um cara como o Sabotage (que era da comunidade), com a melhor cabeça possível, com uma música que falava sobre a convivência, foi assassinado por besteira, uma rixa de gangues, e coisa assim. Voltando a primeira pergunta, eu te diria que o futuro da música brasileira depende desses espaços pra ela acontecer e ser conhecida. Mas também depende da nossa educação. Da educação pública… esse é um assunto da sociedade brasileira, não é só da classe política. A classe política está pouco se lixando.

Mas e o reflexo de tudo isso?

Aí que tá, todos são atingidos. Num país capitalista, a gente, talvez, tem um dos maiores índices de desigualdade social. É uma sociedade que induz você ao consumo, mas não possibilita que você consuma. Um absurdo. Então, isso vai criando distorções. Situações extremas.

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adailton moura
adailton moura

jornalista. autor do livro “A Indústria da Música Gospel”. txts no @ RAPresentando, Sounds and Colours, TAB UOL, AUR, Rapzilla, Per Raps, Bantumen, Gospel Beat.