“Não existe dívida histórica com a escravidão”, dizem

adailton moura
adailton moura
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3 min readOct 31, 2018
CENA DO FILME “12 ANOS DE ESCRAVIDÃO”

“Não existe dívida histórica com a escravidão”, dizem. Divergências. A herança escravocrata ainda faz parte da miscigenada sociedade brasileira. Não se sabe quando estaremos livre dela, e se estaremos livre. É cultural. Não atoa, os detentores de escravos queriam ser reembolsados por terem prejuízos ao dispensarem suas “PROPRIEDADES” após a Lei Áurea ser assinada. Mas, de fato, quem teve prejuízo foi um povo preto que teve que DAR SEU JEITO, arrumar um lugar para morar e algo para se alimentar. Não ouviram desculpas/perdão nem receberam ajuda para tocarem a vida livre. Tanto é, que muitos preferiram continuar na casa dos seus antigos donos para ter comida e moradia garantidas. Outros decidiram construir a própria história com a semi-liberdade. Criaram guetos nos centros. Mas para não “enfeiarem” a paisagem, foram empurrados para as favelas [nome dado em referência a uma flor que nasce nos pés dos morros], sem saneamento básico e dignidade. Os ex-escravos tiveram filhos, netos, bisnetos. Uma geração passou e muitas outras vieram. No entanto, os problemas permaneceram.

A liberdade nunca foi sinônimo de independência, soberania, emancipação. Vigiados a cada movimento, tipo Winston no regime totalitário do Grande Irmão (leia 1984 de George Orwell), os pretos sempre tiveram acesso limitado à educação — e as portas das prisões escancaradas. [Para muitos o crime não foi questão de escolha, mas sim de sobrevivência]. Consequentemente, ser um intelectual beirava a impossibilidade. Sem trabalho, estudo, casa, história, sem nada, uns tentaram na cara e na coragem, foram calados — tipo Lima Barreto, que morreu triste, sozinho, “louco” e sem 1 conto no bolso [“Desgraçado Nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito”. — Lima Barreto, em seu Diário Íntimo]. Outros nem tentaram. Melhor assim. ELES agradeceram. Séculos passaram, alguma coisa mudou. Mas nada mudou.

No 21, a problemática dos 18 e 19 ainda não se diferem, tirando a tecnologia. Os pretos continuam nos subúrbios, periferias, guetos, favelas. O saneamento básico é pífio, boas oportunidades de emprego não aparecem facilmente, mesmo com todas as qualificações possíveis [histórias não faltam], ingressar no ensino superior, ainda, tem suas complicações. É óbvio que o acesso melhorou, as cotas, programas de bolsas e financiamento governamentais ajudaram o ingresso de MUITOS que não tinham dinheiro nem perspectivas [incluindo eu]. Aí, quando se atravessa a portaria da universidade, tem que provar que “merece” estar ali. Tem que ser 2x melhor, estando 5x atrasado — justamente por causa de todo o histórico. NORMAL. Na rua, a vigilância é constante. O medo impera. Ao ver um preto no horizonte, eles ligam o carro, seguram a bolsa, mudam de calçada, seguem pra ver se não vai levar algo sem pagar. É julgado apenas pela aparência. Duvidam da capacidade, sem ao menos conhecer o potencial.

Pessoas de pele preta (marrom e suas variantes) são testadas o tempo todo. Tem que ser FODA sempre. E nesse jogo não se permite erro. Mas ainda insistem em dizer que não há dívida — é verdade que alguns pretos concordam com isso, direito deles. Até quando não se sabe. Porém, os “boletos” continuarão a ser enviados. Já se sabe que não serão pagos. Cobrar nunca é demais. E é fato que uns vão manter os corres para receber , de alguma forma , tudo em dinheiro. Porém, a maioria continuará lutando para mostrar seu valor, não preço. Assim fizeram (e fazem) King, Abdias do Nascimento, Maria Firmina dos Reis, Mandela, Parks, Malcon X, Frederick Douglas, Harriet Tubman, André Rebolsas, Lima Barreto, Luiz Gama, Barack Obama, Joaquim Barbosa, José do Patrocínio, Zumbi, Conceição Evaristo, Angela Davis, Carolina Maria de Jesus, Solomon Northup.

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adailton moura
adailton moura

jornalista. autor do livro “A Indústria da Música Gospel”. txts no @ RAPresentando, Sounds and Colours, TAB UOL, AUR, Rapzilla, Per Raps, Bantumen, Gospel Beat.